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Conversamos com Dois Ex-Genocidas de Ruanda

Vinte anos atrás, 800 mil tútsis e hutus moderados morreram nas mãos de seus amigos, vizinhos e colegas. Viajamos para a Prisão Nyarugenge e conversamos com um homem e uma mulher condenados por genocídio.

Fotos por Sally Hayden.

Nota do editor: os nomes dos detentos foram alterados.

Na entrada da Prisão Nyarugenge em Kigali, Ruanda, homens armados montam guarda entre letras pintadas que dizem “Não à Corrupção”. Através dos portões, vejo os guardas escoltando os detentos. Os prisioneiros usam rosa se estão esperando por suas sentenças e laranja se já estão cumprindo uma.

Durante os três meses do Genocídio de Ruanda, 20 anos atrás, 800 mil tútsis e hutus moderados morreram nas mãos de seus amigos, vizinhos e colegas. Depois que a catástrofe terminou, uma quantidade enorme de pessoas precisava ser julgada, mas os recursos para conduzir os julgamentos eram limitados. Para acelerar os procedimentos de acusação, um sistema de justiça local chamado gacaca foi introduzido. Os julgamentos aconteciam nas aldeias, onde as vítimas e suas famílias confrontavam publicamente os acusados diante da comunidade.

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Ganhar acesso a uma prisão aqui é um negócio complicado que envolve juntar e submeter muitas cartas de recomendação, que culmina numa permissão legal emitida pelo Sistema Correcional de Ruanda. Depois de fornecer todas as provas necessárias, esperei num sofá na recepção da prisão e então conversei com dois ex-genocidas de Ruanda: Justine, uma mulher de 50 anos que usava um lenço de bolinhas laranjas na cabeça, e Thomas, um homem de 50 anos que usava um relógio e que apertou minha mão antes de se sentar.

VICE: Por que você está presa?
Justine: Estou aqui por causa da questão do genocídio. Eu era parte do partido no comando e tive parte no que aconteceu com meus vizinhos. Quando o genocídio começou, um bloqueio na estrada foi montado atrás da minha casa. Eles diziam que estavam tentando capturar os soldados da RPF [Frente Patriótica de Ruanda] . Eu não sabia que era um genocídio; eu acreditava que eles estavam dizendo a verdade. Isso continuou e meus vizinhos foram mortos. Para salvar minha família, comecei a matar pessoas também e fui da Interahamwe [uma milícia hutu].

De quanto tempo é sua sentença?
Estou presa desde 1996. Em 2007 fui libertada e me deixaram ir para casa. Mas depois disso, eles fizeram outras queixas contra mim e, três anos mais tarde, me trouxeram de volta. Eu já tinha confessado tudo que tinha feito e tinha perdido perdão. Achei que isso tinha acabado – as pessoas dizem que vou ficar aqui para o resto da vida.

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Por que eles trouxeram você de volta para a prisão?
Eles estabeleceram as cortes gacaca, e todo mundo vem te culpar quando você está sendo julgada. Eles dizem que uma pessoa matou todas as pessoas naquela área, quando isso seria impossível.

Muitas pessoas foram afetadas e, conforme o tempo foi passando, eles queriam alguém para culpar. Eles ficaram enraivecidos e disseram coisas, e a lista de coisas pelas quais eles culpam você vai ficando cada vez mais longa. As cortes gacaca querem dizer que há muita acusação dirigida a uma única pessoa. Não tive chance de dizer o que tinha realmente feito – eles queriam que eu dissesse que eu era essa pessoa que matou todo mundo. As pessoas acusadas agora não estão sendo acusadas pelas pessoas prejudicadas. O governo está tomando conta da questão agora.

Os crimes que cometemos já confessamos muito tempo atrás. Os sobrevivente já prestaram queixa. As pessoas da minha área me perdoaram; é o governo que está fazendo acusações que não são verdade agora.

Para mim, mais acusações apareceram depois. Também havia outra pessoa com o mesmo nome que eu na minha área, mas que morreu em agosto de 1994. Eles provavelmente estão acusando ela. Tudo o que eu sei é que já disse o que fiz e já confessei, mas depois não consegui achar ninguém para me defender das outras acusações. Nas cortes gacaca, se você não têm alguém que te apoie, você perde.

Ainda é incompreensível para muitas pessoas como tantos ruandeses se mobilizaram para matar essas pessoas. Você faz alguma ideia de por que tanta gente acabou participando?
Eu trabalhava como recepcionista no aeroporto. Nós líamos os jornais. Quando o avião [do presidente Habyarimana] foi derrubado, eles anunciaram isso na RTLM [Radio-Télévision Libre des Milles Collines]. Os jornais e o rádio plantaram o ódio nas pessoas. Depois que o avião caiu, eles disseram que você tinha que estar atento, que pessoas a seu redor queriam ver você morto. A mídia contribuiu muito. A RTLM dizia que estava recebendo essas informações da rádio tútsi. Quando você lia os jornais, essas coisas eram colocadas em sua cabeça. E eu lia porque precisava saber o que estava acontecendo.

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O genocídio acabou por causa da vitória do RPA, um exército de maioria tútsi. Como você reagiu a isso?
No começo, quando o genocídio acabou, ficamos chocados. Achamos que se tínhamos matado, também seríamos mortos, mas eles nos deram o melhor tratamento. Tínhamos água, comida, chuveiros. Nunca fomos maltratados. Vivemos da melhor maneira, diferente dos sobreviventes – assistimos filmes sobre como os outros são tratados. As pessoas que dizem que o governo de Ruanda é mau estão erradas. Se você fica doente, você recebe remédio. Não podemos visitar nossas famílias, mas elas podem nos visitar.

Há alguma diferenciação dentro da prisão entre aqueles que participaram do genocídio e aqueles que foram condenados por outros crimes?
Não. Fico emocionada com a maneira como todos os prisioneiros vivem juntos. Com minha sentença de prisão perpétua, convivo com pessoas que estão cumprindo 30 dias. Às vezes, as pessoas se sentem culpadas pelas coisas terríveis que fizeram e como são tratadas agora. Não há distinção baseada no crime da pessoa. A única separação é entre as pessoas que têm filhos, porque elas precisam de mais atenção.

Você acha que existe a possibilidade de as tensões se incendiarem novamente a esse ponto em Ruanda?
Se o governo continuar ensinando as pessoas sobre o impacto ruim que o passado teve, isso não vai se repetir. O importante é plantar o amor nas pessoas.

De quanto tempo é sua sentença?
Thomas: Minha sentença é de 30 anos.

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Muitas pessoas dizem que a mídia, juntamente com os políticos, teve um grande papel na mobilização de tantos ruandeses para cometer tamanha atrocidade. Você concorda?
O fogo foi aceso pela mídia, os líderes usaram isso para espalhar a mensagem. As pessoas dizem que o genocídio foi desencadeado pela derrubada do avião, mas acho que foi a mídia que acendeu o fogo.

Você acha que aquelas tensões continuaram existindo depois do fim do genocídio?
Em 2002 e 2003, antes da gacaca, os cidadães não viviam de um jeito bom, mas eles tentaram reunir as pessoas e fizeram aulas nas prisões. Eu era um líder, então, agora ensino as pessoas aqui. Quero reverter o que eu ensinava antes – quero ensinar a paz agora.

Como é um dia normal aqui?
Aqui na prisão, fazemos esportes das sete às oito da manhã, depois estudamos coisas como engenharia elétrica, mecânica e outras práticas. Depois trabalhamos em diferentes áreas. Trabalho no departamento de segurança.

Vocês fizeram algo para marcar os eventos de aniversário do genocídio?
Sim, fizemos um evento na igreja.

O mandato do presidente ruandês Paul Kagame chega ao fim em 2017. Ele é um ex-líder do RPA. O que você acha que vai mudar no país quando ele sair do cargo? Você acha que o país continuará pacífico sob a liderança de outra pessoa?
A constituição [que diz que o mandato dele deve terminar] foi implementada em dois períodos, então, as pessoas ainda podem mudar isso. Mesmo o presidente pode mudar de ideia, mas ele não disse nada. Mas, na prisão você não pode votar, então não tenho nada a dizer sobre isso.

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Tradução: Marina Schnoor