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A Organização Cambojana que Persegue Pedófilos Estrangeiros no País

A Action Pour Les Enfants (APLE) está à frente dos esforços para derrubar a exploração sexual de crianças no Camboja e, com os anos, se tornou conhecida por sua abordagem barra-pesada.

Suposto pedófilo Michael Jones, fotografado em 2014 pela APLE. Todas as fotos cortesia de Action Pour Les Enfants.

Rong Rattana estava observando. Coordenador de proteção à infância da organização não governamental cambojana Action Pour Les Enfants (APLE), ele estava no rastro de um norte-americano depois de vê-lo andando de moto pela cidade de Siem Reap com um menino cambojano na garupa. Por meses, Rattana e outros investigadores da APLE seguiram o homem.

Ele estava vivendo nos arredores da cidade, numa casa de US$ 1,2 milhão com piscina e toboágua. O homem, Jack Sporich, era um engenheiro aposentado que tinha se mudado do Arizona para o Camboja depois de passar nove anos numa prisão norte-americana e outros três num hospital estadual por abusar sexualmente de meninos.

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Os investigadores da APLE colocaram a casa de Sporich sob vigilância. Eles ficavam de tocaia o dia todo e viram três garotos cambojanos entrarem e saírem. Em entrevistas detalhadas mais tarde nos documentos do julgamento, os garotos disseram aos investigadores da APLE que chamavam Sporich de "papai". Ele lhes dava dinheiro para a escola e os deixava brincar com seu computador. Eles falaram à APLE que dormiam na mesma cama que ele, tomavam banho com ele – e que, nesses momentos, o homem às vezes brincava com os genitais deles.

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A investigação do grupo cambojano – um relatório detalhado que foi usado em abril de 2009 para uma queixa em um tribunal federal feita contra o acusado – levou diretamente à prisão de Sporich e à sua deportação para os EUA, onde ele foi acusado num tribunal federal. No mês passado, Jack Sporich, de 81 anos, foi sentenciado a dez anos de cadeia por molestar dois dos meninos. Foi um grande sucesso para APLE.

Essa organização está à frente dos esforços para derrubar a exploração sexual de crianças no Camboja e, com os anos, se tornou conhecida por sua abordagem barra-pesada. Contando com uma equipe de investigadores disfarçados e informantes na internet, a APLE é dedicada a caçar turistas que há anos consideram o Camboja – um dos países mais pobres do Sudeste Asiático – um parque de diversões para contratar trabalhadores sexuais menores e explorar sexualmente crianças.

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Os esforços da APLE levaram a várias condenações e ao resgate de centenas de vítimas. No processo, a organização se tornou um aliado-chave da polícia cambojana, assim como do Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro dos EUA, uma agência do Departamento de Segurança Interna que tem sua própria unidade de Investigação de Exploração Infantil. Mas o grupo também tem sido criticado online, com algumas pessoas dizendo que condenados ou acusados de crimes sexuais foram presos injustamente. E, nos meses mais recentes, acusações criminais contra um ex-diretor da APLE sugerem que casos como o de Sporich – por mais perturbador que sejam – são apenas uma parte de um problema complexo e antigo.

'The Pedophile Hunter Part IV', via página da APLE no YouTube.

O Camboja é um conhecido destino de turismo sexual. Enquanto muitos trabalhadores sexuais adultos tocam seus negócios, o país é assombrado pela história de distritos da luz vermelha como Svay Pak, um vilarejo nos arredores da capital, Phnom Penh, onde bordéis usam abertamente meninas de até cinco anos, enquanto um "comércio de virgens" atrai clientes locais e estrangeiros.

O abuso infantil no Camboja voava abaixo do radar em parte porque o governo do primeiro-ministro Hun Sen era prejudicado pela corrupção e falta de recursos. Só que os esforços mudaram no meio dos anos 2000, quando o governo passou a trabalhar com países como EUA e Austrália, prendendo e deportando estrangeiros para que eles enfrentassem julgamentos em seus países de origem. Os EUA intensificaram seus próprios esforços aprovando uma lei, parte do Protect Act de 2003, que torna ilegal para cidadãos e residentes permanentes se envolverem em atos sexuais com menores enquanto num país estrangeiro – um crime punível com até 30 anos de cadeia.

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No entanto, nenhum desses esforços seria tão efetivo se não fosse pela APLE, que frequentemente fareja suspeitos antes de todo mundo. Fundado em 2003 pelo ativista francês Thierry Darnaudet, o grupo se tornou imensamente poderoso. Apesar de operar modestamente (segundo seu relatório financeiro de 2014, a organização tem uma renda anual de US$ 519.213 com despesas de US$ 491.834), a APLE trabalha com agências da lei norte-americanas tendo a benção oficial do Ministério do Interior (MI) cambojano. Segundo Samleang Seila, presidente da APLE, um Memorando de Entendimento emitido pelo governo dá ao grupo o poder de fazer suas próprias investigações preliminares para ajudar autoridades oficiais.

"Se a APLE não estivesse investigando, é muito improvável que mais alguém estaria." – Alastair Hilton

"Todo setor no Camboja, seja educação, agricultura ou turismo, é auxiliado por ONGs. Nosso modelo é comprovado em países em desenvolvimento. Acreditamos que a força policial do Camboja esteja se fortalecendo e logo estará saudável o suficiente para investigar esses casos por si mesma", Seila disse à VICE.

De acordo com o Ministério do Interior do Camboja, as investigações da APLE levaram a mais de 680 crianças resgatadas de abuso sexual: 55% meninos, 45% meninas. O grupo também mantém uma linha telefônica para denúncias, registrando 227 relatos no ano passado que ocasionaram 23 prisões; além disso, a organização também oferece apoio legal e assistência social para crianças e famílias afetadas por abuso sexual.

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Ainda assim, a APLE é apenas um dos jogadores em casos judiciais internacionais complexos. Por exemplo, o caso Ronald Gerard Boyahian, um norte-americano preso em 2009 com Sporich e Erik Leonardus Peeters como parte de uma iniciativa conjunta entre EUA e Camboja chamada "Operation Twisted Traveler". As investigações envolveram a APLE, a polícia cambojana, o FBI e o Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro.

Boyajian teria pagado 20 mil riels cambojanos (cerca de US$ 5) para uma garota de 10 anos por sexo oral. Segundo a queixa inicial feita contra ele no Tribunal Central da Califórnia, a investigação começou com a APLE, cujos investigadores testemunharam Boyajian visitando um bordel infantil em Svay Pak. Mais tarde, de acordo com os documentos do caso, a menina identificou Boyajian por fotos e relatou tê-lo encontrado várias vezes. Em um dos encontros, ele falou-lhe em vietnamita: "Menina, ao trabalho".

Boyajian – que foi condenado em 1994 por 22 acusações de estupro presumido em Orange County, segundo registros do Tribunal Superior do condado – se declarou culpado e contratou um advogado veterano de Beverly Hills, Danny Davis, para pesquisar furos no caso da promotoria do Camboja. Davis sugeriu que havia inconsistências no testemunho da vítima e, em 2012, tentou derrubar o caso, argumentando sem sucesso que as acusações eram inconstitucionais.

Entretanto, isso foi só o começo do que se tornou uma saga épica de recursos e atrasos, o que fez o caso Boyajian se arrastar nos últimos seis anos sem muito progresso. Depois de várias manobras judiciais, o novo julgamento do acusado está marcado para 3 de novembro, mas seu assistente apontado pelo tribunal, George Buehler, já comentou que isso pode ser adiado novamente.

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Uma investigação da APLE levou à prisão de três mulheres cambojanas acusadas de solicitação agravada de prostituição infantil.

Ou seja, as investigações da APLE nem sempre garantem sucesso legal. Carol Smolenski, diretora executiva do grupo antitráfico infantil ECPAT USA, destacou que esses casos de turismo sexual nos EUA podem ser especialmente difíceis para sobreviventes de violência sexual, já que eles precisam viajar para testemunhar em tribunais americanos. Como resultado, essas vítimas precisam enfrentar seu trauma novamente para dar o testemunho, além de também ficarem vulneráveis ao escrutínio de advogados de defesa ansiosos por desacreditá-los.

"Lembro-me de falar com um dos investigadores sobre levar as crianças para um parque de diversão, porque elas estavam no hotel há dez dias, sabe? E elas são crianças!", me contou Smolenski, se referindo a um caso julgado nos EUA. "Só que você não pode as levar para um parque de diversões, pois isso se torna algo que a defesa pode usar para dizer: 'É por isso que essa criança está testemunhando, vocês a estão mimando'."

No Camboja, a APLE tem uma influência crescente. Isso já gerou acusações de que o grupo está se tornando poderoso demais. Um de seus críticos mais conhecidos é James Ricketson, um cineasta e blogueiro australiano que se tornou defensor de um estuprador condenado chamado David Fletcher. Em seu blog, Ricketson ataca o grupo e seu fundador, alegando acreditar que haja exemplos flagrantes de provas falhas coletadas pela organização que foram usadas para implicar os suspeitos. Resumindo, Ricketson acha que as autoridades cambojanas dão liberdades demais para a organização.

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"As provas coletadas pela APLE deveriam ser desafiadas por um advogado representando o acusado, mas a veracidade das provas dela dificilmente é contestada nos tribunais cambojanos", Ricketson apontou por e-mail. "Isso é um reflexo da incompetência do sistema judicial do país, não das habilidades investigativas superiores da APLE. Está na hora de o governo cambojano parar de terceirizar o serviço da polícia, sem supervisão, para ONGs como a Action Pour Les Enfants."

Seila descarta a crítica, alegando que isso vem de uma má interpretação de como a APLE opera.

"As pessoas parecem acreditar que investigamos os casos sozinhos. O que fazemos sob a supervisão do MI é identificar suspeitos, repassar informação e realizar investigações preliminares", ele explicou. "Não forjamos provas – ajudamos a polícia cambojana em suas investigações, e nosso papel é apoiar as vítimas do testemunho até o final do processo."

A embaixada norte-americana no Camboja e um porta-voz do Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro se recusaram a comentar a história. No entanto, o grupo também tem apoio de organizações cambojanas dedicadas a combater a exploração infantil, como o First-Step Cambodia, uma ONG que fornece recursos para sobreviventes de abuso sexual. Consultor técnico e cofundador da organização, Alastair Hilton frisou que "a APLE, assim como muitas outras organizações locais e internacionais, tem fornecido apoio, treinamento e recursos para o MI há anos, tentando melhorar a resposta deles, além de proteger crianças e outras pessoas afetadas ou sob risco de abuso. Em muitos casos, isso resulta em compartilhar inteligência e informação, o que leva à prisão de um número considerável de cambojanos e estrangeiros."

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Em geral, é perfeitamente legítimo que uma organização privada ajude as autoridades oficiais fornecendo recursos e pistas, atestou Diane Marie Amann, uma professora de direito criminal internacional da Universidade de Geórgia.

"Acho que essa colaboração com o que chamamos de 'sociedade civil' é sempre positiva", resumiu Amann. "Os sistemas de justiça criminal tendem a necessitar de recursos; assim, se há organizações privadas que têm familiaridade com a situação, talvez um acesso melhor às vítimas, certamente é apropriado que elas colaborem."

Ainda assim, num país onde toda semana há manchetes sobre pedófilos, eventos recentes sugerem que ninguém – nem mesmo a APLE – deve estar acima de suspeitas.

Em março, dezenas de oficiais da polícia e do governo cambojanos visitaram uma escola e orfanato em Phnom Penh. A instalação, chamada de Nossa Casa, era a residência de mais de 60 crianças, que foram rapidamente evacuadas e transferidas para três centros de proteção diferentes no país. As crianças, que juntaram seus pertencem em sacos plásticos pretos, pareciam assustadas e confusas à medida que eram colocadas na traseira de picapes. Enquanto isso, a polícia prendia o proprietário da Nossa Casa, Hang Vibol.

As acusações contra ele são chocantes. Há anos, Vibol está envolvido no combate à exploração infantil; ele até tinha trabalhado como diretor de proteção à infância da APLE. Mas recentemente ele se tornou alvo da organização: por isso, agora, Vibol está sendo acusado de ter abusado de pelo menos nove menores que viveram na Nossa Casa de 2013 a 2014.

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A primeira audiência do acusado aconteceu a portas fechadas no começo do mês. Ele se declarou inocente quando foi preso: segundo Vibol, as provas contra ele foram fabricadas como vingança por sua saída da APLE em 2004, desencadeada, ele alega, pelas táticas da organização. Numa carta enviada à VICE em março, Vibol falou que até planejava testemunhar no caso Boyajian antes de ser preso "para revelar todas as atividades da APLE nos EUA".

"Me oponho ao trabalho da APLE", Vibol escreveu. "A APLE realiza atividades que estão além de suas competências e ultrapassa o trabalho da polícia. Eles compram as vítimas com comida e as instruem a exigir compensação dos acusados."

Vibol também levantou acusações contra o fundador da APLE, Thierry Darnaudet, o acusando de pedofilia e peculato. Danaudet (que não trabalha mais para a APLE) está processando Vibol por difamação.

"Primeiro, fiquei ofendido quando li as acusações sobre mim, Seila e a APLE no geral na internet", Darnaudet enumerou num e-mail à VICE. "Depois, ri disso. São acusações tão fantasiosas e distorcidas que me surpreendo como algumas pessoas tenham tempo para pensar numa teoria de conspiração dessas. Me sinto mal por Seila, pois sei o quanto ele trabalha, o quanto ele é honesto, meticuloso e íntegro."

A prisão de Vibol provou algo um tanto controverso para a APLE. As acusações criminais contra ele vieram de uma investigação da organização; logo, depois da prisão dele, o chefe do grupo cambojano de direitos humanos Licadho, Dr. Kek Pung, questionou publicamente se não era um conflito de interesse o fato de que a APLE investigasse seu ex-diretor por crimes sexuais ao mesmo tempo em que Vibol estava processando Darnaudet por acusações similares. A APLE rapidamente refutou as acusações. Seila, o presidente da APLE, disse ao The Cambodia Daily no começo do ano que Darneudet tinha cortado laços com a APLE em agosto de 2014, logo antes de as investigações sobre Vibol começarem.

O grupo First-Step Cambodia está ajudando agora as crianças evacuadas da Nossa Casa, além das outras que estão testemunhando contra Vibol. Hilton, o consultor técnico da organização, mantém sua fé na APLE. Ele apontou que, apesar de tudo, a organização está liderando o movimento para proteger as crianças de abuso sexual no Camboja e resgatando as vítimas.

"Se a APLE não estivesse investigando, é muito improvável que mais alguém estaria", destacou Hilton.

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Tradução: Marina Schnoor.

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