Entretenimento

Fomos à missa rock’n roll do padre motociclista e recebemos um banho de água benta (de balde)

“Porque Ele vive, eu posso crer no amanhã. Porque Ele vive, temor não há.” Caramba, tento imaginar quantas vezes na vida eu já escutei essa música (nunca no Spotify ou no iTunes, isso eu lhe garanto). Esse é o típico cântico de entrada de missa. E uma coisa eu confesso para vocês: já fui em muita missa nessa vida. Sempre mexi com isso, desde a minha infância. Culpa dos meus pais, que não perdiam (não perdem) uma e me levaram ainda pequenino para a igreja. Meu finado avô, então, ia na missa bem de manhã do domingo e aparecia, também, na das 19 horas. Só não comungava na segunda, né, pois isso não pode. Aliás, às vezes ele esquecia.

Já fui em todo tipo de missa que você possa imaginar. Missa à tarde, missa de noite, missa de madrugada, missa de sétimo dia, primeira missa pós-falecimento, missa de formatura, missa em presídio, missa com o bispo, missa com o Papa (um pedaço de missa apenas), missa de jovens, missa da terceira idade. Enfim, quando surgiu essa oportunidade de conhecer a missa do padre motociclista, topei a experiência de coração aberto, afinal, essa cerimônia não poderia ser assim de tão diferente, não é mesmo?

Videos by VICE

Estava completamente enganado.

Foto: Ritz Fotografia.

Volto a estrofe que iniciou esse texto, com a canção “Porque Ele vive”. A letra era a mesma, mas a melodia estava totalmente incomum. Uma guitarra com distorção, acompanhada de um baixo e bateria dava um tom mais pesado, fazendo com que o hino religioso, famoso na voz de Padre Zeca, ganhasse uma levada meio “Born to be wild”, do Steppenwolf.

O altar foi improvisado em um palco da Concha Acústica da cidade de Presidente Alves, município com aproximadamente 4 mil habitantes, localizado na região noroeste do interior de São Paulo. O local recebia um encontro beneficente de motociclistas, com várias bandas de rock no sábado, cerveja gelada e espetinhos de carne, frango e kafta – esse último tem que ter um cuidado no tempero, senão você fica arrotando kafta até seu filho tirar carta de motorista. O domingo seria coroado com o evento religioso, organizado pela Pastoral da Estrada e celebrado pelo padre Edson Codato.

Foto: Ritz Fotografia.

Para quem não manja de missa, o canto de entrada marca um dos momentos iniciais do ritual e compõe um cenário, também, para a chegada de quem vai ministrar a celebração. Não é preciso anunciar ninguém, quando se executa essa etapa, as pessoas já sabem que, a qualquer momento, um padre (às vezes mais que um), vai se fazer presente. Naquela manhã, as cadeiras de plástico ali colocadas e os espaços ao redor do altar eram ocupados por donos de motocicletas. Devidamente trajados com seus coletes de motoclubes, compunham um visual completo, predominantemente com roupas de cor negra, muito couro, cabelos, tatuagens e, é claro, a proximidade de seus veículos sobre duas rodas. Motos, de diversas marcas e cores, com dois estilos predominantes: custom, como as lendárias Harley Davidson ou esportivas, como os modelos de motovelocidade.

Quem imaginava que ali haveria a entrada de um vigário “convencional”, teve uma surpresa.

A chegada na missa. Foto: Ritz Fotografia.

O ronco acelerado de motor começou a rolar paralelamente ao hino de louvor no palco. Pensei, caramba, nem a missa esse povo vai respeitar será? Quando olho para meu lado direito, percebo um grande triciclo, comprido, quase todo vermelho. Em sua parte frontal, um ornamento em forma de V está aceso, feito com luzes de led azul brilhantes. O veículo de três rodas chega acelerado até a frente do altar. De cima dele, desce o padre Edson. Cabelos presos, óculos de leitura. Jeans surrado e tênis esportivo igualmente velho. Ele sobe apressado pela escada que dá acesso ao altar e, lá de cima, continua a bater palmas e a acompanhar a banda com a canção. “Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo”, no que todos complementam, ainda extasiados com a entrada do padre motociclista: “Amém”!

Sons of Anarchy Bahia

Aos 53 anos, o padre me contou que nasceu em Bauru e hoje, “Graças a Deus”, está de volta para a terra que o viu nascer. Disse não se recordar do momento exato em que descobriu a vocação para a igreja, mas que foi algo que evoluiu naturalmente no meio em que vivia. “Eu já tinha a vontade desde muito cedo, era coroinha e jogava bola com os seminaristas. Quando decidi eu mesmo entrar no seminário, aos 16 anos, foi o ápice da coisa”, relata.

O pároco é de uma simpatia muito contagiante. Durante nossas conversas, registradas em dois dias na cidade do evento, éramos constantemente interrompidos por pessoas que vinham abraçá-lo. Parceiros de estrada, de motoclubes de Lins, Cafelândia, Promissão, Piratininga, entre outros. Outras pessoas, ao saber que ele era o “tal padre”, também vinham ter ali sua pequena benção – sempre concedida sem titubear. Ao término da missa foram dezenas e dezenas de cliques e selfies, como uma celebridade católica.

Foto: Ritz Fotografia.

Na música, gosta muito da banda Aerosmith – “é a primeira banda do meu pen drive”. Ele é alto, tem o rosto comprido e marcados com alguns sinais, provavelmente de acne – todos fomos adolescentes, certo? Sua voz é muito marcante, aguda, mas ao mesmo tempo bem pontuada. Durante sua fala microfonada, noto uma certa semelhança com a voz de Nelson Machado, o lendário dublador do personagem Quico, do seriado Chaves.

Assim que ordenou-se padre, seguiu para um período missionário, no sertão da Bahia, na pequena Presidente Jânio Quadros. Com graves problemas sociais e estradas extremamente mal-cuidadas, o vigário tinha muito trabalho e dificuldades para locomoção naqueles terrenos. Numa das vindas à Bauru recebeu a doação que mudaria sua vida: uma moto CG (“CGzinha, super básica”, como ele mesmo a define).

“De moto, eu saía e começava a arregimentar o pessoal, pois havia muitos que usavam esse mesmo meio de transporte. E aí eu já tinha uma toda uma turma que gostava disso”, relembra. À época estava com 30 anos e já começava a apresentar mudanças no seu estilo. “Quando cheguei na Bahia eu era, posso dizer, um padre careta (risos). Lá mesmo comecei a tomar uma outra visão da coisa, um novo visual, como eu não estava mais perto da minha mãe aí eu radicalizei (risos)”, brinca.

Foto: Ritz Fotografia.

Mas foi em Passos, Minas Gerais, que sua biografia se aproximou de vez do gosto pelas estradas. Apaixonado pelas motocicletas, decidiu montar, ele próprio, seu triciclo. Trata-se de um veículo misto e, principalmente, bastante customizado. Um dos motociclistas do evento tentou me simplificar a proposta comparando com o centauro, ser místico que é metade homem, metade cavalo. O triciclo costuma ser montado a partir de um kit básico e consiste, em linhas gerais, em ser meio carro, Fusca, por exemplo e meio motocicleta. “Eu montei o meu na garagem do Educandário Senhor Bom Jesus dos Passos, daí já fundamos o nosso motoclube, o Esquadrão MG, do jeito certo, com estatuto e regras, para a gente entrar no espírito do motociclismo mesmo”, recorda-se.

Desde então, fez do clima de confraternização dos encontros de moto o seu instrumento de envangelização. De volta a Bauru, passou a ser o responsável pela pequena paróquia São Brás, localizada na periferia e, também, da capela Nossa Senhora Aparecida, em Tibiriçá, que é um distrito da cidade.

Aceleradas de fé

“Às vezes, nas estradas da vida e em suas beiradas, nós passamos tão rápido que não percebemos quem está precisando de ajuda”, compara o padre, que costuma utilizar metáforas com temas do estilo easy rider em suas palavras. Na homilia, por exemplo, comenta que é preciso ter muita responsabilidade na estrada e pensar no próximo, nas famílias. “Não devemos andar a 280 km/h nas pistas”, salienta, fazendo uma piada logo em seguida: “mas andar a 80 também, ninguém merece (risos)”.

Em seu ato penitencial, novamente rola algo bastante peculiar. Enquanto a banda faz um som, ele pede para que todos os motociclistas sigam até o altar (o palco) e depositem os seus coletes de motoclubes e capacetes. Um a um, eles caminham em tom solene, com uma carga de emoção muito forte, colocando esses símbolos de seus grupos e itens de segurança à frente do celebração. Enquanto a montanha de apetrechos é formada, padre Edson solta os cabelos e veste sua batina vermelha, com uma estola verde. Nesse momento, ele olha para uma garotinha logo na primeira fileira das cadeiras e diz, sorrindo: “Pronto, agora eu sou o padre, né?” Enquanto ainda estava descaracterizado, o vigário tinha percebido a pequena comentar: “Ué, mamãe, cadê o padre”?

Outro momento muito marcante de suas missas em encontros de motos estava para se iniciar. O vigário explica que, naquele momento, representaria de outra maneira a função do turíbolo, que é um vaso suspenso por pequenas correntes, responsável por queimar o incenso. “Nós vamos produzir a fumaça de uma forma diferente, gostaria que nossos amigos motociclistas fossem até suas motos e as acelerassem”, anunciou o padre, mais uma vez sob fundo musical da banda.

Imediatamente, dezenas de motociclistas vão até as suas motos e começam a acelerar continuamente — lembrem-se que esses modelos são extremamente potentes, com 500, 700, 1.000 cilindradas. O barulho é intenso demais (em alguns momentos há um ronco agudo, que parece estar dentro de sua cabeça) e causa uma reação muito forte. Olho ao redor e percebo que todos parecem atravessar um misto de sorriso e torpor. Um integrante de motoclube das antigas, de cabeça branca, olha para mim no meio da barulheira e passa a mão no braço. Ele dá a entender que o barulho é de arrepiar. Posso garantir que era mesmo.

Vigário cabeludo

O Brasil possui 123 milhões de católicos, o que corresponde a 64,6% da população, de acordo com o último censo demográfico, realizado no ano de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na primeira operação censitária, realizada em 1872, ainda à época do Império, 99,72% da população foi classificada como católica.

Nesse contexto, padre Edson, por seu estilo de vida, o triciclo, a maneira de se vestir, a estrutura de suas celebrações, já passou por situações de estranhamento pelas comunidades religiosas, logo contornadas por seu carisma e sua mensagem.

Foto: Ritz Fotografia.

Em uma entrevista, contou que às vezes fazia longas viagens de ônibus sozinho nas poltronas. O que ele pensava ser um conforto, percebeu depois, eram as pessoas evitando a sua figura, sua presença.

“A religião é milenar e passou por vários amadurecimentos. Hoje eu me sinto um padre integrado no meio do povo. Existem aqueles que preferem vestir clésima [dei um Google aqui e vi que é aquele colarinho branco dos religiosos], que gostam de esperar o fiel na porta da igreja, por exemplo”, explica Edson, sobre seu papel com as comunidades. “Assumi para mim que eu precisava ir um pouco além disso, que é pegar e ir atrás dessas pessoas que estão fora”. O pároco acredita que essa filosofia está totalmente alinhada à do Papa Francisco. “Tenho certeza que estou correto, é isso que ele falou. Precisamos sair das fronteiras da nossa igreja”.

Com relação às suas relações regionais, com os demais padres, a diocese e o bispo local, também acredita estar tudo seguindo dentro dos conformes. “Acho que se estivéssemos fazendo algo errado, eu já teria ficado sabendo. Para falar de Deus não é preciso ultrapassar limites”, diz.

Codato faz menção aos atos e ensinamentos de Jesus Cristo. Aliás, ao vê-lo com seus longos cabelos em seu veículo é impossível não se lembrar daquela música Jesus numa moto (2000), de Sá, Rodrix & Guarabyra, aquele som que seu tio que foi meio ripongo sempre bota para rolar nos finais dos churrasco de família. “Cristo andava no meio do povo, pô! Ele tinha sentimentos, até de raiva, como quando chicoteou o pessoal no templo”, comenta em referência ao episódio bíblico narrado no livro de João, em que Jesus expulsa cambistas no Templo de Heródes. “Às vezes eu posso chocar por minha aparência. Mas o Deus que represento vai muito além dessas pequenas coisas, que podem soar pejorativas”, observa.

Pastoral da Estrada

“Estou há cinco anos junto dele, nesse sonho que ele tem de conseguir comprar esse ônibus”, conta a integrante da Pastoral da Estrada, Marylene Granna, 54 anos. Além dos eventos beneficentes a causas específicas — o daquela semana destinava-se a uma creche-berçário local —, padre Edson busca reunir recursos para montar uma espécie de ônibus-capela. “Com esse veículo ele vai para a estrada, ficar três, quatro dias evangelizando e, aos fins de semana, voltaria para as paróquias que ele dirige”, explica.

Foto: Ritz Fotografia.

Marylene é prima de Edson. Praticamente foram criados juntos. Ela afirma que não imaginava, na infância, que o primo seguiria pelo caminho da fé. Hoje, ela integra, na companhia do marido, a equipe que ajuda nos eventos, prepara o material litúrgico, entre outros afazeres. “Estamos juntos na estrada, de moto, triciclo, com chuva, sem chuva. Fazemos tudo por amor à religião”, diz.

Vejo uma figura bastante chamativa ao meu lado. O chapéu de lona amarelada em sua cabeça possui uma grande pena apontando para trás. Pelo jeito é de faisão. Ao invés de um colete de couro, o sujeito possui basicamente um sobretudo, todo cheio de bottons de motoclubes ao redor do Brasil — e até internacionais. Ele está bastante emocionado com a missa, parece tocado com as palavras do padre.

Vou até ele e pergunto sobre esse catolicismo fervoroso. “Não sou católico não, sou evangélico, faço parte da igreja Avivamento Pleno, de Bauru”, ele me disse. Ué, como assim?

“Eu vejo todos os tipos de religião aqui, sou evangélico, mas já vi maçons, espíritas… Agora pouco mesmo tinha um pessoal ateu aqui do lado, todos assistindo à cerimônia”, revela Cícero Vieira, 55 anos. “Nós estamos falando de Deus, de amor ao próximo, de união e, é claro, de um hobby”.

Ao perceber que eu estava produzindo essa reportagem, ele logo foi até a carreta de seu triciclo, toda cheia de apetrechos e retirou uma indumentária bastante única. No mesmo molde de seu roupão feito de couro, Vieira produziu um modelo com aproximadamente 10 mil lacres de latas de alumínio — acumulados em 10 garrafas de PET. Pergunto como está o fígado dele, já pensou reunir tudo isso em latas de breja? Tomo uma bronca. Esqueci que ele tinha falado que era evangélico. Falha nossa, Cícero!

Banho de fé

Durante praticamente toda a missa, as palavras do padre Edson tiveram como tema o amor ao próximo. O próprio evangelho trouxe a parábola do bom samaritano. Em meio ao rock´n roll e as motocicletas, um momento de silêncio absoluto surgiu quando rezaram pelos irmãos que haviam perdido a vida nas estradas.

Para a comunhão, além das hóstias, preparou uma mesa com uma sacola bem grande repleta de pães franceses. “Hoje todos vão participar”, disse o padre. Quem não comungasse, poderia simplesmente ir até a mesa e retirar um pedaço daquele pão.

Foto: Ritz Fotografia.

Uma fila gigantesca tomou conta da Concha Acústica e se estendeu até a praça central de Presidente Alves. Curiosamente, estávamos bem em frente, do lado de fora, da principal igreja do município. Essa fila unia motociclistas de diversas facções, idades e estilos. Tiozões cabeludos com os braços tomados de tatuagem. Caras mais jovens, com suas jaquetas de piloto. Esposas e namoradas que passam os finais de semana nas garupas, tomando vento na abertura do capacete. Havia também cidadãos “comuns”, alvenses, curiosos pela celebração que acontecia bem ali, no coração da cidade. Duas senhoras, pareciam irmãs, com a cabeça bem baixa seguiam até o pároco. Um idoso, de bermuda xadrez, com as meias de jogar tênis levantadas até quase o joelho. Um policial militar, fardado, ajeitando o rádio HT para chegar até o padre e receber a sua hóstia.

Quanta gente. Quantas diferenças reunidas em uma única fila. Nessa hora não resisto. Aproveito o anonimato dos óculos escuros e começo a chorar. Aquele padre que chegou de uma forma tão estranha, atraindo olhares curiosos de todos, passava ali a ser um foco de fé. Praticamente todos daquele grande espaço aberto foram até ele, seja os católicos, que fizeram a primeira comunhão, seja os demais presentes, que foram até a mesa dos pães.

Foto: Ritz Fotografia.

Fiquei pensando sobre o significado da religião. Não apenas do catolicismo. Caramba, já fui em tantas missas, mas por alguma razão, nunca havia encarado esse ritual como um grande momento de integração. Um grande abraço, onde tantos se tornam praticamente a mesma pessoa, sob um único objetivo. Padre Edson teve de vir acelerando um triciclo para me fazer, ao menos durante uns 60 minutos, ter uma visão menos egoísta sobre minha crença.

Não tive mais tempo de filosofar. Um bando de motociclistas começa a me empurrar para frente do altar. Não só a mim, mas a todo mundo. A música Noites traiçoeiras, sucesso do Padre Marcelo Rossi em dueto com o pagodeiro Belo, começa a ser executada com uma levada meio rock funkeado, que lembra o estilo do Rage Against The Machine. O vigário, com um balde de água benta nas mãos, começa a aspergir generosas quantidades nos coletes e capacetes. Era o momento de abençoar o caminho de volta. Não só os equipamentos receberam a atenção divina, mas também os seres humanos. Ao melhor estilo Ozzy Osbourne, o padre Edson despeja toda a água do balde na cabeça da galera, que grita, aplaude e se abraça efusivamente.

Que Deus me perdoe, mas que rolé doido foi esse, hein?

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.