Pichação contra o presidente deposto Mohamed Morsi.
Depois do veredito da segunda-feira passada do Tribunal de Questões Urgentes do Cairo, o ramo egípcio da Irmandade Muçulmana terá que enfrentar um futuro que espelha a maior parte de seu passado: uma vez mais, tornar-se uma organização ilegal.
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Depois de alguma deliberação, o juiz declarou: “O tribunal proíbe as atividades da Irmandade Muçulmana e sua organização não governamental, e todas as atividades das quais esta participa e qualquer organização derivada dela”. Ele também pediu que o governo interino congele os bens da Irmandade e estabeleça um painel para administrá-los até que qualquer apelo seja ouvido.
O tribunal não revelou as bases da decisão, mas isso foi aparentemente motivado pelos esquerdistas do Partido Nacional Unionista Progressista – também conhecido como Tagammu – que afirma que a Irmandade tem ligação com organizações terroristas e é culpada de “explorar a religião em slogans políticos”. Independente de qual tenha sido a razão do veredito, parece que a queda espetacular da Irmandade Muçulmana está completa.
Essa suposta ligação com organizações terroristas teria sido reforçada aos olhos do público egípcio depois da recente tentativa de assassinato do ministro do interior, Mohammed Ibrahim. Apesar de Ibrahim ter escapado ileso do que pareceu ser um ataque suicida, a explosão matou uma pessoa e feriu pelo menos dez; imediatamente, vozes na rua colocaram a culpa na Irmandade: “Claro que foi a Irmandade – eles são terroristas! Quem sabe o que eles vão fazer agora?” gritava um vendedor no centro do Cairo depois de ouvir as notícias no rádio. Apesar de um grupo inspirado na al-Qaeda chamado Ansar al-Maqdis ter assumido a responsabilidade pelo ataque, a Irmandade continua sendo a culpada aos olhos de muitos egípcios.
Depois de semanas de repressões severas que resultaram na morte de mais de mil civis e na prisão da maioria de seus principais membros e ativistas, a potência política da Irmandade Muçulmana se dissipou completamente.
Simpatizantes da Irmandade Muçulmana.
A força está nos números e a última demonstração pública de apoio a Irmandade só conseguiu reunir cerca de 100 manifestantes. Enquanto isso, o governo interino e as forças de segurança capitalizaram em cima do sentimento anti-Irmandade, e agora são capazes de levar dezenas de milhares de pessoas às ruas.
“Está claro desde 3 de julho [quando Morsi foi preso] que o aparato militar e de segurança não está mais seguindo a multidão, mas sim a conduzindo”, explicou Nathan J. Brown, professor da Universidade George Washington e o autor de When Victory Is Not an Option: Islamist Movements in Arab Politics (Quando a Vitória Não É uma Opção: Movimentos Islâmicos na Política Árabe).
A TV estatal e a mídia controlada pelo governo lançaram uma campanha implacável e muito eficiente para demonizar a Irmandade, e a linha oficial não deixa espaço para evitar a questão. É realmente um caso de “ou está conosco ou está contra nós”. Aqueles que assistem o canal de notícias estatal têm um lembrete permanente da perversidade da Irmandade no canto da tela: “O Egito Combate o Terrorismo”.
No entanto, pode-se argumentar que a Irmandade enfrentou ataques mais astutos no passado e sobreviveu. Em janeiro de 1954, depois de resistir a diversas políticas do então presidente Gamal Abdel Nasser, a Irmandade Muçulmana foi dissolvida pelo presidente. Seu governo militar lançou uma campanha extremamente agressiva na imprensa contra a organização e prendeu centenas de seus membros, deixando o grupo completamente desmantelado.
Ainda assim, por meio de 85 anos de história, a Irmandade mostrou tenacidade e vontade de sobreviver. “Trata-se de uma organização cuidadosa por natureza”, disse-me o professor Brown. “Os líderes sentem uma responsabilidade tremenda de manter a saúde da organização e transmiti-la para a próxima geração.”
Ao longo de sua história, há vários exemplos da Irmandade flexionando suas ideologias e princípios para promover sua influência no palco social e – finalmente – político. Isso ficou óbvio em sua apropriação silenciosa da revolução de 2011, a fundação do Partido da Liberdade e da Justiça (PLJ) em abril daquele ano e a decisão ousada de ter um candidato próprio nas eleições de 2012. Agora, depois de toda a violência contra eles em agosto e setembro, sua existência está ameaçada novamente.
Simpatizantes da Irmandade Muçulmana.
“É uma tentativa clara de varrer a existência da Irmandade da cena – não só da política, mas da rede social civil também”, disse Gehad el-Haddad, porta-voz da Irmandade Muçulmana e consultor sênior do PLJ. “Muitas ONGs [da Irmandade] foram invadidas, saqueadas e seus chefes ou curadores foram presos.” Alguns dias depois da nossa conversa, el-Haddad também foi detido.
Alison Pargeter, analista política da região do Oriente Médio e Norte da África, afirma que foi precisamente esse tipo de tentativa de sufocar totalmente a Irmandade durante o mandato do presidente Nasser que fez alguns membros dentro da organização se voltarem para medidas mais radicais.
Em seu livro, de 2012, The Muslim Brotherhood: From Opposition to Power (A Irmandade Muçulmana: Da Oposição ao Poder), ela escreve: “O movimento foi efetivamente bloqueado da metade dos anos 1950 aos 1960 porque muitos dos membros [da Irmandade] estavam presos. No entanto, em vez de diminuir o apetite por ação desses elementos mais militantes, esse período na prisão só os endureceu e os deixou ainda mais determinados a mudar o regime de Nasser”.
Em 26 de outubro de 1954 – nove meses depois de Nasser ter dissolvido a Irmandade – um funileiro de Imbaba atirou no presidente oito vezes, mas não conseguiu acertá-lo. Até hoje, não está claro o quanto a Irmandade sabia sobre o plano, mas a resposta violenta do regime de Nasser a Irmandade depois do atentado praticamente esmagou o grupo. Seis homens da Irmandade foram enforcados e milhares de seus membros foram presos.
A repressão de Nasser também despertou ideologias mais militantes, a mais infame sendo a de Sayyid Qutb, cujo livro Maalim fil Tarik (Marcos ao Longo do Caminho) – escrito na prisão durante o governo de Nasser – inspirou gerações nos conceitos da luta contra a Jahiliyyah (aqueles numa ignorância pré-Islã) dentro do enquadramento da jihad, tanto em sua capacidade mental quanto física.
O medo de um cenário similar se desenrolando hoje é o que permanece mais estridente nas mentes de muitos egípcios, especialmente depois do crescimento recente de militantes islâmicos no Sinai. Comentaristas como Eric Trager, do Washington Institute, sugerem que a deposição de Morsi pode ter sido uma vitória pírrica que levará à “insurgência islâmica indisciplinada”.
O Professor Brown discorda em relação à insurgência, pelo menos num futuro próximo. “Acho pouco provável. A liderança da Irmandade tem se comprometido com um caminho diferente por toda uma geração; acho que isso está bem internalizado.” No entanto, ele reconhece que os “principais líderes podem não estar no controle agora”.
“As prisões de membros [da Irmandade] já ultrapassaram 6 mil, incluindo aí apenas líderes e não os membros de segundo e terceiro escalões de liderança mortos [no massacre de simpatizantes da Irmandade pelo exército nas praças] Rabaa e Nahda”, afirma el-Haddad.
Então, se a cadeia crucial de comando, tão importante para propagar as instruções da Irmandade, foi interrompida, quanto controle a organização mantém sobre seus membros e quanto ela sabe sobre as ações que alguns deles podem cometer?
Curiosamente, el-Haddad acredita que a Irmandade continua capaz de liderar seus membros, apesar das prisões em massa e do rompimento de sua hierarquia vital. Ele afirma que a falta de uma liderança visível não vai levar à fragmentação em grupos dissidentes, como aconteceu na era Nasser: “O mundo é diferente agora – redes sociais possibilitam conectar os jovens egípcios à Irmandade. Isso mantém a mensagem consistente e cria uma liderança dinâmica no mundo virtual”.
Apesar disso, ainda não está claro quais membros poderiam tomar o papel de líderes de fato e espalhar os mandamentos da Irmandade.
A possibilidade de radicais agirem por conta própria – mas sob a bandeira da Irmandade Muçulmana – não pode ser completamente descartada, especialmente com o tempo passando e a frustração aumentando. Os dois últimos componentes do lema da Irmandade Muçulmana são “Jihad é o nosso caminho” e “Morte por amor a Alá é nossa maior aspiração”. O grau em que cada membro adere ou entende esses componentes é o que leva a conjecturas ansiosas, em solo egípcio e no exterior, da materialização de uma “insurgência indiscriminada”.
Quando falei com ele antes de sua prisão, el-Haddad afirmou que “não há radicais na Irmandade Muçulmana” e que os únicos radicais eram aqueles que saíam do grupo, já que a Irmandade é “comprometida com a não violência por princípio”. Ele continuou: “Essa estratégia não vai mudar, apesar das tentativas golpistas de desencadear a violência, da matança brutal de nossos membros e até mesmo de nossas mulheres, filhos e filhas”.
Uma coisa é certa, a determinação de continuar protestando continua. “Nada mudou com essas prisões e mortes – continuamos determinados a derrubar esse golpe, quer isso leve semanas, meses ou mesmo anos”, garantiu el-Haddad. “Não é possível matar uma ideia quando a hora dela chega.” Mas a questão permanece: quem exatamente serão os autores disso e que formas as ações deles vão tomar?
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