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Para onde vou, se a rua é a minha casa?

Um vídeo de Mattia Fiumani sobre a sorte de ter uma casa onde passar a quarentena e os perigos que enfrentam aqueles que não a têm.
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Imagem retirada do vídeo de Mattia Fiumani.

Questionamo-nos diariamente sobre o futuro. Sobre como será o mundo e a nossa vida depois desta pandemia. Teremos emprego? Faremos viagens? Jantaradas com amigos, com abraços e declarações de amor depois da primeira garrafa de vinho? Será que a economia vai resistir? Será que aprendemos alguma coisa com tudo isto?

Questionamo-nos se voltará tudo ao normal ou se nada voltará a ser como antes. Se criámos mecanismos para futuras pandemias ou surtos, se será que a economia faz sentido da maneira como está desenhada, se o amor quebra barreiras mais rápido do que a incerteza as constrói. Andamos stressados, inquietos, presos neste episódio de Black Mirror que nos calhou viver.

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Ilustração por Filippo Fiumani.

Alternamos entre a incerteza e a romantização da quarentena. Tanto choramos a ver as notícias como partilhamos no Instagram os desenhos que temos feito, a arte que temos aprofundado, os livros que temos lido. Ou temos um nó na garganta e contamos o dinheiro que nos resta na conta, ou fazemos yoga com o Youtube e aprendemos novas receitas.

Mas, seja qual for o nosso espírito de hoje, ao menos temo-lo em casa. Debaixo de um tecto, com cama, comida e roupa lavada. Com internet, televisão e computador. Com um leque de escolhas no Netflix e o aquecedor ligado. E essa é uma sorte que nem todos têm.

Mattia Fiumani, realizador italiano de 37 anos - irmão do nosso querido Fiumani - fez um vídeo comovente para nos relembrar exactamente disso: talvez o luxo não seja tanto a romantização do confinamento, mas o simples facto de ter onde passar a quarentena.

O vídeo foi filmado em Los Angeles - cidade em que o número de pessoas sem-abrigo é avassalador e dos mais altos dos EUA - mas o tema é universal. A população sem-abrigo está completamente desprotegida desta pandemia e cabe-nos a nós protegê-los. Sair à rua apenas para comprar o essencial, usar máscaras e luvas, não tocar em nada mas ajudar quem podemos da maneira que acharmos mais sensata. E, claro, lembrarmo-nos da sorte que ainda temos, mesmo dentro deste quadro negro.

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Em Portugal, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados pediu que se faça um rastreio nacional aos sem-abrigo. O vereador Manuel Grilo (BE) propôs que, agora que o governo retirou tantas pessoas das ruas devido à pandemia, se devia pôr em marcha um plano de alojamento social voluntário para não as voltar a mandar para a rua com o fim do Estado de Emergência. Em Lisboa - e depois no Porto - os sem-abrigo alcoólicos serão alojados com acompanhamento e supervisão, para evitar que morram de ressaca nas ruas.

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Apesar dos esforços, não nos podemos esquecer. Nem da sorte que temos, nem de como o nosso comportamento face a uma pandemia pode ser a diferença entre salvar ou tirar vidas. Quando tudo o resto é incerto, como é o caso do momento que agora vivemos, resta-nos apenas a nossa humanidade. Focarmo-nos naquilo que nos une, porque juntos somos mais fortes.

Mattia Fiumani viveu em LA muitos anos, mas está agora de volta a Milão. Foi com as costas quentes da certeza de um Sistema Nacional de Saúde para todos e com a mágoa no coração pelos milhares de mortos e infectados de Itália, que realizou este vídeo sobre o que significa a quarentena quando não se tem uma casa.

Vê o vídeo abaixo e lê a curta entrevista ao realizador.

VICE: A Califórnia é conhecida por ter a maior população sem-abrigo dos EUA. Sentiste muito esse problema lá?

MATTIA FIUMANI: A Califórnia é, de longe, o estado com a maior população de sem-abrigos dos EUA. Los Angeles e São Francisco somam mais de 150.000 pessoas sem-tecto. É praticamente impossível não sentir o peso do problema.

Sentes que já era uma questão com que a City Hall se debatia, ou que é uma cidade que fecha aos olhos ao problema?

A Câmara Municipal de LA tem tentado dar resposta à questão desde os anos 90. Criou uma autoridade independente chamada LASHA (Los Angeles Homeless Service Authority). O rancor para com os sem-abrigos é palpável; pela minha experiencia pessoas, os habitantes de Los Angeles tendem ou a ignorá-los ou, simplesmente, já estão habituados a vê-los nas ruas - o que é terrível e compreensível ao mesmo tempo. A cidade empurra-os de um sitio para outro, sem saber como resolver a questão. Há muitas pessoas que os ajudam, mesmo médicos e enfermeiros, mas não parecem ser suficientes.

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O que te levou a fazer este vídeo?

Não foi planeado. Em 2019, estava eu em LA por outro projecto e tinha algum tempo livre. Lembrei-me do impacto que tinha sentido, anos antes quando lá vivia, ao passear por Skid Row - sendo europeu, onde a questão dos sem-abrigos não é tão grande, tinha-me marcado muito. Por isso voltei. Houve várias razões que me fizeram ligar a câmera, as estruturas dos acampamentos fascinaram-me, a disposição, as cercas, a redefinição de espaços privados, as dinâmicas sociais entre "quarteirões", a forma como as pessoas interagiam e falavam, os jogos de rua. Filmei tudo sem um propósito especifico em mente, até a ameaça da Covid-19 se instalar. Aí, corri para o que tinha gravado, com a sensação de urgência em partilhar - quando te apercebes que te ruma casa onde te confinar pode marcar a fronteira entre vida ou morte, pões as coisas em perspectiva.

Em Espanha e Itália vêem-se cartazes nas janelas que dizem “Romantizar a quarentena é um privilégio de classe”. O que achas disto?

Acho que a quarentena é um privilégio em si, tal como a privacidade é um privilegio. Romantizá-la é uma escolha pessoal, dependendo de como vemos as mudanças que a quarentena trouxe ao nosso estilo de vida. Romantizar a quarentena, a meu ver, nao depende de classe ou hierarquia social - já vi pessoas felizes a espreitarem por mini janelas para cantarem com o resto do bairro, e outras com grandes jardins a queixarem-se - mas poderes isolar-te numa altura difícil como esta, isso sim é o verdadeiro privilégio.

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A mensagem deste vídeo, além de uma consciencialização para um problema sério e latente, é uma mensagem de ânimo, para nos relembrar de dar valor ao que temos. Achas que esta pandemia nos vai fazer acordar e começar a valorizar o que realmente importa, ou achas que temos memoria curta e, mal isto acabe, vamos voltar ao automatismo, ao consumismo insaciável e à indiferença social?

Só depende de nós. Vivemos numa sociedade em que decisões importantes são tomadas nas nossas costas, mas agora fomos despertados para o facto de como a subida e descida da economia global é verdadeiramente dependente das nossas acções diárias. Para consolidar o que aprendemos neste periodo de stress e quarentena, devíamos parar de desvalorizar questões que são, de facto, consequências directas do sistema que aceitámos e para o qual contribuimos. A mudança vem de nos tornarmos conscientes daquilo que já não funciona.

O presidente dos EUA está a colocar a economia acima da protecção da saúde das pessoas. A bolsa à frente da sobrevivência. Vindo de um país europeu, que tem seguro de saúde para todos e que é dos países mais afectado pelo coronavírus, o que sentes sobre isto?

Ver o Trump a lidar com a ameaça da Covid-19 é como ver uma criança de 8 anos a guiar um camião: um cenário muito assustador. Isto é, provavelmente, como a maioria de nós, europeus, nos sentimos quando lemos a sua resposta à pandemia. É uma pessoa sem empatia nem senso-comum, não há muito a dizer sobre isso. Tudo nos EUA já estava enviesado para o lado dos ricos, ele piorou a situação. Somos muito sortudos por vivermos em países com sistemas nacionais de saúde feitos para proteger qualquer um de nós das consequências financeiras de uma saúde débil. Acredito que o sistema americano iria falhar mais cedo ou mais tarde, e esta é uma grande oportunidade para toda a gente - não só os EUA - redefinir valores.

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Porque é que assinaste o vídeo como Directed by a motherf*cker?

Em conjunto com o Daniele Castrogiovanni e Giuliano Fiumani, imaginámos cada frase do vídeo como se fosse dita por uma pessoa sem-abrigo de Los Angeles. Conheço realizadores que se sentiriam reduzidos e insultados por contarem histórias sobre pessoas de um background social bastante menos privilegiado que o seu. Pessoalmente, penso que uma história é uma história - se tens os meios para a contar, devias contá-la. Mas, depois de muitas e muitas horas no meu apartamento em Milão a ver as filmagens que tinha feito, apercebi-me do "lucky motherf*cker" que sou.


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