Pouco mais de duas semanas antes do encontro que eu tinha marcado com a teórica feminista Sophie Lewis, a mãe dela morreu. Ela foi diagnosticada com câncer em estágio 4 em março passado, exigindo que Lewis viajasse entre sua casa na Filadélfia e o hospital em que ela estava internada no Reino Unido – uma jornada que tecnicamente ela não podia fazer porque ainda tem status pendente para um green card. Quando a mãe morreu no final de novembro, ela morreu a milhares de quilômetros de distância, enquanto Lewis e o irmão cantavam “Safe and Sound” da Taylor Swift pra ela por Skype.
No começo daquele mês, numa palestra em Lower Manhattan organizada pelo jornal de artes e-flux, Lewis, que tem 31 anos, refletiu sobre o que alguns podem ver como uma ironia óbvia sobre cruzar o oceano para cuidar da mãe doente: A Verso Books tinha acabado de publicar o primeiro livro dela, Full Surrogacy Now, uma obra polêmica que pede a abolição da família.
Videos by VICE
“2019, além da geopolítica geral mais macabra, tem sido um ano difícil para esta abolicionista da família em particular”, Lewis disse ao público. “Tem sido surreal porque a coincidência temporal do lançamento de Full Surrogacy e essa exigência sem precedentes de mim – estar ao lado do leito de morte de minha parente biológica mais próxima – aumentou as apostas do meu tema de vida para uma intensidade quase insuportável.”
O livro, e sua premissa central, ganharam grande atenção de publicações de esquerda como a Jacobin e The Nation até Tucker Carlson da Fox News, que dedicou um seguimento em junho de seu show para criticar a obra. Recentemente, o colunista David Brooks declarou no The Atlantic que “ a família nuclear foi um erro”. O artigo inspirou uma versão de nicho do popular meme do Drake, com o cantor balançando a cabeça em desaprovação para a coluna de Brooks numa imagem, e sorrindo para Full Surrogacy Now na outra. (“Desisti depois de dois minutos, admito, mas acredite que eu (incrédula) comecei a ler”, Lewis tuitou sobre o artigo do Atlantic. “Tipo… chegamos até o David Brooks?”)
Quando Lewis exige “barriga de aluguel total agora”, ela não está falando de barriga de aluguel comercial, ou “Barriga de Aluguel™”, como ela chama. Em vez disso, ela usa a indústria de barriga de aluguel para construir um argumento de que todas as gestações são um trabalho por causa do imenso trabalho físico e emocional exigido das pessoas que passam por isso. Ela costuma se referir a gravidez como um “esporte extremo”.
Se todas as formas de gravidez são trabalho, podemos olhar claramente para nossas condições atuais de trabalho: “É uma maravilha deixarmos fetos dentro de nós”, ela diz no começo do livro, citando as cerca de mil pessoas que ainda morrem como resultado de gravidez e parto por ano nos EUA – principalmente mulheres pobres e não-brancas. “Essa situação é social, não simplesmente ‘natural’. As coisas são assim por razões políticas e econômicas: as criamos assim.”
E também podemos fazer isso ser diferente, argumenta Lewis. Ela imagina um futuro onde o trabalho de fazer novos humanos seja compartilhado entre todos nós, com “mãe” não sendo mais uma categoria natural, mas algo que podemos escolher.
Nesse ponto, “barriga de aluguel” se tornar um tanto metafórico: Lewis não está pedimos que todos concordem em fisicamente gestar fetos que não sejam biologicamente nossos. A proposta dela é praticarmos “gravidez de substituição total” abolindo a família. Isso significa cuidar um dos outros não em unidades privadas discretas (conhecidas como lares nucleares), mas em sistemas maiores de cuidado que possam nos fornecer amor e apoio que nem sempre podemos tirar das relações de sangue – algo que Lewis conhece muito bem.
Mesmo quem pode chamar sua situação familiar de relativamente “feliz” deve embarcar nesse projeto de demolir sua estrutura essencial, diz Lewis. Lares nucleares criam a infraestrutura para o capitalismo, passando riqueza e propriedade pela árvore genealógica, a concentrando nas mãos de poucas pessoas no topo da nossa hierarquia de classes. Manter a estrutura de família tradicional com o tempo também significou explorar pessoas não-brancas e deserdar filhos queer.
Lewis imagina um futuro onde o trabalho de fazer novos humanos seja compartilhado entre todos nós, com “mãe” não sendo mais uma categoria natural, mas algo que podemos escolher.
Lewis não está preocupada com as mudanças incrementais dentro dos nossos sistemas existentes – Full Surrogacy Now, por exemplo, não faz nenhuma proposta política concreta ou perde tempo se preocupando com questões como desigualdade de salários por gênero e licença-maternidade ou paternidade. Ela se preocupa com possibilidades muito mais ousadas: no futuro utópico de Lewis, a família como conhecemos não existe mais. Todo mundo, independente de gênero, é um pai ou mãe substituto; cuidando uns dos outros.
E não, Lewis não acha que cuidar da mãe doente contradiz sua posição sobre a família nuclear. Se tivéssemos atingido os fins para abolir a família agora, haveria uma vasta rede de pessoas para cuidar de sua mãe em seus momentos finais, não apenas Lewis e o irmão.
“Nada poderia ilustrar melhor a impossibilidade, a injustiça e a escassez estrutural no cerne do lar nuclear privado”, ela disse.
Quando visitei Lewis na Filadélfia em dezembro, nos encontramos num café na frente do apartamento dela por volta das 13h. Tínhamos planejado nos encontrar mais cedo, mas naquela manhã Lewis me mandou mensagem pedindo para adiar um pouco nosso encontro – ela tinha ficado dançando até 5 da manhã na festa de aniversário de sua parceira, Vicky Osterweil. Ela entrou no café parecendo reenergizada, seu cabelo num tom vivo de laranja, que ela tingiu recentemente para combinar com as paredes do apartamento da mãe.
Entre o burburinho de famílias tomando o brunch de domingo, Lewis me contou sobre o caminho meio improvável de escrever um livro sobre gravidez por substituição e a teoria abolicionista da família. Começamos do princípio: Lewis nasceu em Viena, Áustria, onde seus pais trabalhavam como jornalistas, mas passou a maior parte da infância em Genebra, Suíça, e em partes da França, se mudando com frequência por causa do trabalho do pai, que, segundo ela, vinha em primeiro lugar que o trabalho da mãe ou outras necessidades da família.
Esse arranjo era um indicador de outras dinâmicas familiares mais sombrias, segundo Lewis. Uma de suas primeiras memórias é de uma briga com o pai quando ela tinha apenas três anos: Lewis e o irmão estavam cantando a parte da Rainha da Noite da Flauta Mágica, uma opera que eles adoravam assistir quando crianças. O pai repreendeu os dois, dizendo que eles não deviam cantar a parte da Rainha porque o Rei a tinha expulsado, e que ela fez por merecer. Lewis chorou. “Uns sete anos depois, ele me perguntava: ‘Por que não existiu um Mozart mulher? Por que nunca houve um Shakespeare mulher?’”, disse Lewis.
Anos depois, o pai duvidou quando Lewis contou que tinha sido estuprada aos 13 anos, escrevendo para a parceira dela num e-mail que estupro era “bom para o currículo feminista”.
Ela saiu de casa na primeira chance que teve.
Lewis estudou literatura inglesa em Oxford, depois fez mestrado no programa de política ambiental da universidade. Para tristeza dela, o que historicamente era um programa bastante radical, liderado por um professor marxista, acabou comandado por um funcionário do Banco Mundial; um representante do conglomerado de petróleo e gás BP deu uma palestra no primeiro dia de aula. Quando Lewis disse ao professor que ela tinha a impressão que o programa seria sobre desafiar os interesses corporativos representados pelo BP, o professor respondeu: “Você não pode mudar o mundo”.
Lewis completou o mestrado, mas levou suas visões utópicas para outro lugar. Ela organizou um grupo de leitura na universidade dedicado a Manifesto Ciborgue de Donna Haraway, um ensaio complicado que imagina um futuro feminista habitado por criaturas híbridas envolvidas em lutas políticas contra o racismo, misoginia e colonialismo que as criaram. Lewis descobriu o texto quando tinha apenas 16 anos, usando internet discada.
“Claro, não entendi a coisa na época”, ela disse no café. “Mas tem uma alma no texto dela que achei muito excitante, e senti uma afinidade estranha com ele. Era muito reconfortante.”
Lewis então começou a estudar geografia humana – um campo que examina como humanos interagem com seu ambiente – e escreveu uma tese sobre trabalho gestacional, sempre se voltando para ideias de trabalho, gênero, natureza e como eles se cruzam.
No futuro utópico de Lewis, as famílias como conhecemos não existem mais. Todo mundo, independente de gênero, é uma mãe substituta ; somos mães uns para os outros.
Muito do que Lewis escreveu durante e logo depois de seus estudos prediziam Full Surrogacy Now. Mas ela também aplicou sua visão feminista crítica para cinema e televisão, escrevendo sobre Ninfomaníaca, Trama Fantasma, a adaptação de The Handmaid’s Tale da Hulu e um reality show de namoro britânico chamado First Dates. Essa última crítica chamou a atenção da editora da Verso Rosie Warren.
“Crítica” não é exatamente a palavra certa para o que Lewis faz nesses ensaios. Ela não está avaliando o sucesso artístico dessas obras, ela faz mais uma leitura delas para entender como vivemos no mundo como ele é, e como podemos mudá-lo. Trama Fantasma por exemplo, não é uma história estranha de amor, mas prova de que romance é “uma série de atrocidades que as pessoas cometem umas com as outras em nome do amor e da arte, pelo bem do poder de classe”. E The Handmaid’s Tale – um tema favorito de crítica para Lewis – dificilmente é uma distopia feminista que os fãs acreditam. Na verdade é uma utopia feminista, retratando uma fantasia de solidariedade onde todas as mulheres experimentam a mesma forma de opressão, independente de outras categorias de identidade como raça e classe.
Assistindo First Dates, ocorreu a Lewis que o namoro heterossexual na vida real lembra muito a versão encenada e estilizada disso de que os temas participam no programa: “Namoro, como conhecemos e praticamos atualmente, coloca pessoas comuns como oportunidades de investimento aperfeiçoáveis em competição umas com as outras numa variedade de plataformas”, como OkCupid e Tinder, ela escreveu.
“A Verso leu o ensaio e a editora disse ‘A coisa mais incrível nos seus textos é que você é como um alienígena que desceu na Terra para nos dar as más notícias sobre a cultura heterossexual’”, lembra Lewis. “E por isso eles me deram o livro.”
Warren riu quando recitei isso pelo telefone. A abordagem de Lewis da cultura “te permite ver as coisas como elas são”, ela disse. “É uma sensação maravilhosa ter alguém apontando coisas que você nem percebia que aceitava como ‘normal’.”
Lewis fica mais empolgada quando vira algum artefato cultural do avesso. Entre mordidas numa pizza de cogumelos uma noite, ela me contou animada que ela e Osterweil tinham descoberto o segredo para entender Gilmore Girls, que elas tinham assistido recentemente pela primeira vez. A série, um drama familiar do começo dos 00, coloca os homens como personagens marginais enquanto as mulheres dirigem a ação, ela explicou.
“Todas as mulheres são homens e todos os homens são mulheres”, Osterweil acrescentou.
Quando Full Surrogacy Now saiu em maio, os conservadores surtaram. Logo depois do lançamento, o apresentador da Fox News Tucker Carlson convidou Lewis para seu programa; quando ela recusou, Carlson fez o seguimento mesmo assim, passando um trecho de um vídeo no YouTube de Lewis chamando aborto de “uma forma de assassinato” (uma declaração pró-direito de aborto que ela defende). O que se seguiu foi uma enxurrada de abuso na internet, principalmente de espectadores da direita que viram Lewis como uma confirmação de todas as coisas insidiosas que eles suspeitavam sobre o feminismo: Ela era o “Satanás”, “pior que Satanás” ou “a verdadeira agenda feminista desmascarada!”, como Lewis se lembra.
Mas a proposta de Lewis de desmantelar a família nuclear também confundiu a mídia de esquerda. Uma crítica de Jessica Weisberg na The New Yorker, apesar de simpática ao ponto de Lewis – argumenta que Full Surrogacy Now não leva em conta a “misteriosa variedade de amor” que só a maternidade biológica pode oferecer. Mesmo na Jacobin, uma revista socialista, Nivedita Majumdar declarou que o “caminho real para a libertação não é pedir pela ‘abolição da família’”, condenando a “hostilidade dogmática” de Lewis com “a relação entre pais e filhos”.
Lewis descobriu que quando fala sobre abolição da família, as pessoas respondem como se ela “nem estivesse mais falando inglês… como se eu não estivesse mais fazendo sentido sintáxico”, ela disse na palestra da e-flux. “É o emoji de cérebro explodindo no máximo.”
Abolir a família pode não ser uma posição mainstream, mas nos anos 1960 e 70 era uma bem conhecida. Argumentos para a abolição da família vêm desde Marx e Engels (na verdade, até desde Platão), mas a feminista radical Shulamith Firestone leva o crédito por popularizar o conceito para a esquerda moderna. Em seu manifesto de 1970 A Dialética do Sexo, ela identifica a família biológica como a base da opressão das mulheres, porque isso estabelece as mulheres como uma subclasse, as obrigando a suportar o peso bruto do trabalho gestacional.
Ser uma feminista radical durante aqueles anos significava estar familiarizada com esse texto e sua exigência central, que aparecia em panfletos e na literatura da esquerda. Mesmo assim, apenas uma década depois, a defesa da abolição da família tinha praticamente desaparecido do discurso feminista. Em vez disso, o movimento escolheu abraçar os valores familiares, preferindo lutar pela reforma – em vez da aniquilação – da estrutura familiar nuclear.
Nos anos 70 e 80, grupos liberais e líderes feministas individuais argumentavam que a família era a nova fronteira da luta das mulheres por igualdade, considerado os ganhos que as mulheres tinham conseguido recentemente na força de trabalho. “Agora que as mulheres estão começando a ter uma voz ativa na economia e política, a agenda da nação pode realmente começar a incluir a família”, disse Betty Friedan, autora de A Mística Feminina, durante um discurso na Assembleia Nacional sobre o Futuro da Família em 1979, realizada pela Organização Nacional das Mulheres.
A família, disse Friedan, não era mais “território inimigo” para as feministas.
Quando Lewis estava escrevendo Full Surrogacy Now, ela não pensou muito sobre como seus pedidos renovados pela abolição da família poderiam ser recebidos em 2019. “Acho que algumas pessoas entenderam meu livro como uma tentativa intencional de deixar todo mundo puto”, ela me disse, rindo. “Mas não acho que sou estratégica; não acho que minha habilidade é ver o que todo mundo está dizendo e fazer uma intervenção calculada.”
Mesmo assim, Lewis escolheu um bom momento para intervir. Na última década, o feminismo aparentemente se esvaziou de qualquer política real restante para se subordinar a marcas vendendo empoderamento. Num clima pós- Lean In, ainda muito dominado por “girlbosses” e “ She-E-Os”, o feminismo mainstream parece ter se divorciado completamente de suas raízes radicais. Debates contemporâneos sobre papéis de gênero, trabalho das mulheres e políticas sexuais muitas vezes circulam os mesmos argumentos que as teóricas feministas tinham décadas atrás, mas raramente reconhecem que é esse o caso. (O próximo projeto de Lewis vai abordar alguns desses arquétipos feministas contemporâneos, com o título provocador Feminism of Fools.)
O pedido de Lewis para abolir a família também é um pedido para reenergizar e repolitizar o feminismo.
Seria errado dar a Lewis o crédito por redescobrir figuras como Firestone. Mas enquanto essas pensadoras da segunda onda não foram esquecidas, seus primeiros trabalho geralmente são mais citados do que realmente abraçados.
“Neste ponto, as intervenções radicais dessas acadêmicas e pensadoras feministas aconteceram há 30, 40 anos atrás”, disse Natasha Lennard, autora de Being Numerous: Essays on Non-Fascist Life, e amiga de Lewis. “Há essa sustentação estática e hagiográfica dessas ideias, mas não um impulso para elas, pelo menos não na esfera intelectual pública.”
Esse tipo de reverência é um anátema para Lewis. Quando perguntei a ela quais feministas contemporâneas ela admirava, ela mencionou a teórica feminista queer Sara Ahmed, a feminista anti-trabalho Kathi Weeks, e as fundadoras do movimento Wages for Housework como alguns exemplos, mas disse que é “um erro” ter heroínas feministas. “Você as faz e assim está colocando alguém numa plataforma que meio que as amaldiçoa”, disse Lewis. “Elas não continuam aprendendo e crescendo no mesmo grau”, o que pode dificultar novos pensamentos feministas.
Haraway é uma exceção. Esquecendo o que ela mesmo disse, Lewis às vezes se refere a Haraway como seu “ídolo”.
O pedido de Lewis para abolir a família também é um pedido para reenergizar e repolitizar o feminismo.
Mesmo assim, Haraway não tem passe livre. Mesmo que Lewis tenha construído sobre a teoria encontrada no Manifesto Ciborgue e nos primeiros textos de Haraway, ela já criticou alguns dos argumentos mais recentes da acadêmica. Em 2017, Lewis escreveu um ensaio na Viewpoint Magazine, argumentando que Haraway parecia ter traído seus próprios princípios em seu último livro, Staying With the Trouble. Em Manifesto Ciborgue, Haraway imagina um futuro utópico pós-gênero criado por todos os membros da espécie humana; mas em Staying With the Trouble, Haraway pede uma redução dramática da população para reduzir os efeitos da humanidade no clima – uma guinada cínica para a misantropia, escreveu Lewis.
Para surpresa de Lewis, ela recebeu um e-mail da própria Haraway um pouco depois que o texto foi publicado, a convidado para uma conversa com vários grandes nomes do feminismo. Haraway disse a Lewis que não tinha escolha a não ser “argumentar” com o que Lewis tinha escrito: uma crítica bem argumentada. (Haraway me disse que não estava disponível para dar entrevista por causa de uma viagem.)
Lewis fica tímida com isso, mas Haraway deixou claro que vê Lewis como uma continuação do legado de seu trabalho, mesmo se ela o desafia. Muito do que Lewis escreve é fundamentalmente Haraway no sentido de que mesmo às vezes sendo muito denso, a escrita é cheia de imaginação e metáfora.
“Substitutos à frente!”, Lewis exclama no final do livro. “E por substitutos quero dizer gestadoras camaradas, parteiras e outras intervenientes nos momentos mais escorregadios da reprodução social; consertando barcos; nadando para cruzar fronteiras; bloqueando oleodutos que ameaçam lagos; gestando; abortando.”
Algumas horas depois do nosso brunch, Lewis me convidou para assistir Queen & Slim com ela, Osterweil e o amigo Zach num cinema perto do campus da Universidade da Pensilvânia. O filme – um drama sobre um jovem casal negro em fuga depois de matar um policial em legítima defesa – não é, à primeira vista, sobre família nuclear. Mas depois de passar apenas uma tarde com Lewis, eu não consegui deixar de pensar nele dessa maneira.
Slim se preocupa com seu “legado”, que ele inicialmente vê como algo que só pode existir através de uma linhagem biológica. Mas no final do filme, tendo feito a escolha de abandonar sua família para começar uma vida nova com Queen, ele diz que ela é seu legado.
Lewis disse que isso sempre acontece, essa experiência de assistir alguma coisa e notar o subtexto de abolição da família. Isso até pode acontecer assistindo “algum filme de super-herói”, ela brincou.
“A Vick sempre me cutuca quando estamos assistindo alguma coisa que tem a ver com parentesco não-nuclear”, Lewis me disse no dia seguinte num restaurante de lámen perto do consultório de sua terapeuta, com quem ela se encontrou antes do almoço. “Eu já sei quando ela vai fazer. Ela diz: ‘Uhum?! Uhum?!’”
Outro lugar onde Lewis encontrou temas abolicionistas da família foi nos filmes de terror de Ari Aster, Hereditário e Midsommar, sobre os quais ela escreveu em agosto no Commune. O ensaio mostra Lewis em seu melhor, usando a análise afiada que chamou a atenção da Verso e seu humor e inteligência idiossincráticos. Mas também é um vislumbre do lar nuclear de sua infância, que também vemos em Full Surrogacy Now: mesmo que Lewis tenha chegado a sua teoria sobre abolição da família e gravidez por substituição intelectualmente, sua própria crianção teve um papel nisso que é difícil ignorar.
No ensaio, Lewis conta como o pai ensinou ela e o irmão a tratar a mãe com desprezo. Quando seus pais se separaram, eles dividiram a casa literalmente em duas, selando portas e até fazendo uma segunda cozinha.
“Em outras palavras, eu sei como família pode não ser uma situação benigna por ‘padrão’”, escreve Lewis. “Eu sempre soube.”
Na esteira da morte da mãe, ela novamente está passando pelas tensões de sua família. O pai de Lewis a culpa por uma das tentativas de suicídio da mãe de muito tempo atrás, mandando mensagens maldosas para ela e o irmão pelo Facebook e e-mail.
Mas mesmo sem as intervenções do pai, enquanto ela crescia, o relacionamento de Lewis com a mão não era do tipo uma “variedade misteriosa de amor”. Isso tornou o luto difícil pra ela, especialmente quando tantas pessoas parecem considerar a perda – de um de seus “parentes biológicos mais próximos”, como Lewis disse em sua palestra em novembro – sendo uma das maiores perdas que alguém pode sofrer.
“Muita gente me disse ‘Se ame nos próximos dias como ela te amava’”, disse Lewis. “E eu penso ‘Olha, essa é uma péssima ideia!’ Tenho que fazer muito melhor que aquilo, assim como todos os meus amigos.”
No último dia que passamos juntas, visitei a casa de Lewis. Originalmente, ela pretendia me levar para uma curta caminhada pelo bairro, mas estava chovendo, então ficamos nas poltronas da sala dela. Ela fez chá-verde, me servindo numa caneca escrito “Tenho 99 problemas e o patriarcado heteronormativo é basicamente todos eles”. Para minha alegria, o gatinho laranja dela, Robespierre, pulou no meu colo.
Lewis descreveu seu bairro no oeste da Filadélfia como um “vilarejo”: incluindo o Gold Standard, o café simpático onde nos encontramos pela primeira vez, um estúdio de tatuagem, um estúdio de ioga “woke”, um jardim comunitário, um salão de cabeleireiro “punk” e uma loja de antiguidades onde Lewis e Osterweil tinham um voucher de $50, um presente de casamento que elas ainda não tinham usado mais de um ano depois da cerimônia. Dias antes, caçando um lugar para sentar no Gold Standard, notamos alguém indo embora que na verdade era uma amiga de Lewis: ela disse que planejava se matricular numa aula no Brooklyn Institute que Lewis daria naquele mês na livraria anarquista Wooden Shoe Books.
Logo depois que achamos um lugar de frente para a vitrine, acenamos para Osterweil, que estava fumando um cigarro enquanto atravessava a rua.
“Eu sei como família pode não ser uma situação benigna por ‘padrão’. Eu sempre soube.”
Sentada ao meu lado no apartamento dela, Lewis me mostrou um livro de memórias que a mãe tinha feito, cheio de fotos dela brincando com baldes de água e sorrindo numa praia – um lembrete de seus próprios argumentos em Full Surrogacy Now de que, figurativamente, devemos retornar para a “água” onde fomos gestados. É nesse período, diz Lewis, quando estamos suspensos em fluído amniótico, que as fronteiras do nosso eu físico estão em fluxo. Reconhecer que isso também é verdade na vida – que estamos conectados de maneira inextricável, família biológica ou não – criaria as condições para um “parentesco radical”.
Ela também me mostrou um dos zines que ela e Osterweil deram aos convidados em seu casamento, que incluem declarações dos amigos e promessas uma para outra. Essa última parte não pode ser exatamente chamada de “votos”, porque na verdade são desvotos: da instituição do casamento, de família biológica, e das disfunções que essas coisas podem criar. (Elas tiveram uma cerimônia mais tradicional em Boston, a pedido da mãe de Osterweil.)
Passar um tempo com Lewis é sentir que o mundo que ela imagina está próximo. Percebendo ou não, muitos de nós já estão familiarizados com os argumentos dela para abolir a família. Quando falamos sobre violência doméstica e abuso infantil – quando alguns de nós se veem dentro de unidades familiares que cometem esses crimes – reconhecemos que, na linguagem dos filmes de terror, a violência está vindo de dentro da família.
Podemos não chamar isso de “abolição da família”, mas muitas pessoas começaram a criar a comunidades de cuidado que Lewis quer ver concretizadas. Pessoas queer constroem “famílias escolhidas”, assim como outras pessoas marginalizadas que depende umas das outras fazem para sobreviver. E mesmo dentro de lares nucleares tradicionais, pais podem se pegar dizendo que é “preciso todo um vilarejo” para criar os filhos – reconhecendo que esse não é um trabalho que uma pessoa pode fazer sozinha.
De muitas manerias, Lewis nos mostra que a família já foi abolida. Ao mesmo tempo, a “gestação de código aberto totalmente colaborativa” que ela imagina continua distante no horizonte. Como na famosa citação do filósofo Fredric Jameson, Lewis considera que “se é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo, talvez seja ainda mais fácil imaginar o fim do capitalismo que o fim da família”.
Mesmo assim, Lewis vê pistas desse futuro por toda parte. Quando ela está com sua parceira e amigos, ela se vê “cuidada por muitos”. Eles não são seus parentes biológicos, mas são parentes entre si num sentido ainda mais verdadeiro: eles escolheram cuidar um dos outros sem os ditames da estrutura familiar nuclear. Na utopia feminista de Lewis, a família não desapareceu; ela se tornou mais selvagem, mais abundante e menos restrita.
Alguns dias depois que a mãe morreu, Lewis confundiu uma mulher atravessando a rua com ela. “Naquele momento, isso provocou uma torrente intensa de lágrimas”, Lewis escreveu no Twitter. “Mas agora estou pensando nisso e percebendo que ela não evaporou simplesmente. Ela sempre estará aqui, mesmo depois que parar de assombrar pedestres nas ruas da Filadélfia.”
Mães, claro, estão por toda parte.
Siga a Marie Solis no Twitter.
Matéria originalmente publicada na VICE EUA.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.