"Não quero nada dar seca a mim próprio, muito menos às pessoas que me ouvem"
Éme. Foto por Gonçalo Soares

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Entrevista

"Não quero nada dar seca a mim próprio, muito menos às pessoas que me ouvem"

Falámos com o Éme sobre velhotes, a Graça, fazer música com os amigos, crescer musicalmente e sobre o porquê de o futuro muitas vezes estar na forma como se ouve o passado.

Nos últimos anos tem-se repetido a sensação de que chegados a esta altura damos conta de que o ano que termina foi o melhor no que respeita à música portuguesa. A verdade é que temos tido mesmo óptimos anos, que cada vez existem mais artistas nacionais a percorrer os palcos deste País e que se tem tornado mais frequente as novas gerações de músicos cantarem em português. Não sei dizer ao certo se isto será uma coisa positiva ou negativa, seja para eles ou para a música feita por cá, mas de certeza que a muita gente já cansava (e ainda cansa) o asco de inglês que muitos praticavam.

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Em 2017, Éme - João Marcelo de seu verdadeiro nome - destacou-se com a edição de Domingo à Tarde. E agora posso dizê-lo com toda a convicção, porque a porcaria do ano está para acabar e o disco continua a ser essencial em qualquer lista que se preze. É uma clara evolução na sua sonoridade, carregado de uma frescura louvável, mas que, ainda assim, aparenta ter espaço para progredir. Domingo à Tarde - e daqui a alguns anos posso dar por mim a estar completamente errado - empurra João Marcelo para a linha-da-frente da nova música portuguesa.

Esta conversa já tem um tempo. Ainda se suava em bica só de existir. Aconteceu no histórico Botequim, de mangas curtas, com uma visita guiada de turistas na terceira idade pelo meio e uns quantos copos de cerveja, antes de Marcelo ir dar uma aula de música. Já tinha ouvido algumas entrevistas de Éme e notava-lhe sempre um humor bem colocado. Depois, ouvi-o falar na apresentação dos 'Novos Talentos Fnac' e percebi que é um artista extremamente consciente de si próprio. Se Éme é parte do futuro, estamos muito bem.


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VICE: Falarias na rua ao Éme de há sete anos atrás?

Éme: Fisicamente acho que não o ia reconhecer. Talvez não. (risos) Se calhar até usava isso como desculpa para evitar o gajo: "Ahh, és tu? Não te tinha reconhecido".

Até porque muita coisa mudou até chegares a este disco…

Mudou tudo. Não há quase nada igual.

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O que estavas a fazer nessa altura?

Ora, estamos em 2017… Ya, devíamos estar com os Passos em Volta, com quem comecei, que era com o resto da malta toda. A Maria e a Julia das Pega [Monstro], o Sar - que agora é o meu agente - e o [João] Dória.

As ambições eram diferentes nessa altura?

Por acaso acho que isso é a cena que não mudou. Tal como na altura, agora - pelo menos falando por mim, mas acho que também posso falar pelas Pega, ou pelo resto da malta, ou pelo Sar como agente ou por qualquer pessoa - acho que que a ambição é sempre e só, tocar. Acho que isso é a única cena que não mudou. É fazer a música que queremos ouvir. E já nos esforçávamos na altura, não é como se o esforço viesse só com o dinheiro, ou com o facto de alguém nos querer ouvir. Não nos esforçamos porque nos pagam para fazer isto. Fazemos isto só porque sim. Sempre foi por isso e continua a ser.

Éme. Foto por Gonçalo Soares

Vocês na Cafetra Records começaram como um grupo de amigos, em que muitos faziam música. Deduzo que não todos…

Quando começou todos fazíamos música. Aliás, quando começou nem todos fazíamos música e começámos todos a fazer.

Era uma coisa de amigos, que começou a gerar algum burburinho, mas agora parece que todos subiram a outro patamar. Sentes que é fixe para vocês estarem todos, ou quase todos, de alguma forma projectados?

Sim, é interessante, mas também não é óbvio nas nossas vidas. Nenhum de nós, acho eu, deixa de sair à rua por causa disso ou sequer é reconhecido em sítios básicos, como um centro comercial.

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De certeza que já és reconhecido na rua…

Eh pá, se calhar sim, mas ninguém me chateia. Não é que seria propriamente "chatear", com todo o gosto acederia a qualquer pedido, mas no fundo parece que não mudou mesmo quase nada. A não ser que, de repente, em vez de ligar ao Sar todos os dias só porque sim, ligo-lhe e ele diz-me que há um concerto e que vou ganhar algum dinheiro. Ou que alguém pediu para ir tocar num sítio que eu nunca imaginei que iria. Isso é mesmo fixe. E dares concertos e estar ali o pessoal todo a cantar, é uma sensação boa.

Então, no fundo, achas que o que mudou realmente é que mais pessoas querem ouvir as vossas canções?

É só isso! Acho isso óptimo. É uma mudança perfeita.


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De qualquer maneira, o som de cada uma das bandas da Cafetra, neste caso em particular o teu som, também tem sofrido bastantes transformações. Concordas?

Sim, claro que sim.

Mas, ninguém se vendeu…

Nem ninguém se vai vender… acho eu. O som foi-se apurando. Gosto de acreditar que nenhum de nós é burro. Eu, por mim, não sou pessoa de andar a dar com a cabeça nas paredes até a parede cair. Prefiro bater na cabeça uma vez e depois pensar: "Se calhar vou tentar mudar a forma como faço as coisas". Não quero nada dar seca a mim próprio, muito menos às pessoas que me ouvem e também não quero nada dar sempre mais do mesmo.

Senti uma diferença - talvez não gigantesca, mas um salto - na tua sonoridade do último disco para este. O que é que influenciou esta mudança?

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Já percebi algumas coisas sobre este disco. Coloco-me sempre desafios, que não interessa estar…

… a nomeá-los agora?

Isso. Mas, de qualquer maneira, quando estou na fase de compor, coloco-me sempre um desafio do tipo "Vou fazer uma música só com três acordes, ou vou fazer um refrão com a mesma progressão que a introdução"… Sei lá!

Cenas mais técnicas.

Mas desta vez foi a primeira vez que, musicalmente, me desafiei mais. Não em termos técnicos, mais em termos de brincadeira. De brincar com a estrutura, de fazer uma estrutura infinita. Música que havia de continuar para sempre, ou em que podia fazer um fade out. Música, no fundo, quase guiada pela voz. É uma cena que me parece que veio do Lourenço [Crespo], ele faz bué isso. A voz e a palavra são sempre o guia máximo.

E isso foi uma das coisas que mudou muito. No disco anterior ainda estava, talvez, a ensaiar uma estrutura clássica. Introdução, verso, refrão e tal. Aqui já foi desvairar um bocado e, ao mesmo tempo, ir ao mais clássico, que é a cena da Adélia. Também veio muito do facto de a Mariana [Moxila] entrar na equação. Mudou tudo. O processo da banda foi diferente e ao mesmo tempo foi igual… nem sei bem explicar.

Por acaso sinto que ela foi um dos elementos catalizadores para este disco, porque a voz dela está muito presente. É um elemento muito importante. Também falas muito no disco do facto de ela ter entrado na tua vida. Achas que acabaste por fazer florescer aqui, não só uma renovação da tua música, mas também, talvez, uma certa música portuguesa?

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A minha cena sempre foi - mais uma das coisas que não mudou - música folk, sempre fui fascinado. Quando era miúdo era Americana, entretanto percebi que era tudo folk. Que nós também o temos. Sempre tive a ambição de fazer um disco nesta linha, só que só desta vez é que percebi como é que talvez me poderia aproximar desse formato à séria. Um formato verdadeiramente folk. E percebi que não era a fazer folk americano que ia lá chegar.

Morreu a Adélia e o Tiago Pereira [da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria] lançou-nos uma série de desafios. Propôs algumas músicas, disponibilizou repertório dela que ainda não tinha disponibilizado antes. E tinha lá músicas incríveis. Não só músicas, situações dela. Ela era mesmo engraçada. Cenas dela… cenas deles! E tu olhas para aquilo e ficas, tipo, esta senhora é como aqueles velhinhos dos filmes do Tarantino, ou aqueles velhos bué de cool, estás a ver?

Outra coisa boa é que o site deles ficou bem melhor. Vejo thumbnails daquilo, encontro os velhos mais pausados e vou ver os vídeos. "Ihhh, este cota tem um granda bigode" e, pumba, vamos lá ver. Tantas vezes são músicas lindas! Ou coisas, que não são propriamente músicas. E isso foi algo algo que me passou a interessar. Entendi que o folk passava um pouco por aí, por essa malandragem dos cotas. Depois descobres uns velhos marados que cantam todas as músicas das Almas Santas e percebes ligações com as Pega Monstro. Acho que o trabalho do Tiago [Pereira] é importante e agora é a fase em que, se calhar, é mais fácil dar frutos. A Mariana sempre teve a cena do cavaquinho e tem uma linguagem própria. O Lourenço ajudou-me, porque no disco dele pôs a nu que dá para fazeres o que tu quiseres com as letras. Estás à vontade, não tens que ter medo de nada, percebes? Dá para tudo, cabe tudo numa música. E o [Miguel] Abras tem as Putas Bêbadas, não é? Está tudo ligado, é fácil.

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É quase uma "Justice League", cada um tem o seu talento.

É um bocado. E eu sou o sanguessuga daquilo tudo.

O fogo, a água, a terra… não é?

É um bocado. Tipo navegantes da lua. (risos) Sendo que no caso seria eu a Sailor Moon, o que não sei se é verdade!

Outra coisa que me parece ter influenciado a tua música foi a mudança para Lisboa. É verdade?

O regresso a Lisboa.

Há uma frase na tua música que representa muito bem a gentrificação da cidade, que é: "A Graça está mais nova que Alvalade".

Ah, pois é. Nessa música ninguém me cita, porque é aquela música que as pessoas dizem: "Ya… e depois há aquela". Mas, de facto, essa música… ainda gosto dela.

Como também moro na Graça, consigo muito bem perceber a tua vida aqui no Bairro. Temos uma vida muito idêntica, vivemos na mesma zona, saímos nos mesmos sítios…

Pois, a Graça tem uma onda mesmo fixe.

Nós percebemos porque é que este sítio é importante para nós e, se calhar, somos também um elemento dessa gentrificação…

Sempre me senti como uma porcaria de um elemento da gentrificação porque, por exemplo, lembro-me do Estádio [bar/café no Bairro Alto]. O Estádio sempre existiu. Carrego esta culpa comigo e claro que não tenho culpa e até era pretensioso da minha parte estar a pensar que eu é que teria mudado alguma coisa, mas o Estádio, de repente, ficou com neons à porta. Aquilo até pode ainda ser fixe, mas subitamente mudou.

Não sei bem em que ponto é que estou em relação a isso. Eu faço tudo na Graça, completamente. Aqui temos o lado completamente turístico e o lado de que não se pode falar, aquele sítio que nós sabemos. [Éme começa a descrever o Estrela, entretanto encerrado. Uma associação na Graça , aberta desde as 23 e picos até tarde (ou cedo). Um local onde era possível, para além de ouvir música, beber cerveja a média temperatura, fumar cigarros e encontrar muitos artistas locais de todas as áreas em clima de tertúlia]. Tem os dois lados. Apesar do ritmo dos turistas ser bastante irritante, nós nem percebemos o que eles vêm cá ver. Na Graça não há um museu, há muitos azulejos e miradouros.

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E há pessoas que pagam airBnB para terem a nossa experiência de cá morar, neste bairro cheio de velhotes.

Sim, devem pensar: "Eu também quero ir um bocadinho ao bairro dos velhotes". (risos) Ya, é bué estranho.

Outra coisa que se sente no disco é a tua frustração de jovem precário. Um misto de jovem precário e boémio?

Sim, é uma mistura. Não podemos também fazer a balada do coitado. Nós escolhemos a vida que temos.

E há músicas, como "Comboio", onde isso é bem explorado.

É isso. Lembro-me também da "Puxa a Patinha", mais antiga, da altura em que toda a gente estava a emigrar.

Agora não sabemos bem o que está a acontecer.

Agora ainda não percebemos. O pessoal está a voltar, já temos algum dinheiro e isso é estranho para nós.

Eu continuo com o mesmo.

Eu, por acaso, tenho mais.

Mas também…

Pois, fiz o disco e tive mais concertos. (risos) Mas, sinto que o pessoal tem mais dinheiro, fala-se menos disso.

Mas, pronto, achas que há uma influência política mais marcada neste novo trabalho, que pode intensificar-se daqui para a frente?

Não sei, por acaso. Não sei, porque não quero ser o gajo que está a explorar as discrepâncias.

De forma militante, é isso?

Não quero ser o gajo que está a dividir. Ao mesmo tempo não quero ser um “palhacinho”, mas não me apetece estar sempre nisso. Claro que vou ter a minha opinião, não vou ser um cantor sem sítio.

Acabas sempre a fazer política, porque estás a falar da tua situação.

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Tudo é política. Nesse sentido vai lá sempre dar, porque também nunca vou ser aquele cantor tipo Tiago Bettencourt, que canta só sobre o amor ou o desamor e tudo muito ligeiramente. Não me interessa ligeireza. Antes pelo contrário, interessa-me sempre acrescentar mais camadas. Mais e mais, sempre a acrescentar. Isso não passa necessariamente pela politização. Agora, claro que reavivar um património… nem precisas de o fazer, tudo é uma afirmação política. Quero acrescentar camadas para as pessoas que percebem a minha língua e que percebem a forma como falas, mesmo que não seja a forma como eles falam, porque não considero a minha língua a de toda a gente. O meu objectivo é transmitir a coisa da minha forma.

Voltando a Domingo à Tarde. Parece que gostas muito de trabalhar com o B Fachada. Verdade?

Curto bué a pessoa que ele é, sempre fui fã dele, muito antes de o conhecer, desde o Viola Braguesa…. É intenso. Ele acrescenta sempre uma camada perfeita, a camada que tem de acrescentar. Para mim ele é o grande produtor. Se tenho que trabalhar com um, que seja sempre ele. Para além de ser, provavelmente, o maior escritor de canções que está a fazer coisas, também é um produtor como já não há, um bocado à antiga. Assim com um método. Não está lá para fazer os beats, mas para fazer a ligação entre nós e o estúdio. E peço-lhe muitos conselhos, porque sou amigo dele e vou a casa dele, tenho ocasião para isso.

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Tenho uma gratidão enorme por ser amigo dele e lhe poder perguntar coisas. Consulto-o muito, basicamente. Mas é natural, não subo à montanha para pedir conselhos. É algo natural, como com o resto do pessoal. Se há um problema e a solução não é óbvia, eu sou pessoa para consultar. Adoro trabalhar com este pessoal, para mim são perfeitos. Agora [depois deste disco] não sei, tenho sempre que mudar muitas coisas. Desaprendo sempre. Faço um álbum e depois já não sei como se fazem álbuns, o que é muito sinistro. É andar sempre na corda bamba.

Mas isso também é bom, não?

É bom, mas demorou-me três anos a fazer o Domingo à Tarde. Passei por um desconforto gigante de não ter o álbum pronto e não saber como vai ficar. Três anos no tempo de vida de uma pessoa de 22 - até aos 25 - é muito. Ponho ali tudo. Apesar de trabalhar pouco, ponho lá muito. (risos) Espero que o próximo não demore tanto tempo. Gostava muito de me compensar a mim próprio e quem me ouve. Havia gente que me estava sempre a perguntar pelo disco…

E agora são mais pessoas a ouvir-te.

Pois. E agora, se calhar, são mais pessoas. As pessoas perguntavam e eu "Epá, desculpem! Sou bué preguiçoso, não sei o que dizer". (risos) Mas acho que não, estou mais concentrado… e tenho uma renda para pagar! (risos)


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