Guia Noisey para começar a curtir um Miles Davis
Ilustração: Tara Jacoby.

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Guia Noisey para começar a curtir um Miles Davis

O próprio Miles costumava dizer que mudou os rumos da música "cinco ou seis vezes", e era uma pressuposição modesta. Então, por onde começar?
TJ
ilustração por Tara Jacoby
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Traduzido por Stephanie Fernandes

Guia originalmente publicado no Noisey US.

Desde o dia em que trocou St. Louis por Nova York, na adolescência, até o último dia de sua vida, Miles Dewey Davis III foi o filho da puta mais suave deste planeta. Não digo "filho da puta" em tom vulgar; era a expressão favorita de Miles. Em sua autobiografia de 400 páginas, ela aparece 312 vezes. Miles usava a expressão "filho da puta" com a mesma frequência que mineiros usam "trem". Não tinha uma definição inerente para Miles; o significado mudava de contexto para contexto. É impossível resumir a excêntrica vida de Miles, ou sua carreira única como músico, pintor e ícone da moda, em uma só palavra, expressão ou frase, mas essa até que dá conta: Miles Davis era um real motherfucker.

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O próprio Miles costumava dizer que mudou os rumos da música "cinco ou seis vezes", e era uma pressuposição modesta. Com apenas 18 anos de idade, desempenhou um papel crucial na revolução bebop dos anos 40, como escudeiro do maior astro do gênero, Charlie Parker. Em 1949, ele liderou o noneto que produziu os primeiros álbums de cool jazz, uma série de discos de 78 rpm que mais tarde foram compilados sob o título Birth of the Cool (1957). Seus grandes quintetos — responsáveis por transformar músicos como John Coltrane, Cannonball Adderley, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Chick Corea e Tony Williams em astros lendários — gravaram álbuns marcantes de quase todos os grandes subgêneros de jazz da época, como hard bop, post-bop, modal jazz e fusion.

Para o desgosto dos fãs e dos críticos, a música de Miles vivia mudando; ele jamais gravou o mesmo álbum duas vezes. A amizade de longa duração com o compositor Gil Evans o conduziu a experimentações com orquestrações de jazz, obras que até hoje, 60 anos depois, soam inovadoras, originais. Há quem diga que Miles deixou o jazz para trás e partiu para o fusion com álbuns como Bitches Brew (1970) e On the Corner (1972). E depois de uma aposentadoria de cinco anos, Miles voltou a tirar onda dos tradicionalistas ao abraçar os modernos sons sintéticos da década de 80, experimentação que culminou em uma rixa ferrenha com o um trompetista-prodígio, o adolescente Wynton Marsalis, tão tempestuoso quanto Miles era em sua tenra idade.

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A vida de Miles Davis foi tão polêmica quanto sua obra, dada uma arrogância sem limites, fruto de uma criação relativamente privilegiada. A mídia conferiu a ele a alcunha de "Príncipe da Escuridão", por conta de suas críticas peçonhentas aos americanos brancos e seu comportamento errático nos palcos, que por vezes beirava a hostilidade, principalmente diante de plateias brancas. Seu senso exuberante de moda e a queda por carros luxuosos fizeram dele um alvo da polícia branca, racista, perseguição que gerou uma série de embates notórios com as autoridades de Nova York. Ele não foi lá muito fiel às centenas de mulheres com quem saiu, e chegou a reconhecer a culpa por várias instâncias de violência doméstica. Não sobrava ninguém. Miles, com sua distinta voz áspera, implicava com tudo e todos.

Mas ecoava outro ruído de Miles Davis, além dos insultos: o som de seu trompete. A voz áspera e o som perfeitamente límpido do trompete simbolizam a dualidade de Miles. Assim como Kanye West, era um cara difícil de engolir na mesma medida que era um gênio, e isso não é pouca coisa; o cara era mesmo um filho da puta genioso.

Miles do bebop

Miles Davis se mudou para Nova York em 1944, em princípio para estudar na Julliard, prestigiada escola de música, mas o prodígio de 18 anos de idade tinha segundas intenções: encontrar Bird. Charlie "Bird" Parker havia liderado a revolução bebop nos clubes da 52nd Street e do Harlem. Miles ficou obcecado pela arte assim que ouviu Bird e Dizzy Gillespie tocarem em St. Louis, anos antes, e assim como Bob Dylan se mudou para Nova York para conhecer Woodie Guthrie, Miles obstinou-se a encontrá-lo e conquistá-lo. Bird simpatizou com Miles logo de cara, e não demorou para passarem a tocar juntos. Os solos descontraídos de Miles eram o complemento perfeito para o furacão de notas de Parker, e Miles dispôs a agendar e organizar shows e gravações para a banda. Bird era tão viciado em heroína, que era um martírio fazê-lo comparecer, e Miles servia de escudeiro e enfermeiro para o gênio conturbado.

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A playlist está em ordem cronológica, para que você possa ouvir o progresso de Miles com o tempo e discernir sua identidade junto ao mentor. Bird é claramente o grande destaque das primeiras gravações, e os críticos de início rotularam Miles como uma imitação barata de Dizzy Gillespie. Contudo, as contribuições de Miles para o movimento bebop, tanto nos palcos quanto fora deles, foram cruciais para disseminar a arte fora de Nova York, onde o público branco costumava tratá-la com o mesmo temor e desprezo com que tratou o rap nos anos 80.

Playlist: "Now's the Time, Pt. 4" / "Yardbird Suite" / "Donna Lee" / Milestones" / "Half Nelson" / Dewey Square" / "Scrapple From The Apple" / "Klaunstance" / "Marmaduke"
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Miles das cordas

Miles Davis conheceu Gil Evans em 1947, quando Evans demonstrou interesse em fazer um novo arranjo para "Donna Lee" — a primeira composição de Miles Davis a ser gravada —, para tocar com a Claude Thornhill Orchestra. Miles costumava se referir a Evans como seu melhor amigo, e o usava como exemplo de que "nem todas as pessoas brancas são malévolas". Evans era um compositor complexo, visionário, e Miles, com seu trompete prístino, era o muso perfeito para ele. Graças à formação em Julliard, ainda que incompleta (o músico deixou a instituição porque "aquela ladainha toda era branca demais"), Miles compreendia conceitos musicais complexos que Evans queria introduzir às orquestrações de jazz.

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Birth of the Cool, gravado em 1949 e lançado com esse título somente em 1957, foi o primeiro trabalho colaborativo da dupla, e conduziu o jazz para uma direção completamente diferente do que o bebop. Conforme sugere o título, os discos originais da sessão, de 78 rpm, representam o nascimento do cool jazz, embora Miles tenha cedido boa parte do crédito por criar e estabelecer o gênero a Chet Baker e Gerry Mulligan, pois passou os quatro anos seguintes viciado em heroína. Depois de largar a heroína, Miles retomou a parceria com Evans e gravou Miles Ahead (1957), uma releitura sofisticada do jazz de big bands, e Porgy and Bess (1959), adaptação da ópera de George Gershwin. Mas o projeto mais ousado e controverso do duo foi o álbum Sketches of Spain, de 1960, marcado por uma forte influência da música clássica espanhola do início do século 20. Talvez tenha sido o primeiro objeto do debate "Mas isso é mesmo jazz?".

Playlist: "New Rhumba" / "Boplicity" / "Will O the Wisp" / "Gone" / "Venus De Milo" / "The Duke" / "Saeta" / "Deception" / "There's a Boat That's Leaving Soon for New York"
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Miles dos quintetos

Quando Miles Davis tocou "Round Midnight" com um quinteto no Festival de Jazz de Newport, em 1955, Aram Avakian aconselhou George, seu irmão, executivo da Columbia Records, a fechar um contrato de gravação com Miles imediatamente, mas George se negou a fazê-lo, pois Miles era visto como um drogado. "Não seja tolo", Aram cortou o irmão. "Mas você ouviu isso? É a melhor atração do festival!" Meses depois, Miles assinou um contrato exclusivo com a Columbia, e produziu obras-primas em quinteto para o selo durante 15 anos.

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Os quintetos de Miles estabeleceram o padrão de qualidade para os improvisos de jazz, e testaram os limites da teoria musical. O First Great Quintet [Primeiro Grande Quinteto] — formado por Miles, John Coltrane, Philly Joe Jones, Paul Chambers e Red Garland, com a participação ocasional de Julian "Cannonball" Adderley compondo um sexteto — é responsável por álbuns que muitos consideram os melhores do jazz de todos os tempos, incluindo o Round About Midnight (1957), referência à performance que o levou à Columbia, o Milestones (1958) e o imortal Kind of Blue (1959), o álbum de jazz mais vendido da história.

Miles queria o grupo unido a todo e qualquer custo, mas Coltrane brilhava demais para um papel coadjuvante. No início dos anos 60, Miles, já beirando os 40 anos de idade, montou um novo grupo com adolescentes completamente desconhecidos — Herbie Hancock, Tony Williams, Ron Carter e Wayne Shorter —, e os jovens prodígios serviram de ferramentas para Miles lapidar sua arte. Os experimentos do grupo com melodias, acordes e polirritmos nada ortodoxos resultaram em trabalhos fundamentais para a era pós-bop, que incorporou elementos do free jazz sem se submeter de todo ao gênero; Miles taxava o free jazz de conspiração branca para destruir a música negra. Miles Smiles (1967) representa o ápice do Second Great Quintet [Segundo Grande Quinteto], ao passo que Sorcerer (1967), Nefertiti (1968), Miles in the Sky (1968) e Filles de Kilimanjaro (1969) são marcos na virada elétrica da música de Miles.

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Playlist: "Dr Jackle" / "Conception" / "Freedom Jazz Dance (Evolution of the Groove)" / "So What" / "Milestones" / "Footprints" / "Black Comedy" / "Nefertiti" / "Ah-Leu-Cha" / "'Round Midnight - Live (1955 Version)"
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Miles do fusion

O pai de Miles Davis era dentista e membro proeminente da comunidade negra de St. Louis. Miles não viveu a miséria que a maioria de seus pares enfrentou, e sempre o atormentavam por isso. No fim dos anos 60, a panela de pressão estourou. A morte de John Coltrane em 1967 arrefeceu o jazz, e Miles notou que seu público passou a ser em grande parte composto por brancos. Então, empenhou-se na busca por uma forma de se reconectar com jovens negros, que haviam se voltado para o rock e o funk. Graças ao jovem pianista Herbie Hancock e ao baixista Ron Carter, Miles foi apresentado aos sons eletrônicos do piano elétrico e do baixo elétrico, e no início dos anos 70, Miles parecia mais um astro de rock do que músico de jazz.

Sua incursão pela música elétrica começou com o Second Great Quintet, com o álbum Miles in the Sky (1968). Todavia, um ano depois, ele terminou com o quinteto e gravou o álbum In a Silent Way (1969) em parceria com dois tecladistas (Herbie Hancock e Chick Corea), um guitarrista (John McLaughlin) e um organista (Joe Zawinal). Os críticos da época acusaram Miles de maria-vai-com-as-outras por conta de seus álbuns de fusion. Isso pode até ser verdade, até certo ponto, mas é preciso admitir que ele deu à luz dois dos melhores álbuns de jazz fusion: Bitches Brew (1970) e On the Corner (1972).

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Embora hoje seja considerado um de seus melhores álbuns, On the Corner foi um fiasco na época, o que fez com que Miles se aposentasse na metade dos anos 70, período em que sucumbiu ao alcoolismo, uso de cocaína e promiscuidade. Quando voltou, nos anos 80, continuou a incorporar sons eletrônicos modernos. No entanto, com a sonzeira sintética da década, seu trabalho pós-aposentadoria passou a soar datado; Tutu (1986) é o ponto alto do período. Miles e Jimi Hendrix chegaram a planejar um álbum em conjunto pouco antes da morte repentina de Hendrix, em 1970; infelizmente, ficou no plano do ideal.

Playlist: "Stuff" / "John McLaughlin" / "Black Satin" / "In A Silent Way/It's About That Time" / "Frelon Brun (Brown Hornet)" / "Right Off" / "Tutu" / "Jo-Jo"
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Miles romântico

Miles Davis ficava fulo quando lhe indagavam sobre seus álbuns antigos; ele queria que ouvissem as novidades. O sentimento se resumia a uma famosa declaração do próprio Miles: "Sabe por que parei de tocar baladas? Porque adoro tocar baladas". Embora sua relação progressista com a música tenha produzido diversas inovações, que permanecem em evidência na música contemporânea, um dos maiores desgostos para os fãs é que, justamente por conta dessa relação, ele parou de compor baladas. O som límpido do trompete de Miles e o zumbido do silenciador, colados sobre acordes de piano em cascata, são capazes de derreter os corações mais gélidos. Vale lembrar que a relação de Miles com as mulheres era por vezes revoltosa, e o lado obscuro de seu caráter merece fortes críticas. Contudo, separando o joio do trigo, as baladas de Miles são sem dúvidas as músicas mais lindas do século 20 e, ainda no século 21, compõem a trilha perfeita para ficar de conchinha.

O grosso das baladas de Miles foi gravado no meio dos anos 50, quando ele trabalhava com o Prestige. Depois de fechar com a Columbia, o volume de baladas diminuiu, mas como já era de se esperar da discografia de Miles, o período nos presenteou com suas melhores músicas para fazer amor. "Someday My Prince Will Come", do álbum homônimo de 1961, é uma rendição atemporal da música da Branca de Neve; foi uma das últimas vezes que Miles tocou com Coltrane. E se prepare: as duas baladas de Kind of Blue — "Flamenco Sketches" e "Blue in Green" — vão encher seus olhos de lágrimas, mesmo na enésima vez que escutar.

Playlist: "Someday My Prince Will Come" / "It Never Entered My Mind" / "Flamenco Sketches" / "In Your Own Sweet Way" / "My Old Flame" / "Stella By Starlight" / "When I Fall In Love" / "I Fall In Love Too Easily" / "I See Your Face Before Me" / "Blue in Green"
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Jeff Andrews é um redator de Nova York. Siga-o no Twitter.

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