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'Far Cry: New Dawn' tem um problema em como retrata a cultura Hip Hop

No novo game da série, o rap sobreviveu ao fim do mundo, mas a que preço?
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Imagem: Divulgação.

Se tem uma coisa que Far Cry: New Dawn infere é que o hip hop vai sobreviver ao fim do mundo.
O novo jogo de ação em mundo aberto da Ubisoft chegou recentemente ao PS4, Xbox One e PC e apresenta um cenário pós-apocalíptico em que tudo tá na merda, o que não é lá muito diferente do que tantos outros jogos, filmes e séries já mostraram, mas pelo menos aqui o lugar é cheio de grafites da hora que dão cor às ruínas do passado e onde as batidas de hip hop ainda saem dos aparelhos de som. Quem não deixou o hip hop morrer nessa realidade foram os vilões do jogo, os Salteadores - uma gangue que domina e saqueia o pouco que restou das regiões devastadas. São eles os responsáveis pelos desenhos e pinturas espalhadas pelos cenários e que curtem ouvir Die Antwoord, Run the Jewels, Princess Nokia e outros artistas com o volume no talo quando aparecem.

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Salteadores dão mais cor e beleza ao mundo de New Dawn. Imagem: Divulgação.

Esse mínimo traço de personalidade em bonecos que só deveriam existir pra se ter em quem
atirar no jogo foi o que mais me chamou a atenção nas primeiras horas de Far Cry New Dawn.
Se os Salteadores não fossem um bando de cuzões que pegam cachorros pra usar como
comida, eles seriam mais legais de dar rolê do que os sobreviventes que o personagem
principal precisa ajudar.

O hip hop faz até das atividades mais corriqueiras de Far Cry, como dominar bases inimigas,
algo mais interessante. Primeiro pelos locais serem um festival de cores e rabiscos, o que
visualmente causa um impacto bem legal. Segundo porque matar todo mundo na surdina
enquanto as caixas de som expelem rimas dá um gás a mais de adrenalina pra uma mecânica
tão batida.

Ao contrário do som alto de rap nas bases inimigas, no refúgio dos “mocinhos” – chamado de Prosperity – a trilha sonora é de folk e country que saem das cordas de um violão calmamente tocando por um personagem. Um contraste que não é só de estilo, mas que também quer passar uma mensagem.

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"Toca Legião aí". Imagem: Divulgação.

Só depois de um tempo é que cai a ficha: os Salteadores são os únicos personagens ligados a
cultura hip hop no jogo. Isso os caracteriza, quase como que legitimando eles serem “os caras
maus”. E isso é um problema.

Mesmo que hoje em dia a cultura hip hop seja mainstream, ela ainda é marginalizada e associada a violência, muito por causa da origem em bairros pobres, de comunidades negras e imigrantes nos EUA.

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Um dos berços do movimento foi o bairro do Bronx, em Nova York, lá nos anos 70, época em que o lugar tinha gangues que saiam na porrada o tempo todo (o clássico filme The Warriors representa uma boa alegoria sobre a época). Documentários como Rubble Kings e Hip-Hop Evolution mostram que muitos dos primeiros DJs e MCs eram, na real, ex-membros dessas gangues, que trocaram a violência pela arte como forma de expressar a raiva e injustiças sociais que sofriam.

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Imagem: Divulgação.

Não é à toa que o estilo dos Salteadores em Far Cry: New Dawn, com pinturas no corpo e roupas rabiscadas, pode ser comparado as gangues de Nova York dos anos 70, que também tinham nas vestimentas e cores um traço de sua personalidade.

Também não é coincidência que, na abertura do jogo, nos é informado que os Salteadores “vieram do leste” (New Dawn se passa em uma região fictícia no Estado de Montana, nos EUA) e são liderados pelas gêmeas Mickey e Lou, duas mulheres negras – um detalhe que tem ainda mais significado com o rap e o grafite do grupo.

O grande problema em como Far Cry: New Dawn trata o hip hop é associá-lo à violência e brutalidade dos vilões, dando força a uma visão pejorativa que essa cultura ainda carrega. Com isso, a Ubisoft acaba perpetuando um preconceito estrutural, ainda mais por estarem ligadas a personagens negros.

O pior é que a própria Ubisoft acertou antes. É só lembramos de Watch Dogs 2. No jogo de 2016, a cidade de São Francisco é vista em todas as suas cores e culturas, em que a arte de rua é tratada como forma de expressão de combate, de revolução e de ativismo, principalmente no papel da personagem Sitara. Porém, no novo Far Cry, a empresa vacilou feio nesse aspecto.

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Os grafites nas bases inimigas. Imagem: Divulgação.

Far Cry 5 se envolveu em controvérsias ao abordar o tema de fanatismo religioso em um jogo que se passa nos EUA, ainda mais em uma época de Trump e de movimentos de extrema-direita ressurgindo. Em entrevistas, os executivos da empresa insistiam em tratar o jogo só como entretenimento, um que não contém comentários políticos de forma proposital.

Já recentemente, um dos chefões do estúdio Ubisoft Massive, responsável por The Division 2, declarou que eles não podem ser abertamente políticos nos jogos por ser “ruim pros negócios”.
The Division 2, por sinal, é um jogo que se passa na CAPITAL DOS EUA após sofrer um ATAQUE TERRORISTA. Porém, para Alf Condelius da Ubisoft, tudo não passa de fantasia: “[o jogo] é um universo que criamos pras pessoas serem boas em um mundo decaindo lentamente. Mas tem que gente que gosta de colocar política nisso e nós nos afastamos dessas interpretações o quanto pudermos, porque não queremos tomar partido na política atual”.

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Imagem: Divulgação.

A cultura hip hop ser a característica de uma gangue violenta comandada por duas mulheres negras não é algo interpretativo ou que está fora de um contexto político. Esse aspecto estar no jogo e da forma como é apresentado possui, sim, um significado. Negar isso é negar a própria mídia dos videogames como produto cultural.

Se o rap e a arte grafitti sobreviveram ao apocalipse pra serem retratados dessa forma, por mais que eles deem cor (literalmente) e acrescentem pra ação do jogo, era melhor terem acabado junto com o fim do mundo mesmo.

Far Cry: New Dawn foi lançado em 15 de fevereiro para PS4, Xbox One e PC. A cópia do jogo foi cedida pela Ubisoft.

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