Água Batizada, lançado em agosto de 2016, foi uma mudança brusca para Negro Leo. Depois de Niños Heroes (2015) e Ilhas de Calor (2014), discos enérgicos, ruidosos e viscerais, o cantor e compositor maranhense (atualmente baseado no Rio de Janeiro) resolver mover-se por um caminho com menos solavancos e investir na sonoridade psicodélica e abordagem direta e clara nas canções do álbum.
Indo na direção inversa à que a maioria dos artistas percorre, do experimental ao pop, Leo deixou alguns resquícios de tortuosidade pelo caminho — como no final caótico de “Fera Mastigada” e experimentos vocais de “Marcha pra Longe”.
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Prestes a fazer um show oficial de lançamento do álbum no Mundo Pensante em São Paulo nessa quarta (8), Leo, em entrevista por telefone, me disse que acha absurdo a categorização de Água Batizada como um disco “experimental”, e me conta como suas diversas referências (Tame Impala, Zé Ramalho, Boogarins) tiveram um papel em construir as canções tortas do álbum.
Qual foi o primeiro esboço de Água Batizada que você se lembra de ter rascunhado?
A primeira coisa que pintou foi a canção que se chama “I Have No Light that Shines Inside Without You”. Mas não pintou a letra nem nada. Eu sabia mais ou menos o que eu queria falar ali, e eu sabia que eu queria que fosse em inglês, por mais precário que fosse. Quando pintou a melodia, eu cantava e já saiam os fonemas de língua inglesa, já era uma coisa construída assim. Mesmo porque, como eu queria que fosse uma canção romântica, banal, eu achei que faria sentido se fosse em inglês. O Água Batizada começou com essa primeira música, mas depois outras foram pintando e, inclusive, eu fui resgatando outras canções. O disco é um apanhado de músicas, um pouco diferente do Ilhas [de Calor (2014)] e do Niños [Heroes (2015)], que têm uma unidade formal mais contundente, mais aparente. O Água Batizada tem sim uma unidade sonora, o som é de uma maneira muito homogênea por conta dos efeitos, da produção do Estevão [Casé], do [Eduardo] Manso, e minha também. A gente sabia onde queria chegar em termos sônicos. Acho que o que acaba juntando as canções é o fato dele soar igual.
Em termos líricos, não há nenhum fio narrativo que você tenha seguido?
Eu pensei, mas pensei para aquele contexto mesmo, porque eu já sabia que ia ser um disco costurado em som, ou que nem tivesse costura, algo que já nasce como um monólito. Porque o Ilhas de Calor e o Niños, no caso da minha discografia, são discos muito “é aquilo ali”, sabe? Vai soar igual o disco inteiro, a ideia é a mesma, o recado é um só. Só que no caso do Água Batizada não, tem muita coisa ali. Tem canções de amor como “Fera Mastigada” e “I Have No Light”, tem canções de otimismo muito grande como “Marcha pra Longe”, tem canções como “Esferas” — que eu não diria que é uma canção, diria que é uma obra-prima. Uma canção em português, tá vendo, que barato? É uma obra-prima, uma música romântica da Ava [Rocha, cantora, compositora e parceira de Leo]. Se tem uma obra-prima no disco, acho que é essa canção dela. Uma canção maravilhosa, com uma letra muito inspirada, muito incrível. E o som se adequa perfeitamente à letra, porque a letra é enorme então parece que é um negócio meio Bob Dylan com aquele violão, um negócio de transe. Enfim, uma onda muito louca. Também aborda esse universo sentimental.
E quando você decidiu apanhar todas as músicas e gravar o disco?
A princípio tinham essas duas músicas, “I Have no Light” e “Noite”, do Pedrinhu Junqueira, que eu sempre quis gravar. Eu sentia uma espécie de conversa entre essas canções; duas canções lentas, sem bateria, só pinta uma percussão no final. Achei que ali tinha uma conversa bem legal, e depois foram pintando outras ao longo do disco. De “Ritos Confortáveis” pintou a guitarra do Manso, que me fez compor “Fera Mastigada”. Foi a última música a ser feita, porque eu fiz pensando naquela onda de guitarra que ele tinha construído. Pensei, vou construir uma harmonia pra ele fazer a mesma coisa. Então, são canções similares. Tem uns pares de canções similares no disco. É bem legal nesse sentido.
Às vezes eu dou entrevista sobre o Água Batizada e eu não tenho muito o que dizer [risos]. Eu acho que é um disco que pega mais o que você tem pra falar sobre ele. Aí vem um pessoal falar que é experimental, o pessoal delira, né? Porra, bicho, na hora que eu tô precisando ganhar dinheiro e fazer o negócio direito o pessoal fica chamando de experimental. Me ajuda, sabe? [risos] Mas é um disco que eu gosto muito; você vai no show, você se diverte, curte aquela onda. Tem uma sonoridade muito característica, envolvente. Aí você pega as referências do Tame Impala, que tem dois discos muito bons, que foram referências pro Água Batizada. O Connan Mockasin, do Forever Dolphin Love sobretudo, que é uma grande referência pra mim. Aí você tem o Boogarins, aqui no Brasil. E mais alguma coisa ou outra. O que eu acho que tem no disco e que talvez seja uma coisa que crie uma acomodação mais interessante pra gente, porque estamos mais acostumados a ouvir, é Tropicália, rock baiano. As canções do Água Batizada são canções que se parecem mais com essa coisa aí, Tim Maia, Hyldon — “Fera Mastigada”, pra mim, é por causa de “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda”. Aí você coloca uns efeitinhos pra emular esse negócio de Tame Impala, Mockasin, Boogarins e já vira uma outra história que o pessoal tá mais acostumado a ouvir. Então foi uma grande sacada esse disco. Eu não sei porque chamam de experimental, isso realmente é um problema.
É muito claro que o Água Batizada é um disco de canção, mas me parece que, em momentos, você tenta desconstruir ou brincar com isso um tanto, principalmente com a voz.
Isso eu entendo muito mais como a relação com a técnica empregada pra gerar esses efeitos, que é no caso essa onda que eu tô falando, o pop. Você ouve aquele disco do Tame Impala, o Lonerism, que tem “Be Above It”, e é bom pra cacete, aquilo vai te deixando numa loucura. Eu nunca vi esses caras ao vivo, mas eu quero muito. Aí tem o Mockasin, que também trabalha em alguma medida com essa adulteração da voz. E eu, na verdade, não fiz nada diferente. Eu trabalhei aí. O que eu acho que tem de diferente são as composições, que são mais arraigadas, numa coisa de Brasil mesmo, de todo cancioneiro. A galera fica chata nessa coisa de Tropicália e esquece que, porra, Zé Ramalho, Raul Seixas, são meus ídolos. É muito mais Zé Ramalho e Raul Seixas que Chico Buarque, Caetano.
Me fale um pouco mais sobre a letra de “Noite”.
Nem a letra nem a música de “Noite” são minhas, eu fui intérprete. As duas são do Pedrinhu Junqueira. Ele tem um trabalho com a Julia Shimura, que é companheira dele, chamado Haicu. Eles lançaram um disco muito interessante, tem canções incríveis. [“Noite”] é sobre uma amiga nossa que cometeu suicídio em 2014. Ele foi o único que conseguiu analisar e criar uma conexão pra além do fato. É uma música belíssima.
Como você juntou o time de músicos que participou da gravação de Água Batizada?
Eu tava a fim de fazer um disco, porque já tinha lançado o Niños e eu sempre gosto de começar a gravar no início do ano pra pensar em lançar depois, no melhor momento. O Estevão queria fazer um lance, gravar algo, e eu falei pô, total, só que eu não tenho música [risos]. E ele disse “tá bom, vamos gravar o que tem e vai surgindo”. O disco levou cinco ou seis meses pra ser gravado, não foi numa sessão num estúdio já com tudo ensaiado. A gente construiu do estúdio. Rolou todo um processo de realização do disco in loco, não teve uma pré-produção, o negócio foi sendo feito. O Estevão me chamou pra gravar e eu já sabia que a gente ia produzir; eu, ele e o Manso. Aí a gente foi pensando nuns nomes e surgiu Marcelo Callado, Domenico Lancellotti, Pedro Dantas, Bruno di Lullo, Bruno Schiavo — que é de São Paulo e vai tocar com a gente no show além do Curumin, do di Lullo, do Pedro Dantas e do Manso, mas não vai ter nem o Domenico, nem o Marcelo. O Bruno [Schiavo] fez uma música pro disco, então ele foi pro Rio e gravou o violão nela, que é “Atalhos”, uma música loucona. Aí foram pintando Roberto Pollo, Ricardo Dias Gomes, que gravou um órgão. Teve todo esse trabalho. Mas foi uma galera pequena. Geralmente, num disco longo, a galera quer colocar orquestra, sopro, quer fazer aquela maluquice aí chama gente pra cacete. Mas foi simples o disco, deu tudo certo.
Como funciona a sua relação artística com a Ava — e como as músicas compostas por ela acabaram em Água Batizada?
Bom, “Borboletinhas Multicoloridas”, por exemplo, pintou porque ela recebeu uma encomenda de uma loja de roupa de criança, a Fábula, pra ela fazer uma música pra uma campanha publicitária deles. Aí a Ava começou a escrever uma letra e pesquisar sobre borboletas, Marrocos. Terminou a letra e perguntou se eu não queria fazer a música. Eu tava tocando violão então foi assim, bem natural, bem rapidinho. Essa foi esse caso, mas cada uma é um caso. “Esferas” já é dela e eu vi ela tocar e falei, essa música eu tenho que gravar. “Noite Invertida”, ela tinha uma letra já há um tempo e eu fiz uma música em cima porque gostava muito da letra. São essas três no disco. A gente não senta e fala “vamos compôr”, não existe isso. Ela vai gravar o disco agora e tem uma porção de música dela, eu tenho uma porção de música minha, e algum dia a gente pode fazer uma coisa junto. A nossa vida é meio louca, ela viaja muito, eu evidentemente também. Mas é isso, tá tudo lindo.
Negro Leo | Água Batizada no Mundo Pensante
Mundo Pensante – São Paulo, SP
8/2, às 22
R$ 20