FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Infelizmente, Gwen Stefani sempre foi problemática

Não percebi que a ex-vocalista do No Doubt tinha um legado de apropriação cultural até ficar mais velha. E por causa disso, não sou mais fã dela.
Gwen Stefani em seus clipes
Fotos por Getty e Interscope Records.

Quando eu era adolescente no final dos anos 1990, Britney Spears e Christina Aguilera dominavam a discussão do pop mainstream. A música e o visual perfeitamente empacotados delas atraíam crianças e adolescentes, que queriam ser como as estrelas pop no topo das paradas que apareciam em todo lugar. Enquanto eu também compartilhava essa fascinação, a Gwen Stefani me intrigava mais que ninguém. Não só Stefani tinha um som diferente, mas como vocalista da banda de rock da Califórnia No Doubt, ela cultivava um visual legal mas um tanto tosco.

Publicidade

Fazendo a transição para uma jovem adulta, minha fascinação com Stefani se transformou em crítica quando tive idade suficiente para entender o que estava realmente acontecendo: apropriação cultural.

Gwen Stefani in Indian skirt and bindi

Foto por Ron Galella, Ltd./WireImage

Semana passada, o disco de estreia solo de Stefani, Love. Angel. Music. Baby., fez 14 anos e não consigo deixar de pensar que aquela estética cercando a marca de Stefani seria considerada bastante ofensiva pelos padrões de hoje. Apesar do fascínio e elogios, o jeito como Stefani cooptou diferentes culturas para a paleta branca americana vem desde o começo da carreira dela e deve ser dissecado.

Em 1995, depois de lançar dois discos de estúdio pela Interscope, o No Doubt lançou Tragic Kingdom. O disco de ska punk era muito influenciado por pop, rock, grunge e reggae, e solidificou o lugar da banda nas paradas de sucesso com hits como “Don't Speak”, “Spiderwebs” e “Just a Girl”.

Como vocalista, as escolhas de moda de Stefani rapidamente se tornaram infames. No meio dos anos 90, a cantora descendente de italianos e ingleses começou a usar um bindi e comercializou a decoração sagrada, originalmente usada por mulheres do Sul da Ásia para práticas religiosas e culturais. Stefani, que namorou o colega de No Doubt Tony Kanal, que é descendente de indianos, era vista nos clipes do grupo com o símbolo cultural como parte de seu look distinto. Sem reconhecer e processar a gravidade das ações de Stefani quando mais nova, continuei a curtir a estrela pop e fiquei aguardando ansiosa o lançamento de seu projeto solo, sem questionar sua estética problemática.

Publicidade

Depois de se separar informalmente do No Doubt no começo dos 2000, Stefani embarcou numa carreira solo que catapultou a cantora para o estrelato. Em 2001, Stefani colaborou com a rapper Eve em “Let Me Blow Ya Mind”, que ganhou o Grammy de melhor colaboração de rap. Desviando de sua origem no rock, Stefani passou os anos seguintes experimentando com seu som e seu visual. Em 2004, a cantora lançou seu disco de estreia Love. Angel. Music. Baby., que contava com colaborações de Pharrell Williams e dos rappers Eve e Andre 3000. Flertando com synth pop e hip hop, o álbum produziu o primeiro e único hit número um dela nas paradas dos EUA, “Hollaback Girl”.

Nesse ponto, apesar de seu sucesso notável, o gosto de Stefani por apropriação cultural estava se tornando difícil de ignorar. Já familiarizada em tirar inspiração de culturas de minorias e replicá-las por lucro, o comportamento prejudicial da cantora conseguiu escapar de julgamento, em parte, porque isso foi antes de “apropriação cultural” se tornar um termo tão falado, e também porque não tínhamos as plataformas das redes sociais de hoje para iniciar um diálogo público.

Gwen Stefani with Harajuku girls

Foto por Stephen Lovekin/WireImage

“Hollaback Girl” foi um sucesso comercial e ficou no topo da parada da Billboard por quatro semanas consecutivas. Apesar do álbum ter estreado no número 5 da Billboard 200, a introdução das Harajuku Girls, quatro dançarinas japonesas que acompanhavam Stefani em clipes e eventos promocionais, se tornou o foco da carreira da cantora. O grupo fez várias aparições nos clipes de Stefani e acabou se tornando uma ferramenta de marketing poderosa na carreira solo dela. Introduzidas no clipe de “What You Waiting For”, as Harajuku Girls eram estrategicamente posicionadas no enquadramento enquanto Gwen cantava: “Mal posso esperar para / Voltar pro Japão / Conseguir muitos novos fãs / Osaka, Tóquio / Vocês, garotas de Harajuku / Caramba, vocês têm um estilo louco”.

Publicidade

O segundo single, “Rich Girl” com Eve mostrava novamente as garotas sendo usadas como acessórios para elevar a agenda de Stefani de relevância cultural. No single chiclete, ela até dizia que via as Harajuku Girls como uma posse sua: “Consegui quatro garotas de Harajuku (uh huh) / Me inspirando e vindo me salvar / vou vesti-las de um jeito muito louco, vou dar nomes a elas (yeah) / Love, Angel, Music, Baby / Rápido, venham me salvar”.

Numa matéria da Salon de 2005 sobre as Harajuku Girls, a repórter Mihi Ahn diz: “Stefani bajula o estilo Harajuku em suas letras, mas a apropriação dela dessa subcultura faz tanto sentido quanto a Gap vendendo camisetas anarquistas; ela engoliu uma cultura jovem subversiva no Japão e vomitou outra imagem de mulheres asiáticas sorridentes e submissas”. Ahn também apontou que as Harajuku Girls eram obrigadas por contrato a falar apenas japonês em público, “apesar de rumores de que elas são americanas mesmo e que o inglês delas é normal”.

Infelizmente, a fetichização dela não parou aí. No clipe de “Luxurious” com Slim Thug, Stefani aparecia com uma estética influenciada pelas cholas da Califórnia. O clipe também tem cenas onde Stefani intencionalmente lembra a pintora mexicana Frida Kahlo enquanto quebra uma série de piñatas, e se acaricia usando uma camiseta da Nossa Senhora de Guadalupe.

Em algum momento de 2006, quando Stefani ainda estava fazendo turnê com as Harajuku Girls, comecei a perceber que a tendência da cantora em fazer apropriação cultural era um grande problema.

Publicidade

Mas foi só quando entrei no Twitter anos depois que comecei a ver mais como a cultura pop muitas vezes suga a vida de comunidades marginalizadas para sobreviver, e percebi que várias pessoas compartilhavam pensamentos similares sobre as ações ofensivas de Stefani.

Quando perguntaram sobre as Harajuku Girls em 2014, Stefani disse descaradamente a TIME que não se arrependia da decisão de contratar e apresentar as garotas, apesar das críticas. Ela continuou dizendo: “Vai ter sempre dois lados em toda história. Para mim, tudo que fiz com as Harajuku Girls era como elogio e sendo uma fã… Sério, foi tudo por amor”.

É quase como se Stefani pintasse uma história revisionista onde ela se vê como uma ponte ligando as culturas americana e japonesa, em vez de explorar mulheres asiáticas por dinheiro e fama. E mesmo depois dos erros de sua carreira solo, Gwen se viu em mais polêmicas desde seus dias com as Harajuku Girls. Em 2012, depois de voltar com o No Doubt, a banda tirou do ar seu clipe “Looking Hot” um dia depois da estreia depois de críticas sobre o retrato estereotipado de pessoas indígenas. Em 2016, a cantora foi criticada de novo por ter dançarinos vestidos em peças de inspiração africana da coleção Primavera/Verão de 2016 “wild Africa” da Valentino durante um episódio do The Voice.

Apesar de tudo isso, Stefani conseguiu manter uma carreira próspera sem nenhum grande cancelamento. Numa cultura onde as redes sociais se orgulham de chacoalhar carreiras de sucesso, Stefani de algum jeito conseguiu se safar de ter suas infrações culturais usadas contra ela.

Olhando agora, as adaptações de Gwen de outras culturas pareciam mais truques feitos numa tentativa de fazer ela parecer mais “culta” do que as outras garotas do pop. O que Stefani não entendeu é que cooptar culturas inteiras – especialmente como uma mulher branca privilegiada – nunca é OK. O cerne da apropriação não é só roubar a estética de alguém, também é lucrar com uma comunidade marginalizada sem demonstrar nenhum tipo de respeito.

Como Fergie, Miley Cyrus, Katy Perry, Iggy Azalea e incontáveis outras mulheres brancas na cultura pop que vieram depois de Stefani, apropriação cultural é apenas uma fórmula de sucesso que usa a estética de pessoas não-brancas. Cooptar culturas se espalhou para as pessoas normais que não veem problema em usar a cultura de outra pessoa como fantasia. Recentemente, mulheres brancas que fazem “cosplay” de negras nas redes sociais confirmaram a ideia de que mulheres brancas se forçam em culturas/raças que não têm nada a ver com elas. Sim, aparentemente esse é um problema de mulheres brancas famosas ou não-famosas também.

Um pedido de desculpas sincero de Stefani seria um passo na direção certa, que mostraria amadurecimento e coragem, mas duvido que ela vá admitir sua derrota tão cedo. Enquanto a indústria continuar recompensando artistas brancos por “tentar algo novo”, as ações da artista vão permanecer impunes. Felizmente, eu cresci, construí uma consciência forte, e deixe Gwen Stefani para trás.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.