Capa do 808s & Heartbreak

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Como o '808s & Heartbreak' normalizou a vulnerabilidade do homem negro no rap

Em novembro de 2008, Kanye West usou seu coração partido como inspiração para criar um dos discos mais sentimentais e melódicos do hip hop até então.

Em setembro de 2008, Kanye West estava com o coração partido. Depois da morte de sua mãe em novembro de 2007, um rompimento com sua noiva alguns meses depois e a dificuldade de se adaptar à recente vida de popstar que tinha adquirido com o sucesso de seus três álbuns lançados até então, The College Dropout (2004), Late Registration (2005) e Graduation (2007), o rapper entrou com uma cabeça totalmente diferente no processo de gravação, produção e composição de seu quarto álbum de estúdio. O resultado, gravado entre setembro e outubro e lançado no dia 24 de novembro, é 808s & Heartbreak.

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Completando dez anos de existência nesse sábado, 808s talvez seja o disco do Kanye que recebeu a recepção mais estranha de início. Se seus álbuns anteriores eram marcados por rimas afiadas e batidas e samples bem montados, este mostrava o rapper cantando mais do que rimando, com um autotune pesado por cima e batidas de 808 melódicas e minimalistas, muito mais puxadas pro synthpop e R&B. Como Kanye mesmo definiu, o "primeiro álbum new wave feito por um negro" — não à toa "Coldest Winter" sampleia "Memories Fade", do Tears for Fears.

College Dropout e Late Registration começam com skits que davam coesão ao álbum, Graduation inicia com a canção "Good Morning", rimada no esquema padrão verso-refrão-verso. A canção que abre 808s, "Say You Will", por sua vez, constrói um clima muito mais atmosférico, é cantada ao invés de rimada e não parece nada feita para a rádio, ao contrário do restante do hip hop na época que, entre Chris Browns, Lil Waynes e T.I.s, tocava à exaustão. O outro de mais de três minutos da música — um dos melhores e mais únicos momentos de 808s, na minha singela opinião — deixa essa premissa ainda mais clara.

"Welcome to Heartbreak", com um refrão cantado por Kid Cudi — a primeira parceria da dupla que hoje atende por Kids See Ghosts — e "Paranoid" conseguem um apelo mais pop, mas o trio de singles encaixados entre as duas ("Heartless", "Amazing" e "Love Lockdown") continuam a sequência minimalista-autotunada-magoada que a primeira faixa começa. "Street Lights", "Bad News" e "Coldest Winter" formam a tríade do ápice da tristeza do álbum, e "See You In My Nightmares", com Lil Wayne, se destaca como a única música que poderia ser encaixada em algum outro disco que Kanye tinha feito (provavelmente Graduation) sem parecer totalmente fora do lugar.

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Os versos de Kanye são, quase sempre, muito mais tristes e introspectivos do que ele tinha permitido que fossem até então. Não era novidade para ele estar fora das expectativas geralmente direcionadas a um artista de hip hop — em 2004, afinal, ele estava rimando sobre faculdade usando uma camisa pólo rosa entre os rappers gangsta que lideravam as paradas da Billboard — mas dessa vez suas letras não se preocupavam com críticas sociais e raciais, mas esmiuçavam relações românticas, falavam de seu recém-status de celebridade e intensificavam sentimentos de solidão e a sensação de ser um outsider.

As reações a 808s & Heartbreak, como costuma acontecer quando um álbum sai completamente das expectativas de um grupo de fãs ou da mídia, não foram as melhores. O The Independent, na época, classificou a "imersão na miséria pessoal" de Kanye como "desconfortável", e comentou que os "tropos estilísticos" do álbum "se tornam irritantes rapidamente." O The New York Times, por sua vez, falou da "fraqueza pela qual este álbum será lembrado, apesar de algumas músicas sólidas." E, de fato, até hoje, o álbum é frequentemente categorizado como um dos piores álbuns que Kanye já lançou (no ano passado, Chance the Rapper o classificou como seu menos favorito na discografia do artista), tanto por fãs quanto pela imprensa. Mas nem todo mundo descartou 808s tão rápido.

808s pode ter sido completamente inesperado e até decepcionante na época em que foi lançado, mas seus impactos artísticos foram sentidos quase imediatamente na indústria. Já em 2009, Drake lançou sua terceira e maior mixtape até então, So Far Gone, cujas batidas, segundo o produtor 40, foram inspiradas pela vibe atmosférica do 808s — na faixa "Say What's Real", Drake inclusive rima por cima do instrumental de "Say You Will". No mesmo ano, Wiz Khalifa e Big Sean também usaram a mesma música como base para freestyles. Nos anos seguintes, Skepta e Will.I.Am se inspiraram nas batidas de "Heartless", Trey Songz gravou uma versão de "Love Lockdown" e Logic sampleou "Amazing".

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A influência, no entanto, ia muito além das interações diretas com o álbum. A ascensão de Drake, assim como a de Kid Cudi (que em 2009 lançou seu álbum de estreia, Man on the Moon), B.O.B e, mais para a frente, artistas como Childish Gambino, Travis Scott e Frank Ocean tornou clara a maior conquista de 808s & Heartbreak: normalizar a vulnerabilidade, sensibilidade e introspecção do homem negro no hip hop.

Num vídeo sobre "emo rap" feito pelo canal HipHopDX, o rapper e apresentador Murs comenta que o rap já discutia assuntos como relacionamentos, perda e solidão ao longos dos anos 1980 e 1990, por artistas como Tupac, Scarface e DMX. Mas esses motivos passaram a ser mais mencionados a partir dos anos 2000, porém, e apareciam pelas mãos de dois principais artistas: Slug, MC do duo Atmosphere, e Eminem. A sensibilidade exacerbada, então, era reservada aos artistas brancos — aos rappers negros, sobre os quais ainda recaía o estereótipo do homem negro agressivo e a cobrança de demonstrações de masculinidade exacerbada, restava manter a pose. 808s & Heartbreak foi, talvez, o pontapé inicial de mudança desse estigma.

Por mais que o Drake ainda seja acusado de "amaciar" a cultura hip hop e Kid Cudi seja visto como ultrasentimental, é impossível negar que os tropos do rap de hoje, num geral, são muito mais sensíveis do que eram há uma década. Desde as baladas melódicas e autotunadas de Future, Young Thug, Travis Scott e toda a trupe do trap de Atlanta ao pop rap fundido com R&B de Bryson Tiller e 6LACK, todo o zeitgest do hip hop hoje é regido pelas mesmas emoções que levaram Kanye ao estúdio depois de suas tragédias pessoais.

É simbólico que 808s & Heartbreak complete uma década de existência em 2018, um ano em que não somente o pop rap, trap e R&B melódico continuam insistentemente nas paradas da Billboard, mas também um ano em que o próprio Kanye West veio a mostrar tantas de suas vulnerabilidades em público — seja se expondo para a mídia ou nas redes sociais, seja via Ye e Kids See Ghosts, com toda a certeza seus álbuns mais vulneráveis desde este. No fim, 808s é sempre uma lembrança do Kanye de quem eu realmente sou fã: o que, ao invés de esconder-se por trás de contos sobre fama e luxúria, abre suas feridas, as deixa sangrar e as expõe para quem quiser vê-las.

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