Como os videogames ajudaram a vida de um imigrante ilegal brasileiro
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Como os videogames ajudaram a vida de um imigrante ilegal brasileiro

Apesar de o sistema de imigração dos EUA ser uma bosta, alguns imigrantes encontram esperança onde menos esperam.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Um dia em 2008, do nada, o pai de Lucas Guimarães anunciou que eles iam ao cinema para ver o desenho Madagascar 2. Ir ao cinema não era estranho, mas mesmo com apenas 13 anos, Lucas sabia que tinha algo errado quando eles chegaram lá 30 minutos antes da sessão. Mas Lucas logo descobriu o que estava errado; o filme era para amenizar o golpe de um segredo que seus pais escondiam há anos: Lucas não tinha documentos de imigração.

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Sentado num banco, confuso e chateado, Lucas começou a chorar.

“Senti como se tivesse feito algo errado”, ele me disse recentemente por e-mail. “Que o mundo me via como um criminoso. Chorei sem parar. Pensei comigo mesmo, 'Por que estou sendo punido por tentar ter uma vida normal? Eu seria mandado de volta para o Brasil? Não vou poder ser alguém na vida? Tem alguma coisa que eu posso esperar da minha vida agora?' Pensei nisso o tempo inteiro, e não prestei a menor atenção no filme que estava assistindo.”

Todo mundo com quem falei para esta matéria tinha uma coisa em comum: jogos. Às vezes videogames, às vezes jogos de tabuleiro. Mas o que também os ligava era uma sensação de serem empurrados para as sombras da sociedade, obrigados a se esconder e encontrando consolo, esperança e até uma carreira em games. Enquanto esperavam o mundo mudar, eles abraçaram os jogos.

Lucas, compreensivelmente, temia que não houvesse futuro para ele. Isso mudou em 2012, quando o ex-presidente Obama usou sua autoridade executiva para criar o programa Deferred Actions for Childhood Arrivals (DACA), que fornecia proteção legal para uma porção estreita dos imigrantes sem documentos. Especificamente, se você cumpria certas exigências — veio para os EUA com menos de 16 anos; tinha menos de 31 em 15 de junho de 2012; morava nos EUA desde 2007 — você podia receber um período de dois anos livre de ações da imigração. Isso significava poder conseguir um trabalho de maneira segura, frequentar a faculdade — todas as coisas que tinham sido tiradas de Lucas, graças ao segredo que seus pais escondiam.

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Essencialmente, se você era uma criança que veio para os EUA porque seus pais te trouxeram, você tinha uma opção. Agora, 800 mil pessoas podiam participar mais da sociedade americana graças ao DACA. O DACA era uma solução temporária para um sistema de imigração tosco que o Congresso ignorou por décadas, mas uma solução dessas é melhor do que nada.

Durante a campanha de 2016, o presidente Trump prometeu acabar com o DACA no “primeiro dia”. Em vez disso, em 6 de setembro de 2017, o procurador-geral Jeff Sessions anunciou que o DACA seria repelido em seis meses, mas garantiu que quem se qualificasse atualmente para o status poderia fazer a requisição por uma extensão de dois anos. Vários meios de comunicação sugeriram que Trump simpatizava com a luta das 800 mil pessoas sob o DACA, mas em vez de o proteger, ele acabou com o programa e pediu que o Congresso votasse numa solução alternativa que se tornasse lei. Agora, o futuro daqueles que antes contavam com o DACA está nas mãos de um corpo governamental que não fez quase nada em 2017.

(Relatórios sugerem que Trump bolou um plano em parceria com os democratas, mas como vimos em 2017, o presidente americano tem o hábito de mudar de ideia rápido.)

A rescisão do DACA empurrou a luta dos imigrantes para o palco principal, desencadeando protestos por todo o país, como um em Las Vegas no começo do mês. Foto: Getty Images.

A identidade de Lucas parece presa entre dois mundos, tudo porque sua família, anos atrás, escolheu escapar do governo corrupto, baixos salários, preços cada vez mais altos e uma sociedade onde os poderosos nunca são punidos do Brasil entrando ilegalmente nos EUA. Mas ele não escolheu nada disso.

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“O DACA me deu liberdade”, ele disse. “O programa me ajudou a me sentir alguém. Sinto que estou realmente contribuindo com a minha família. Posso trabalhar e pagar a faculdade do meu próprio bolso, o que não me incomoda. Nunca achei que teria uma chance como essa, mesmo sabendo que era uma situação temporária.”

Como seu status DACA foi renovado recentemente, ele tem, em teoria, um pouco menos de dois anos antes de ter que se preocupar com o que acontece depois. Apesar de declarações de Trump e Sessions, ele não está convencido de que o governo vai protegê-lo, e está cada vez mais paranoico.

Se o Congresso americano não aprovar um equivalente do DACA, não está claro qual será o futuro dele. Ele pode voltar para o Brasil, um país de que ele não se lembra, onde você é obrigado a entrar para o exército aos 18 anos. Se ele for obrigado a voltar para o Brasil, ele pode trabalhar num banco, porque fala inglês — talvez. Ele pode ensinar inglês — talvez. Atualmente ele está frequentando um curso de ciência da computação porque quer fazer videogames, e o Brasil não faz parte desse plano.

“Pensei comigo mesmo 'Por que estou sendo punido por tentar ter uma vida normal? Eu seria mandado de volta para o Brasil?”

“As pessoas dizem 'Volte para o seu país e retorne aos EUA do jeito certo'”, ele diz. “O que elas não entendem é que não podemos ficar sentados lá de braços cruzados esperando. Entendo que o que meus pais fizeram foi errado. E não estou pedindo anistia. Não estou pedindo para me tornar um cidadão por uma assinatura do presidente. Estou pedindo que esse país me deixe mostrar que posso contribuir com ele.”

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E a história de Lucas não é única.

Rohit, que pediu para não dar seu sobrenome por medo de que sua identidade seja usada contra ele no atual clima político, não sabia seu status de imigração até quase terminar a faculdade. Ele sabia que membros da sua família não eram cidadãos nem tinham green card, mas seus pais mudavam de assunto quando o tópico surgia, então ele achava que tudo estava bem. A vida era, em grande parte, normal. Mas alguns meses antes de se formar, Rohit recebeu um e-mail pedindo a estudantes não-residentes para falar com um consultor internacional.

“Quando falei com o consultor”, disse Rohit. “Eu não sabia responder as perguntas sobre meu status, porque não sabia realmente. Então liguei para os meus pais.”

Pelo telefone, seus pais deram a notícia que estavam guardando: ele não tinha documentos. Aos cinco anos, o pai de Rohit quis começar um negócio nos EUA. Apesar de terem entrado no país com vistos legais, mais tarde eles perderam seu status legal por causa de um mau advogado e o que Rohit chama de “pequenos erros”. (Sua família não gosta de falar sobre esse período de suas vidas.)

“Achei que [remover o DACA] foi uma decisão cruel, feita sem objetivo ou propósito. Ainda não há um propósito para isso. Como uma pessoa que antes não tinha documentos, sei exatamente como é ficar sem oportunidades básicas que você precisa para viver.”

Apesar de frustrado, ele não tem rancor da decisão dos pais; ele sabe que eles só estavam tentando fazer o certo para o filho, “para me proteger da dor, eles tentaram tira o fardo de mim”.

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Apesar de Rohit ter se formado, levaria ainda quatro anos para o DACA ser oficialmente aprovado – Obama tinha acabado de tomar posse em seu primeiro mandato, e havia rumores de uma reforma mais ampla do sistema de imigração – e Rohit imediatamente caiu numa depressão profunda.

“Eu não conseguia dirigir, não conseguia trabalhar, não consegui fazer nada o dia todo, quase todo dia, exceto pelas raras vezes que algum amigo estava disposto a me levar para alguma atividade social”, ele disse. “Sofro de depressão desde o colégio. Consegui lidar com isso fazendo terapia durante a faculdade, mas quando voltei pra casa depois de me formar, quase literalmente em prisão domiciliar, ela atingiu níveis monumentais, e ainda não me recuperei totalmente.”

Rohit ganhou peso, seu cabelo ficou grisalho e qualquer manchete sobre imigração ou eleições o deixava imediatamente estressado. Seu futuro não estava em suas mãos. Estava na mão de políticos. Ele se sentia desesperado.

Quando o DACA foi aprovado, tudo mudou. Ele pôde tirar carteira de motorista, uma permissão para trabalhar e sentiu orgulho de contribuir com sua comunidade. Ele até começou a estabelecer raízes para uma carreira. Enquanto estava na faculdade, ele tentou achar um grupo para jogar Dungeons & Dragons, mas suas tentativas não deram em nada. Frustrado com as únicas opções disponíveis na internet, ele colocou seu curso de engenharia para trabalhar e desenvolveu um site para reunir fãs do jogo. O site está no ar desde 2013, um ano depois que o DACA foi aprovado originalmente.

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“Passei muito tempo isolado quando era mais novo porque não era um cara muito popular, eu era um nerd”, ele disse. “Na faculdade, porque eu não dirigia e não bebia. Depois da faculdade porque fiquei preso em casa por anos. Então ser social num jogo significa muito para mim; fazer parte da comunidade é um bálsamo.”

Quanto ao que acontece se o DACA não for substituído, Rohit não tem certeza. Ele espera se mudar para a Califórnia e conseguir um trabalho no Vale do Silício, mas não consegue imaginar uma empresa contratando alguém que pode ser deportado no dia seguinte. Ele também considera ir para a Índia, de onde sua família é, mas eles também não têm passaportes válidos lá.

“Não sei o que isso significa”, ele disse, “e às vezes tenho medo de não ter a força mental para passar por tudo isso intacto”.

Lucas e Rohit se beneficiaram do status temporário fornecido pelo DACA, mas não têm muita esperança, mesmo se o DACA for formalizado pelo Congresso, de um caminho real para a cidadania. Nada no DACA te leva na direção de mudar seu status legal, mesmo que os candidatos ao DACA, por exigência, sejam membros produtivos da sociedade.

“Eu poderia voltar para o México e esperar até ser aprovado ou não”, disse Armando, de 22 anos, que se beneficia atualmente do DACA.

“Meu maior medo é ser mandado para um país que não conheço. Nasci no México, mas lá não é meu lar.”

O fio condutor que ligava todas as pessoas com que falei sobre o DACA era videogame, incluindo uma pessoa que se tornou membro da comunidade de games de luta como resultado disso. Imagem cortesia da Capcom.

Anton Herrera, por outro lado, teve sorte. O veterano jogador de games de luta competitivos, conhecido nos circuitos de torneio de Street Fighter como Filipinoman, está nos EUA desde os quatro anos. Seus pais o trouxeram das Filipinas, mas ele não lembra de nada antes disso. Aprovado para o DACA aos 18 anos e recebendo o green card aos 21, Herrera representa um dos poucos imigrantes sem documentos que conseguiu mudar seu status.

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Como Herrera conseguiu sair do DACA é complicado. Como sua família entrou no país legalmente, eles conseguiram trabalhar com o sistema, gastando muito dinheiro para entrar em programas do governo que poderiam, cruzando os dedos, levá-los até o outro lado. Eventualmente, a mãe de Herrera, que é enfermeira, encontrou um empregador que a patrocinou para um visto EB3, ou green card, que permite se tornar um residente oficial, com base no seu emprego.

Com sorte, dinheiro e um bom timing, Herrera escapou de seu status como ilegal. E ainda assim, quando a administração Trump anunciou que ia rescindir o DACA, ele ficou furioso.

“Achei que [remover o DACA] foi uma decisão cruel, feita sem objetivo ou propósito”, ele disse. “Ainda não há um propósito para isso. Como uma pessoa que antes não tinha documentos, sei exatamente como é ficar sem oportunidades básicas que você precisa para viver. Me diga: como você consegue viver sem trabalhar ou não podendo dirigir para o trabalho? Você está inerentemente desobedecendo a lei trabalhando quando não tem documentos, mas o que essas pessoas vão fazer, não trabalhar e não ter dinheiro? Não ter comida na mesa? Não ter um lugar para morar? Nenhum lugar para onde ir?”

A família de Herrera veio para os EUA em 1991, antes do 11 de Setembro e o aumento das medidas de segurança tornarem a imigração ainda mais difícil. Na época, foi fácil pra eles conseguirem vistos de viagem – eles só tiveram que entrar numa fila.

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Com um visto, você só pode ficar no país por um tempo limitado. A família de Herrera decidiu passar desse prazo, violando seus vistos. Felizmente para eles, havia um caminho mais fácil para se tornar residentes legais quando o sistema, de alguma maneira, já tinha te analisado.

Diferente de outros com quem falei, Herrera sabia de seu status desde bem jovem. Seus pais eram diretos sobre sua situação porque isso dava a ele um enquadramento para entender por que eles moravam num bairro ruim, por que seus pais nem sempre podiam assistir os eventos esportivos dele (eles tinham que trabalhar), e por que, quando ele ficasse mais velho, as coisas poderiam ser mais difíceis.

“Como um garoto sem documentos, você entende os sacrifícios que eles tinham que fazer”, ele disse. “Eu ficava em casa o tempo todo porque era mais seguro. Eu tinha que ficar em casa porque vivia numa área muito pobre e perigosa quando era criança. Sair não era uma opção. Isso me fez jogar videogames, e me apaixonar por eles.”

Herrera (no centro, atrás) com um grupo de membros filipinos da comunidade de jogos de luta. Imagem cortesia de Herrera.

Herrera entrou para a cena competitiva de videogames de luta antes da implementação do DACA, o que significou que ele, como muitos trabalhadores sem documentos, estava se arriscando quando dinheiro era envolvido. Felizmente para ele, a maioria dos patrocinadores com quem ele trabalhou não pediram documentação de verificação, uma permissão de trabalho e outros documentos do tipo.

“Quando o DACA não existia e eu era um jogador iniciante, eu ficava apreensivo assinando aqueles formulários de impostos para o dinheiro que estava ganhando nos eventos”, ele disse. “Você tem que viver sua vida sem medo, e se algo acontecer, aconteceu.”

A família pediu um green card em 2007. Eles foram aceitos em 2008, mas o green card só chegou mesmo em 2016. (Um número limitado de green cards é entregue por ano, e eles estavam na fila.) No sistema de imigração americano, tudo leva muito, muito tempo.

“A imigração é muito conturbada e obviamente precisa ser reformada”, ele disse. “Nem todo mundo tem a mesma sorte que eu. Cada pequeno passo, cada ponta salva, cada nota guardada, fez toda a diferença em provar que eu estava aqui esse tempo todo, que meus pais estavam aqui, e guardamos todas essas provas para consertar nossa situação.”

Agora, além de ser jogador competitivo, Herrera também defende uma reforma na imigração nas redes sociais e tenta conscientizar outros sobre a vida dos imigrantes sem documentos.

“O Congresso está falando sobre consertar isso”, ele disse. “As pessoas estão protestando a favor do DACA, e é como eu disse aos outros: é sempre mais escuro antes do nascer do sol, e espero que a gente consiga algo melhor depois que isso for tirado de nós. A vida tira mas a vida também dá.”

As 800 mil pessoas que dependiam do DACA esperam desesperadamente que a vida comece a dar logo.

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