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Identidade

A tragédia na boate de Orlando e o apagamento da cultura queer latina

Um ano depois da tragédia em Orlando, onde 49 pessoas foram baleadas na Noite Latina numa boate queer, minha cultura ainda não recebe o reconhecimento que merece.

Essa matéria foi originalmente publicada na VICE US.

"Por que diabos não existem clubes gays latinos em Manhattan?", gritei, enquanto meus amigos e eu passávamos pelos nossos bares gays favoritos em Hell's Kitchen. Era 11 de junho de 2016, e estávamos comemorando o aniversário de 34 anos do meu amigo cubano-americano Tony. Ele concordou furiosamente com a cabeça ao que, naquele ponto, já tinha virado um bordão meu, um garoto da fronteira que cresceu dançando cumbias de artistas como Selena, e que sente muita falta dos sons de sua infância. Será que eu podia ouvir a batida de um timbale sem ter que passar 45 minutos no metrô até o Queens?!

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E eu não era o único sentindo isso. E o pessoal latino que estava comigo naquela noite de verão (alguns descendentes de mexicanos, outros vindos do Panamá) ecoaram minha frustração, como todo mundo mencionando como já tinha tentado achar uma festa latina nas proximidades para expressar nossa identidade única – uma identidade que parece constantemente obscurecida pelo movimento dos direitos gays, que geralmente é pintado como inteiramente branco pela cultura mainstream e a comunidade LGBTQ no geral.

Agora, não me entenda mal: pedindo um espaço para latinos LGBTQ, nunca quisemos nos segregar dos irmãos e irmãs queer mais brancos. Tem uma diferença entre honrar suas raízes num cenário confortável e se recusar a coexistir com aqueles que não compartilham sua origem racial ou étnica. Esse não é o caso aqui. Somos todos parte da mesma comunidade queer, mesmo que ela seja geralmente retratada parecendo mais de um jeito que de outro.

Mas essas observações não nos afastaram da pista naquela noite de sábado, onde nos divertimos ao lado de outros comemorando o Mês do Orgulho Gay até as 3h. Lembro de ter pensado no caminho para casa que tinha sido uma experiência divertida e revigorante, fazendo uma pausa para perceber como é bom poder assumir sua identidade e ter orgulho.

Aí, algumas horas depois, fui acordado pela mensagem: "Esse tiroteio em Orlando foi horrível e muito triste". Confundindo o caso com um incidente separado envolvendo a competidora do The Voice Christina Grimmie, respondi "É, com a irmãzinha, eu sei!".

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E foi aí que comecei a ver as manchetes no Twitter sobre o ataque dentro de um clube chamado Pulse na Flórida. Algumas redes de notícia não apontavam o fato que aquele era um clube gay, o que me deixou furioso. Por que não reconhecer que esse foi um massacre afetando minha comunidade? Não apenas isso, mas que o atentado aconteceu num lugar onde encontramos refúgio de um mundo que muitas vezes nos exclui. Esse detalhe crucial deveria ser mencionado, na minha opinião, para evitar o apagamento pela mídia e aqueles a consumindo.

Um nó na minha garganta ia aumentando com cada atualização. Mas foi só quando ouvi um âncora da CNN declarar que o massacre aconteceu numa "Noite Latina" na Pulse que realmente me senti enjoado, fraco e, francamente, sem esperanças. "Uau, eles vieram atrás de nós", lembro de pensar. "Esse foi um ataque direto ao meu povo: éramos mesmo os alvos."

Sim, nós. Vendo a lista das vítimas e suas fotos, como não levar para o lado pessoal? A maioria dos mortos tinha nomes que pareciam com o meu, rostos que pareciam com os meus, tons de pele como o meu, e provavelmente suas lutas foram similares às minhas, como um nativo do sul do Texas obrigado a esconder sua verdade daqueles que achavam que homossexualidade era um pecado reservado para jotos y maricones.

Esses latinos orgulhosos baleados naquela madrugada provavelmente estavam procurando a mesma música que eu naquela noite. A verdade é que essas vítimas queer e marrons viveram (e morreram) como seus eus autênticos, e este homem queer e moreno não conseguia deixar de se sentir profundamente afetado com a perda de suas vidas.

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Lembrei daquele momento na noite anterior com meus compadres, onde lamentamos a falta de lugares (e eventos) criados especificamente com os latinos em mente. Se eles existissem, estaríamos lá dançando com pessoas que curtem os mesmos ritmos que nós. E se Orlando fosse Nova York, seríamos nós; poderíamos ter sido as vítimas do atentado mais mortal dos EUA causado por um atirador solitário. A única coisa que nos salvou foi um CEP.

Logo depois do atentado, e mesmo hoje, era impossível para mim, assim como para outros latinos LGBTQ, não fazer o jogo do "e se"; de não considerar que poderíamos estar na mesma situação. E, honestamente, quem pode nos culpar?

Bom, aparentemente, alguns podem. Vários conhecidos gays, por acaso brancos, me perguntaram por que me senti tão afetado assim por essa tragédia. Lembro um brunch naquele verão, quando um "amigo" branco com quem eu não falava há várias semanas tentou afirmar propriedade sobre a perda na mesa. Quando eu, o único latino ali, discordei, ele basicamente me perguntou: por que isso foi tão diferente para você?

Essa pergunta dura – de um colega queer – não apenas me enraiveceu, mas me fez reconhecer a grande divisão que existe entre os latinos LGBTQ (e pessoas queer não brancas no geral) dos nossos colegas gays. Algo que esses últimos parecem não entender, particularmente depois de Orlando. O fato que nossa comunidade LGBTQ tem uma tendência em mostrar consistentemente membros mais brancos sobre os outros. Isso permite que eles mostrem suas opiniões primeiro e que essas opiniões tenham um peso maior. Suas histórias e sucessos se tornaram o padrão para nossa comunidade. E muitas vezes parece que a existência de latinos LGBTQ raramente é incluída na narrativa queer norte-americana, porque a sociedade sempre escolheu elevar as vozes que não rolam o 'R' tanto assim.

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Visibilidade é a chave, e dói saber que a única vez que realmente me vi como um indivíduo gay marrom foi assistindo à cobertura do caso da Pulse. Os LGBTQ brancos não são negligenciados; os rostos deles sempre são mostrados. Eles conhecem bem a representação, enquanto ainda estamos procurando alguém que reflita nossas experiências numa escala cultural maior. Não acredita em mim? Cite mais de sete latinos gays assumidos famosos. Vai lá, eu espero. Ricky Martin? Legal. Wilson Cruz? Certo… próximo?

E o próprio Cruz, que perdeu um membro da família durante o tiroteio, concorda que as pessoas precisam ser mais respeitosas com as raízes das vítimas. "Essa não é só uma história sobre uma minoria sendo atacada, mas uma minoria dentro de uma minoria sendo atacada", o ator e ativista disse ao Huffington Post logo depois do atentado. Apontando que ele também sentiu um apagamento cultural, o astro porto-riquenho acrescentou "Não vamos branquear as experiências deles; isso é algo multifacetado".

O ex-morador de Orlando Sergio Lugo sentiu o mesmo. Um colega de trabalho me apresentou a Lugo semana passada, tanto pela ligação dele com a região como sua reação visceral ao atentado na Pulse como um afro-latino bissexual. Lugo me disse que, enquanto estava num café local, ouviu um líder de um estudos bíblicos caracterizando as vítimas não como gays ou porto-riquenhos, mas como seres humanos. Ele me escreveu dizendo: "Retóricas como essa parecem legais na teoria, implicando que somos todos iguais diante de Deus, mas não consegui deixar de pensar nisso como uma aula sobre apagamento".

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Rudy Campos é um amigo da minha cidade natal que estava numa balada em Austin, Texas, no dia 11 de junho. Ele me escreveu dizendo: "Isso me deixa muito triste como latino e gay, parece que tenho um grande alvo preso nas costas". Ele também expressou desconforto em saber que, além de vítima de perseguição religiosa, ele era visto como tendo "menos valor que um homem caucasiano".

"Meus sentimentos são: por que não me sinto seguro sendo eu mesmo?", disse Campos.

E essa é uma pergunta válida, considerando como é difícil crescer, e existir, como alguém gay e marrom. Por exemplo, há o peso do machismo, a masculinidade exagerada, que dita nossos primeiros comportamentos e maneirismos; há a pressão de uma religião, geralmente católica ou cristã, que nos humilha por nossa atração pelo mesmo sexo; há uma falta de representação em todos os frontes que nos faz sentir desvalorizados e invisíveis; há a fetichização permanente das pessoas latinas, particularmente dos homens gays, por aqueles encantados com nosso "exotismo".

Mas por mais difícil que essa vida queer marrom seja às vezes, especialmente pós-Pulse, essa é a minha vida – essa é a nossa vida. Temos o privilégio de aproveitá-la, e eu, pessoalmente, estou mais determinado que nunca a fazer isso. Nem todo mundo tem essa benção, e não considero minha sorte pouca; não quando 49 pessoas foram privadas das suas vidas num crime sem sentido. Então, nas palavras da Rainha da Salsa Celia Cruz em seu sucesso Carnaval, temos que lembrar que " la vida es una hermosura, hay que vivirla" – a vida é linda, devemos vivê-la.

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Tradução: Marina Schnoor