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Música

Nick Cave explica porque é que a IA nunca será capaz de escrever uma grande canção

O músico e autor explicou por que compor uma música transcendental sempre será um feito essencialmente humano.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Nick Cave
Imagem: Shutterstock.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Motherboard.

Nick Cave é, como sabemos, um prolífico músico, compositor, autor e escritor, entre outras coisas. Cave responde regularmente a perguntas de fãs no The Red Hand Files. Recentemente, Peter, da Eslovénia perguntou-lhe se a Inteligência Artificial (IA) seria alguma vez capaz de escrever uma boa música. Cave deixou-nos partilhar a sua resposta, na íntegra, aqui abaixo.

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Querido Peter,

No brilhante livro de Yuval Noah Harari, 21 Lições para o Século XXI, o autor escreve que a Inteligência Artificial, com o seu potencial ilimitado e conectividade, vai fazer com que muitos humanos se tornem redundantes nos seus empregos. Isto parece completamente possível. Contudo, ele diz também que a IA será capaz de escrever melhores músicas que os humanos.

Diz ele que, e desculpa o meu resumo simplista, ouvimos músicas para sentirmos certas coisas e que, no futuro, a IA vai ser capaz de mapear individualmente a mente e criar músicas feitas à medida do nosso algoritmo mental particular, que nos farão sentir, com maior precisão e intensidade, o que quer que seja que queremos sentir. Se estivermos tristes e nos quisermos animar, basta pormos a tocar a nossa música personalizada de IA e o trabalho está feito.


Vê: "VICE Meets Nick Cave"


Mas, não tenho a certeza de que seja apenas isto que as músicas fazem. Claro que escolhemos músicas que nos façam sentir alguma coisa - contentes, tristes, saudosos, sexy, excitados ou o que seja -, mas não é só isto que uma música faz. O que o uma grande música nos faz sentir é admiração. Há uma razão para isso. Uma sensação de admiração baseia-se quase exclusivamente nas nossas limitações como seres humanos. Está directamente correlacionada com a nossa audácia, como humanos, de tentarmos ir mais além do nosso potencial.

É perfeitamente concebível que IA possa produzir uma música tão boa como "Smells Like Teen Spirit", dos Nirvana, por exemplo, e que cumpra todos os requisitos para nos fazer sentir o que uma música como essa nos deve fazer sentir - neste caso, contentes e rebeldes, digamos. Também é concebível que IA possa produzir uma música que nos faça sentir estas mesmas coisas, mas mais intensamente do que um autor humano consegue.

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Mas, acho que quando ouvimos "Smells Like Teen Spirit," ouvimos mais do que a música em si. Para mim, o que estou de facto a ouvir, é a jornada de um jovem alienado pela pequena cidade americana de Aberdeen - um jovem que era um pacote ambulante de insuficiência e limitação humana - um jovem que tinha a ousadia de uivar a sua dor particular para um microfone e, ao fazê-lo, por obra e graça dos céus, conseguia chegar aos corações de uma geração inteira. Também estamos a ouvir Iggy Pop a andar pelas mãos do público e a esfregar-se em manteiga de amendoim enquanto canta "1970". Estamos a ouvir Beethoven a compor a Nona Sinfonia quando já está quase surdo. Estamos a ouvir Prince, aquele pequeno aglomerado de átomos roxos, a cantar debaixo de chuva torrencial no Super Bowl e a encantar toda a gente. Estamos a ouvir Nina Simone a concentrar toda a sua raiva e desilusão nas mais bonitas canções de amor. Estamos a ouvir Paganini a continuar a tocar o seu Stradivarius apesar das cordas partidas. Estamos a ouvir Jimi Hendrix a ajoelhar-se e a pegar fogo ao seu próprio instrumento.

O que estamos, de facto, a ouvir, é a limitação humana e a audácia de a transcender. Inteligência Artificial, pelo seu potencial ilimitado, simplesmente não tem esta capacidade. Como poderia? E esta é a essência da transcendência. Se temos potencial ilimitado, o que há para transcender? E, portanto, a imaginação deixa de fazer sentido. A música tem a capacidade de tocar a esfera celestial com a ponta dos dedos e a admiração e encanto que sentimos é pela esperada temeridade do alcance, não do resultado. Onde está o esplendor transcendente no potencial ilimitado? Por isso, para te responder à pergunta, Peter, a IA será capaz de escrever uma boa música, mas não uma grande música. Falta-lhe o sentimento.

Com amor, Nick


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