A arte não é — e nem pretende ser — a forma mais efetiva de resistência, mas talvez seja a que converse com mais gente. Nesse próximo Carnaval, a Estação Primeira da Mangueira quer conversar com as 70 mil pessoas que lotam o Sambódromo da Marquês de Sapucaí todo começo de ano para contar “a história que História não conta.”
O samba-enredo que irá representar a escola no ano que vem, chamada “Música para Ninar Gente Grande”, não quer discutir os “heróis” que estão nos quadros, que viraram nomes de ruas e pontes. Pelo contrário, como contou ao Noisey o compositor da canção Deivid Domênico, a canção quer cantar a história dos verdadeiros responsáveis pela construção desse país; os heróis e heroínas de luta, os heróis e heroínas dos morros.
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Entre esses heróis, estão Marielle Franco, Dandara, Chico da Matilde, Leci Brandão e tantas outras figuras de histórica importância pela sua luta pela população oprimida do Brasil. O samba é tão cheio de referências a diferentes momentos da história do país que pedimos para Deivid explicar, verso por verso e estrofe por estrofe, o que exatamente ele queria dizer com cada construção da música. Ouça a faixa abaixo, e acompanhe com os depoimentos de Deivid sobre o samba:
“Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra”
Estamos querendo contar uma história do Brasil que não foi contada. A história do mesmo país, o avesso do mesmo lugar. Olhando pela ótica de quem perdeu a briga.
“Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento”
A primeira estrofe se completa na segunda. A Mangueira vai contar uma história que existiu, foi contada, aconteceu. Mas que o livro apagou quando não revelou. Desde 1500 não houve descobrimento, o que houve foi a conquista de um povo, uma terra invadida pelo europeu. Dessa época para cá, somos um país que vive de golpes e invasões. É uma história de muita reviravolta da elite sobre o povo nativo, local, pobre e oprimido, o que representa muito a questão da desigualdade. Não queríamos fazer um samba panfletário, então não queríamos falar dos golpes [políticos] que aconteceram no Brasil – até pra não dar alusão ao golpe de 2016 como golpe, porque o objetivo não era esse. Não era politizar o samba, mas esclarecer que, politicamente, vivemos de golpe em golpe.
“Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato”
Os heróis que viraram nomes de rua, viraram quadros e estradas, viraram pontes e praças. Atrás deles, tem sangue de gente que lutou de verdade. De gente que sofreu, morreu pela liberdade e igualdade neste país. E é o sangue de mulheres, de tamoios, de mulatos. Existe um país de muita luta, muito maior do que o que está emoldurado.
“Brasil, o teu nome é Dandara
Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati”
Dandara é uma mulher negra que lutou pela liberdade do povo negro contra a escravidão, ela era uma abolicionista, esposa de Zumbi dos Palmares. Depois falamos da Confederação dos Cariris, que lutou pela liberdade do Brasil, que lutou pela independência, que resistiu lá no Nordeste. E do Chico da Matilde, que é considerado o dragão do mar no Ceará. O Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes da Princesa Isabel. Ele fez uma greve no tráfico de escravos que existia no Ceará, e é da cidade de Aracati.
“Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”
“Quem foi de aço nos anos de chumbo” são os heróis que resistiram à ditadura militar, que não são lembrados. São muitos heróis, como Vladimir Herzog, Stuart Angel, o próprio Marighella, entre muitos outros. Os torturadores é quem são lembrados: viraram nome de rua, nome de ponte, nome de praça. São exaltados e não deveriam. Estamos falando de Maria Filipa, Luísa Mahin – mãe de Luís Gama, abolicionista –, Marielle Franco e das malês. Estamos falando de mulheres que lutaram por igualdade, por direito, mulheres abolicionistas. Mulheres da favela que foram silenciadas de alguma maneira por lutarem por liberdade, por direitos humanos.
“Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões”
Os heróis de barracões são literalmente os heróis que constroem o carnaval e trabalham nos barracões. Que, com pouco dinheiro, com muita dificuldade, constroem o carnaval que vai para a Marquês de Sapucaí. E tem um duplo sentido, porque também são os heróis dos morros, das favelas, que são heróis anônimos que sobrevivem a toda a desigualdade e repressão no Brasil. Que sobrevivem na luta trabalhando com honestidade e dignidade.
Estamos falando que não existe só um Brasil, esse Brasil que está no retrato, esse Brasil que a história conta. Mas existem vários Brasis, um Brasil plural. Do povo pobre, do povo que de fato constrói esse país é que saem mulheres como Leci Brandão, que saem homens como Jamelão – negros que venceram todo o preconceito, as dificuldades, a desigualdade e a pobreza, e se tornaram grandes ícones do seu segmento. São esses Brasis que queremos exaltar, o Brasil plural. Eles contam a nossa história como se fosse a história de um povo pacato, que recebeu benesse das elites. Na verdade somos um povo de luta, que lutou pra vencer as desigualdades, o preconceito. Somos um país racista, machista, elitista, que tem uma cultura de idolatria à elite. Não queremos mais isso, queremos contar uma história diferente.
Assista ao nosso documentário “Marielle, Presente!”
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