Por que norte-americanos procuram o exorcismo em vez de médicos

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Todas as ilustrações por Chris Visions .

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Marie McClellan me disse que tinha 15 anos na primeira vez que achou que havia um demônio dentro dela. Uma garota canadense desabrochando, de cabelo pintado de verde e camisa xadrez, ela estava num ensaio da peça de Páscoa em sua igreja evangélica em New Brunswick, quando sentiu uma sensação estranha por baixo da pele. Enquanto um ator interpretando Jesus era pregado na cruz, com sangue falso pingando das mãos e rosto, McClellan começou a ofegar e a se coçar com violência.

“Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, só sabia que tinha que sair dali”, ela me disse por telefone, relembrando aquela noite terrível de 1995. Seu comportamento era tão estranho que um pastor a abordou, a jogando no chão e prendendo seus braços. O toque dele só a deixou mais assustada – um sinal comum de possessão demoníaca.

“Você já brincou com um tabuleiro Ouija?”, ele perguntou. McClellan fez que sim com a cabeça. O pastor explicou que ela estava com um demônio dentro dela (provavelmente irritado com a cena da crucificação). Um conceito que a encheu de terror e de um desligamento psicológico de seu próprio corpo.

McClellan não conhecia o pastor (ele era de outra igreja), mas acreditou nele, que continuou segurando a garota no chão por alguns minutos, orando sobre ela. Depois que ele foi embora, ela nunca mais o viu de novo.

Não encontrando alívio na oração do pastor, McClellan me disse que passou a se cortar por meses e anos depois do acontecido, achando algum conforto em ferir aquele corpo que ela acreditava ser habitado por um demônio.

Três anos depois do incidente inicial, McClellan ainda acreditava que um demônio a atormentava. Uma noite, enquanto trabalhava como conselheira de um acampamento da igreja nos arredores de Sussex, sentiu que o demônio estava tomando o controle de seu corpo mais uma vez. Ela me disse que começou a se balançar para frente e para trás, murmurando consigo mesma. Um círculo de oração de conselheiros do acampamento e pastores se formou ao redor dela, e tentou realizar um exorcismo, o que só intensificou seu pânico.

“Tinha sempre alguém orando em cima de mim. Muitas vezes nem em inglês. Todo mundo estava falando em línguas. Eles me forçavam a confessar meus pecados, e a cada pecado que eu confessava eles chamavam o Espírito Santo para tirar aquele demônio de mim.”

McClellan acabou desmaiando de exaustão, o que foi visto como um sinal de que o demônio tinha saído de seu corpo.

Hoje, McClellan não acredita mais que estava possuída. Profissionais médicos deduziram que ela estava sofrendo de transtorno de ansiedade, que só piorou com a sugestão de possessão demoníaca (o que levou à autoflagelação) e mais tarde pela experiência do exorcismo forçado.

Por meio da história e em fés além do cristianismo, a possessão demoníaca tem sido um diagnóstico equivocado comum para todo tipo de mal. Em retrospectiva, muitas vezes é revelado que essas pessoas sofriam de transtornos como esquizofrenia ou epilepsia. Independentemente dos verdadeiros problemas médicos subjacentes, algumas figuras religiosas continuam realizando exorcismos como o que McClellan passou. Enquanto o exorcismo a que McClellan foi submetida a deixou com danos psicológicos duradouros que levaram para serem superados com ajuda de terapia, exorcismos podem ser ainda mais desastrosos e potencialmente fatais. Nos últimos anos, histórias de exorcismo envolvendo pessoas sendo espancadas, envenenadas, pisoteadas e privadas de alimentos até a morte renderam manchetes globais.

Como o caso de Kyong-A Ha, uma mulher de 25 anos que procurou ajuda para sua insônia via gurus espirituais da Jesus-Amen. Ela foi diagnosticada como possuída por um demônio, depois amarrada e espancada até a morte durante um exorcismo de seis horas em Emeryville, Califórnia, em 1995. A líder da igreja, Jean Park, disse à polícia que “os ferimentos em Ha foram feitos por demônios”.

Os perpetradores desses crimes geralmente são grupos evangélicos isolados, que não contam com a infraestrutura de supervisão que as igrejas católicas possuem.

Conhecidos por sua crença numa “guerra sobrenatural” (a ideia de que anjos e demônios estão em batalha constante por nossas almas e corpos), evangélicos como Gordon Klingenschmitt dizem que se envolver com qualquer tipo de pecado pode ser um convite à possessão. O que significa que praticamente todo mundo é um candidato potencial a um exorcismo.

Exorcista e ex-senador estadual de Colorado Springs (sem dúvida a capital evangélica dos EUA), Klingenschmitt acha que a prática é representada de maneira equivocada pela mídia. “Pela minha experiência, exorcismos modernos são muito gentis, muito comuns e muito libertadores”, me disse ele por telefone. “Aqui nos EUA temos um retrato triste dos exorcismos através da mídia e Hollywood. Isso não é igual ao que vemos nos filmes.”

Padres católicos geralmente têm uma abordagem diferente dos evangélicos. Eles aprenderam a lição séculos atrás de que não é só por que uma pessoa perde o apetite, ou se coça com frequência, que ela precisa de um exorcismo (potencialmente violento). Hoje, é padrão que as pessoas sejam avaliadas por profissionais de saúde mental antes que um exorcismo por um padre seja considerado (um processo que poderia ter ajudado McClellan).

Com esses filtros, os exorcismos católicos lentamente se tornaram mais e mais escassos com os séculos. No entanto, nas últimas décadas, a prática foi reavivada na cultura popular, onde é associada fortemente ao catolicismo. Isso tem contribuído para um ressurgimento dos exorcismos católicos no mundo. Mas em vez de líderes de igrejas diagnosticarem pessoas como possuídas por demônios, os padres hoje são procurados por pessoas diagnosticando a si mesmas como possuídas, e insistindo em passar por um exorcismo.

O fenômeno foi documentado recentemente pelo jornal francês Le Monde, que trouxe uma matéria apontando que os EUA foi de 12 exorcismos em 2000 para 85 casos em 2014. O Vaticano, também em 2014, reconheceu formalmente a Associação Internacional de Exorcistas, uma coleção de padres católicos que realizam exorcismos ao redor do globo, e começou a realizar seus próprios cursos de exorcismo. Ano passado, 150 padres passaram pelo curso. Este ano o número subiu para 250. Sem mencionar que o Vaticano adotou recentemente uma política de ter pelo menos um exorcista em cada diocese para atender a demanda.

Segundo o Le Monde, os pedidos de exorcismo vêm de todas as origens e classes sociais, apesar de “75% serem mulheres – a maioria vítima de abuso sexual (estupro, incesto, etc.)” Essa demografia de mulheres abusadas também se reflete nos temas de Libera Nos, um documentário italiano dirigido por Federica Di Giacomo que mostra como os padres católicos estão sendo inundados de párocos exigindo exorcismos. Esse fenômeno de mulheres sofredoras procurando exorcismos pode sugerir que muitas das pessoas que se acreditam vítimas de demônios na verdade sofrem de trauma psicológico.

“Para muita gente, quando o padre dá uma explicação para seus problemas, ele dá um nome a isso, e alguns dizem se sentir libertados”, disse Di Giacomo para mim por Skype. “Na Itália há pouca oportunidade de visitar um psicólogo de graça, e muitos deles só receitam remédios. As pessoas tentam New Age, tentam Ayahuasca, mas o padre é de sua própria cultura, então isso é real para elas.”

No filme de Giacomo, um padre está tão sobrecarregado por visitantes acreditando estarem possuídos, de manhã até a noite, que começa a realizar exorcismos em massa. Você vê pessoas de todos os caminhos da vida se contorcendo no chão da igreja do padre, cuspindo, xingando, chorando, gemendo como animais raivosos, falando de si mesmas em terceira pessoa com uma voz demoníaca, enquanto o padre recita versos da Bíblia e joga água benta com sal nelas.

“Esses padres vêm do mundo inteiro. E dizem que estão tão ocupados com exorcismos em casa que não têm tempo para mais nada. Eles até realizam exorcismos por telefone e SMS”, disse Giacomo, cujo filme foi passado recentemente no curso de exorcismo do Vaticano.

Alguns veem esse aumento na demanda por exorcismos como um resultado da fascinação da cultura com a prática, que começou em 1973 com o filme de William Friedkin O Exorcista. O filme gerou todo um gênero de terror, com muitos títulos lançados nos últimos anos ( O Exorcismo de Emily Rose, O Ritual, O Último Exorcismo, Exorcista – O Início, O Último Exorcismo – Parte 2) e ajudaram a enquadrar a possessão demoníaca como uma ameaça real aos olhos de muitos crentes.

“A cultura popular trouxe o exorcismo de volta ao consciente das pessoas, e acho que por causa disso houve um aumento nos exorcismos”, me disse Adam Possamai, professor de sociologia e religião popular da Western Sydney University, que coleta dados sobre a ascensão atual de exorcismos pelo globo. “Hoje, as pessoas estão mais interessadas no lado emocional e encantado da vida que no racional, o que levou ao renascimento do pensamento mágico.”

Quando questionado sobre a nova onda de exorcismos, o Vaticano liberou uma declaração culpando a ascensão de “magia negra, paganismo, ritos satânicos e tabuleiros Ouija” através de envolvimento com a internet.

O padre Gabriel Amorth, talvez o mais famoso exorcista da história moderna (e tema de um novo documentário de William Friedkin), disse ao Telegraph que a ascensão dos exorcismos está ligada a proliferação de fés orientais como a ioga e a popularidade dos livros de Harry Potter. Segundo ele, se envolver com qualquer uma dessas coisas é um convite para Satanás habitar sua alma. Esses alertas são muito familiares para Marie McClellan, cuja possessão foi ligada a um tabuleiro Ouija.

“Na época pensei que estava possuída, mas lembrando agora daquela primeira noite, fui dispensada por um bando de amigos e imediatamente me senti tipo ‘ninguém gosta de mim, ninguém me quer aqui’ e comecei a entrar em pânico. E claro que isso só piorou quando me seguraram no chão, se juntaram em volta de mim, falando em línguas, e me disseram que tinha um demônio dentro de mim”, lembra McClellan. “Tendo a coçar os braços quando estou ansiosa, e eu estava sendo presa ali, impedida de fugir ou tentar me acalmar. Não sei exatamente o que as pessoas esperavam. Talvez que uma calma caísse sobre mim? Quando meu corpo tinha esgotado todas as reservas de pânico, eu desliguei, e eles consideraram que tinha acabado.”

Mas alguns profissionais de saúde acreditam que exorcismos podem ter um efeito psicológico positivo. “Pode ser muito difícil, até impossível, dissuadir racionalmente alguém que acredita fervorosa ser vítima de possessão demoníaca”, escreveu o Dr. Stephen Diamond para o Psychology Today, concluindo que “às vezes a melhor abordagem é ir até a pessoa e usar o sistema de crenças do paciente como vantagem para o tratamento”.

Esse pode ser o caso para algumas pessoas, mas aquelas sofrendo de males identificados equivocadamente como possessão encaram perigos sérios para a saúde. McClellan teve sorte em eventualmente conseguir o tratamento que precisava, mas sua história é um alerta para as pessoas perpetuando esses exorcismos. A experiência dela mostra não só como exorcismos podem causar um dano real à vida e à saúde de alguém, mas como podem afastar as pessoas de sua fé.

“[Meu exorcismo] foi o começo do final da minha fé”, ela disse. “Todos aqueles anos as pessoas estavam orando, falando em línguas, gritando e chorando ao meu redor, era um processo tão elaborado, e depois eu tinha outro ataque de pânico no meu quarto. Aquilo não estava funcionando. Hoje, coloco minha fé na ciência.”

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Tradução: Marina Schnoor

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