Fazendo Contatos em um Fórum de Ufologia
Eles estão por toda a parte. (Os bonecos de ETs.) Crédito: Daiane Marcon

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Fazendo Contatos em um Fórum de Ufologia

Me façam acreditar.

Tenho essa memória de infância: aos sete anos ou menos vi pela janela do meu quarto uma nave em chamas cair no matagal do outro lado da rua. Sei que foi sonho, um delírio de criança imaginativa cuja principal babá foi a televisão. A rua era uma avenida muito movimentada e ninguém mais viu e nenhuma notícia foi publicada. Não havia um mínimo indício de veracidade para aquilo. Mesmo assim, meu cérebro não armazenou como sonho; até hoje está registrado como memória. Não aconteceu, eu sei. Mas lembro direitinho. Tá registrado como memória. Vai saber.

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Eram cinco da manhã de um sábado e eu estava falando com um amigo no chat do Facebook sobre alienígenas. Existe um horário específico da madrugada que a internet, hoje tão social e movimentada, quase volta ao que era antigamente: um terreno baldio cheio de informações, uma experiência solitária. Com a internet só pra gente, trocávamos links que iam da Operação Prato, uma história vertiginosa que envolve corpos de luz chamados pela população de chupa-chupa e mil páginas de investigação feitas pela Força Aérea Brasileira, até o famigerado ET Bilu, o alienígena de voz fina e português impecável que conquistou o Brasil circa 2011. Entre uma pesquisa e outra, descobri que a icônica revista UFO ia, em poucos dias, sediar o III Fórum Mundial de Contatados aqui em Porto Alegre, a uma distância de 10 minutos a pé da minha casa. Embriagado pelo fascínio (i.e. bêbado de internet), considerei ir, mas logo fui impedido pelo valor da inscrição: 500 reais por três dias de palestra com abduzidos era demais. Brinquei: vou ir de imprensa, bem matéria da Vice, vou vender essa pauta pra VICE. Eu ri, meu amigo riu. O riso, todavia, foi se dissipando e gradualmente se transformou numa expressão de: ué.

Duas semanas depois, dia 12 de junho, eu estava fazendo o credenciamento na recepção do Prédio de Eventos do Hotel Plaza São Rafael enquanto estudava o cronograma do evento: nos próximos dias ouviria os relatos de, entre outros, Asa Branca, "o narrador de rodeios que foi abduzido e curado de sua doença"; Laura Eisenhower; "a bisneta do presidente Einsehower e especialista na agenda marciana" e Giorgio Bongiovanni, "o italiano estigmata que afirma conhecer o Terceiro Segredo de Fátima". Na fila para o credenciamento, faço amizade com um senhor (um padrão recorrente entre o público da conferência: o mínimo contato visual — às vezes nem isso — já é o suficiente para as pessoas começarem a falar com você) que, com eloquência ímpar, relata seu interesse por ufologia, seu estudo, sua vontade de aprender mais. "Mas o senhor só tem interesse ou já teve alguma experiência?", pergunto. Ele fecha a cara: não. Não, não, não. Só interesse. Não falamos mais nada até o fim da fila.

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O evento ocorre em um daqueles tradicionais salões de conferências de hotel: luz de repartição pública, mesas com bebedouros, térmicas com café. Há um esforço tão grande em não criar um mise-en-scène místico que, não fossem os cartazes, poderia muito bem passar por um fórum de corretores de imóveis, um simpósio de parto humanizado ou um encontro de agricultores. O público é assustadoramente normal e geriátrico: a grandíssima maioria das pessoas tem mais de 50 anos, um oceano de cabelos grisalhos e cabeças carecas cheias de manchinhas senis. Velhinhas e velhinhos que parecem minha vó, com seus casacos de tactel, blusão de lã e tênis Rainha branco, interagem em rodinhas. A julgar pela aparência e idade, apostaria que os tópicos das conversas seriam os netos e os problemas de saúde. Fingindo sede e me aproximando para pegar um copo d'água, escuto por cima o diálogo entre duas senhoras que não poderiam ter menos de 65 anos:

— Mas ele falava português?

— Não, era uma voz metálica mesmo.

Confraternização inicial entre o público do Fórum. Crédito: Daiane Marcon

Tiro o bloquinho do bolso e anoto "pt-br??? voz metalica!!! metalico ñ é um idioma", sem saber que ouvir por cima conversas do tipo seria o que mais aconteceria nos próximos dias. Ao entrar no salão das palestras, você se depara com as banquinhas de souvenirs: camisetas de uma "grife de ufologia"; autores vendendo e autografando seus livros; canecas, adesivos, bonés e assinaturas da revista UFO. No mesmo espaço, um homem sob o banner "Você já foi abduzido?" recebe relatos enquanto outro sujeito arruma a plaquinha "Faça aqui sua caricatura", expondo desenhos dos visitantes com ETzinhos no ombro e discos voadores no céu. Aperto os olhos e vejo que é o senhor da fila, o não-não-não-só-interesse, que está curvado e preenchendo um formulário que relata sua abdução. Fui invasivo e afobado demais, como um sujeito que chama a menina do Tinder pra sair antes sequer deles migrarem para o Whatsapp.

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Pelo tom das conversas — a naturalidade, a facilidade na interação, a ausência de intenção de impressionar — é perceptível que o sentimento do público é de conforto. Todos relatam suas experiências com naturalidade, sem medo de julgamento. Senhores e senhoras, tadinhos (uma pessoa só se torna idosa quando você não pode falar nada dela sem inserir um tadinho), se encontrando para trocar histórias que, para eles, são normais e cotidianas. "Lá fora eles dão risada, né? A gente não fala por medo de passar ridículo", explica uma senhora com um tom calmo e compreensivo de vó depois de pontuar, com a clareza de jogadores de RPG, as diferenças entre os alienígenas greys, nórdicos e draconianos. São pessoas que vivenciaram (ou acham que vivenciaram, vamos lá) algo e vieram aqui pra entender melhor aquilo. Em dado momento, um palestrante perguntou quem ali já havia sofrido abdução e o resultado foi mais de 70% do público de mãos pro alto.

Palestrante pergunta: quem aí já foi abduzido?. Crédito: Daiane Marcon

Havia jovens no local, mas pelas barbas e as Canon penduradas no pescoço dava pra identificar que eram imprensa; era fácil perceber os olhares de abutre procurando um personagem excêntrico como quem diz Vamos fazer jornalismo gonzo, vamos? Vamos fazer gonzinho?. Confesso que eu escaneava o mesmo. Fiquei envergonhado. Aquelas pessoas querendo acreditar, se entregando ao Ato de Acreditar, se permitindo a maior virtude de todas — a vulnerabilidade — e nós ali tentando vampirizar algo, enfiando câmeras em suas caras, sugerindo que abraçassem estátuas infláveis de alienígenas. Torci para que houvesse um arrebatamento, uma abdução em massa que levasse todos os velhinhos e ficássemos só nós da imprensa ali, o olhar de deboche superior se dissolvendo em questionamento.

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A fixação da imprensa nesses bonecos infláveis de ETs merece estudo. Crédito: Daiane Marcon

Uma voz modulada e estridente sai das caixas de som dizendo "a verdade está lá fora" e, ao que parece, é o sinal para começar as palestras. Foi feita uma bancada inicial com todos os convidados e conferencistas com Ademar José Gevaerd, editor da revista UFO e o grande organizador do evento, apresentando um a um com empolgação genuína. As palestras seguintes definiram o tom do resto do evento: uma miscelânea em que um palestrante entrava em uma digressão sobre seu mandato como deputado, sobre a corrupção do Brasil, sobre o estado islâmico… Uma segunda palestrante falava sobre xamanismo, abdução e fé. Ufologia? Quase nada.

A fusão entre espiritualidade e ufologia marcou todas as falas do evento. "Não quero só saber quantas janelas tem a nave, de que material ela é feita. Quero saber o que existe além, como enriquecer meu ser", explicava com gestos didáticos Gevaerd, o editor da UFO, enquanto conversávamos sentados numa escada do hotel. Mais cedo ele havia afirmado no palco, em um momento comovente com fotos de sua filha falecida nos telões, que comprovou a vida após a morte. Faz sentido: ambas as áreas buscam por algo mais, algo maior. Todavia, as palestras até agora tratavam tudo com um tom e uma abordagem que beiravam um culto religioso. "Botar Jesus no meio? Nadavê", concordou comigo um senhor do Paraná durante o relato do italiano Giorgio Bongiovanni. O estigmata mostrava fotos no telão das manifestações das chagas de Cristo no seu corpo enquanto afirmava que o Terceiro Segredo de Fátima era a segunda vinda de Jesus, agora acompanhado por um exército de alienígenas. Me esforço para ouvir e acreditar. Fico frustrado ao perceber que estou mais fetichizando a ideia de pureza em acreditar do que realmente sentindo algo. Saco o celular do bolso e mando uma mensagem para uma menina com quem ando flertando: "to vendo a palestra do estigmata… se vc manifestasse as chagas de cristo no seu corpo vc seria uma estig-gata."

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Iconografia religiosa é tão recorrente quanto imagens de OVNIs nas palestras. Crédito: Daiane Marcon

Enquanto o atendente de uma das bancas de lembrancinhas fica ofegante inflando um boneco de alienígena, aponto ao editor o quão normal parece tudo aqui: as pessoas, o ambiente, o profissionalismo. Gevaerd sorri e, inspirando como quem vai repetir pela milésima vez o mesmo discurso, fala sobre a seriedade com que ele e os participantes tratam a ufologia, sobre a preocupação em produzir um conteúdo sóbrio. Nisso abre o elevador e entra no recinto um senhor com cabelos e barba brancas, calças e alpargatas igualmente brancas e uma capa vermelha cintilante. Ele entra falando alto e Gevaerd, o editor com quem eu conversava, faz um pshhhhhhh bonachão porém firme. O tipo de autoridade doce que se tem com o louquinho do bairro.

Atendendo pela alcunha de Maninho — maneira como ele se refere aos outros —, o homem da capa vermelha entra em um modo de fúria divina ao receber qualquer atenção: discursa com dedo em riste sobre ufologia, política e religião:

— Jesus era um ufólogo? Talvez. Maninho, me reza aí um Pai Nosso que eu te corto quando tiver sinal de ufologia — ele desafiou.

Mal comecei a rezar e ele, fazendo uma tesourinha com os dedos, me "cortou".

— Aí, ó. "Pai nosso que está nos céus". Nos céus, plural. Vários céus, vários mundos. — conclui ele.

Maninho. Crédito: Daiane Marcon

Logo Maninho é roubado por um repórter que o atiça, coloca um alienígena inflável no seu colo e bate palma para o louquinho dançar. Os outros frequentadores ao redor balançam a cabeça negativamente para a maneira com que ele queima o filme do estudo ufológico. "É, não dá pra ouvir todo mundo", sussurra um repórter da UFO me pegando pelo braço. Mas, pensando assim, não fossem seus gestos espaçosos, sua fala alta e sua vestimenta excêntrica, o grosso do seu discurso não difere muito do resto dito ali nas palestras. No palco, Laura Eisenhower, a bisneta do presidente americano de mesmo sobrenome, fala sobre Adolf HItler, Winston Churchill e Aleister Crowley terem feitos pactos com negative aliens e nós termos que ajudar a Mother Goddess a combater essa força. Na plateia, uns 600 idosos concordam balançando a cabeça positivamente com a tradução simultânea que ecoa altíssimo de seus fones de ouvido.

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Banner divulgando o boné da revista UFO. Crédito: Daiane Marcon

Com o passar do dia, os topos de cabeças foram se escondendo sob bonés que a revista UFO vendia por 30 reais. Eu usava o meu (azul-marinho) e Juan Oscar Pérez usava o dele (verde-musgo) enquanto conversávamos sobre sua abdução no interior da Argentina. Após alguns fracassos, uma sensação de que o ceticismo me impedia de fazer as perguntas certas, inventei uma maneira nova de conversar com os palestrantes: puxei assunto com um senhor, um ex-economista doutorado na França (ele fez questão de pontuar seu sucesso e funcionalidade profissional, um ritual comum a todos com quem falei para afirmarem sua normalidade), que estava ali para entender uns sonhos premonitórios que teve, e o apresentei ao peão argentino que foi abduzido aos 12 anos de idade. Os dois conversaram sobre a descrença e riso dos outros quando contavam suas histórias: o primeiro contou da vez em que salvou a família de um incêndio com instruções que recebeu em um sonho, o segundo relatou sua primeira abdução, quando galopava com seu cavalo, o Cometa (impossível não achar bonita a simbologia), e viu luzes no meio do mato. O Cometa fugiu e Juan, com apenas 12 anos, entrou na nave para um passeio. "Uma força te puxou?", perguntava o ex-economista, empolgado com o relato; "Não. Entrei de curioso", respondeu o argentino. Fomos interrompidos por Asa Branca entrando no palco.

"O Asa", como foi introduzido, relatou sua abdução em primeira pessoa, de maneira direta e ilustrativa, com tom de causo de matuto. O narrador de rodeios tem o tradicional sotaque do interior paulista, uma maneira de falar que parece que foi feita para contar histórias fantásticas. Asa entrou no palco pedindo perdão pelo seu português ruim. Falava do seu medo de ser colocado numa gaiola e servir de bichinho de laboratório para extraterrestres. "Eu pensava, vish, tô danado, vou ficar na gaiola, vou virar papagaio." A plateia ria, ele ria. Era bonito: era um riso de si mesmo, de quem vê o absurdo, a loucura da situação, mas não está desacreditando, debochando. É um riso benigno. Não tem como rir de quem já está rindo de si mesmo.

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Referências ao espaço em quase todos os acessórios. Crédito: Daiane Marcon

Com tempo de sobra, foi aberto um espaço para perguntas ao Asa Branca. Entre dúvidas sobre dados técnicos e detalhes visuais dos alienígenas, o Maninho, o barbudo da capa vermelha, implorava por uma chance de falar, todas negadas. Cansado, o senhor levantou, impondo sua capa vermelha a todos os presentes e, mesmo sem microfone, gritou:

— Quero saber se eles são bons ou ruins! Vocês não falam! Eu quero saber! Vocês podem ter certeza que vocês vão ouvir falar de um cara que vai voar num disco voador e vai descobrir se os alienígenas são bons ou ruins! Vocês vão ouvir! E esse cara sou eu! — berrou Maninho, citando Roberto Carlos.

A organização pediu que Maninho se acalmasse. Ele, com a mágoa de quem acha aquilo imperdoável, saiu enquanto os outros presentes ou riam dele ou balançavam a cabeça negativamente. Embora a abordagem dele tenha sido agressiva, devo concordar que: pouco foi falado sobre a índole per se dos alienígenas e suas intenções. O fórum inteiro foi um misto de relatos conflitantes sobre fé, espiritualidade e alienígenas que pouco somavam e muito se contradiziam. Eu também estava com mais perguntas que respostas e acabei me identificando com a explosão febril do Maninho: por favor, falem algo pontual. Me façam acreditar.

Quando perguntei a um senhor se às vezes ele não se questionava sobre a veracidade de suas crenças, ele falou, sem titubear: "Nunca. Não tem como, é inconcebível não existir vida alienígena visitando a Terra. Pensa na galáxia. É como construir um prédio enorme, gigantesco, e só usar um andar, nunca visitar os outros andares." Achei uma excelente analogia e quis acreditar, mas mais uma vez fracassei. Tento lembrar da minha memória de infância, da nave pegando fogo do outro lado da rua. Está ali mas, não sei. O fórum foi como ver um mágico explicando o truque. Não quero ser incapaz de acreditar, de me tornar vulnerável. Quero acreditar. O quanto é mecanismo de defesa? O quanto é simplesmente razão? O quanto é engodo deles? O quanto é arrogância minha? É um limbo de autoconsciência que não permite desacreditar totalmente e muito menos acreditar completamente. Um limbo que não deixa alcançar o Absoluto mas também impossibilita o ceticismo. Você dá uma volta enorme, descalço sobre cacos de vidro, para não chegar em lugar nenhum.

Saio desolado do hotel, olho para o céu, não sinto nada. Suspiro um me abduiz, Jesuis, dou uma última olhada para o hall de entrada do hotel e vejo uma senhorinha de um metro e cinquenta sorrindo e fitando o cartaz do evento: uma montagem de Photoshop com um grupo de 10 pessoas caminhando na direção de luzes no meio de um bosque, um ato de fé, de coragem, de entrega. A senhorinha toma os últimos goles de seu café e volta para o salão de conferências, iluminadíssimo, também entrando na luz. Fecho a jaqueta e vou para casa, caminhando pelo escuro.