​O homem que mapeia o céu dos índios
Com formação na França e raízes guaranis, o pesquisador brasileiro Germano Afonso recupera a estreita ligação dos indígenas do Brasil com a astronomia. Crédito: Vinicius Ferreira

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

​O homem que mapeia o céu dos índios

Com formação na França e raízes guaranis, o pesquisador brasileiro Germano Afonso recupera a estreita ligação dos indígenas do Brasil com a astronomia.

Certa vez o astrônomo Germano Bruno Afonso, 65, palestrava sobre arqueoastronomia numa universidade brasileira quando um professor da instituição pediu a palavra.

"A arqueoastronomia é muito interessante", disse o homem. "Mas não seria mais produtivo empregar seu talento apenas na produção do conhecimento astronômico mais formal?"

Afonso ficou confuso. "Não sei se o senhor está me elogiando ou ofendendo", respondeu. "Algumas pessoas acham que o melhor é focar numa coisa só e ser melhor do que os outros nessa coisa. Eu não penso assim. Prefiro ser essa metamorfose ambulante, como diz o Raul Seixas."

Publicidade

A réplica é quase um resumo da vida e obra do astrônomo. Exótico, arrojado e mente aberta, Afonso é um dos pioneiros no Brasil nas áreas de arqueoastronomia e etnoastronomia, duas áreas, digamos, pouco usuais. A primeira delas compreende o estudo das ideias das antigas civilizações sobre os astros; já a segunda tem como foco o conhecimento do mesmo tema entre povos não-ocidentais. No Brasil, devido ao nosso povoamento indígena originário, ambas se sobrepõem.

Atuante há 25 anos, Afonso faz palestras no exterior e seu trabalho já foi apresentado em documentários internacionais. No Brasil, parece que só agora colhe algum reconhecimento junto a seus pares. "Me orgulho de hoje receber bolsa do CNPq para fazer essas pesquisas. Durante muito tempo paguei tudo do meu bolso", disse ao Motherboard. "Em fevereiro iniciei um curso para astrônomos da UFRGS sobre o conhecimento indígena dos astros. Se fosse falar desse tema há vinte anos, era capaz de me expulsarem da academia."

Crédito: Vinicius Ferreira

Toda a trajetória de Afonso parece tê-lo guiado para a pesquisa que desenvolve hoje. Começou a sonhar com as estrelas ainda menino em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. A cidade faz divisa com Pedro Juan Caballero, no Paraguai. O trânsito intenso de pessoas e costumes entre as duas fomentou uma cultura que combina elementos brasileiros, paraguaios e guaranis em partes iguais.

A família de Afonso era a própria concretização deste melting pot: brasileiros, filhos de paraguaios com ascendência guarani, falavam três idiomas em casa. Os pais o ensinaram a identificar no céu as constelações dos guarani, assim como a conexão de algumas delas com as estações: a da Ema é usada para marcar a chegada do o inverno, a do colibri assinala a primavera. E por aí foi.

Publicidade

Quando criança, Afonso foi batizado na igreja católica e, ao mesmo tempo, recebeu dos pais um nome indígena em guarani (que, como manda a tradição indígena, é secreto). "O professor Germano é o nosso primeiro astrônomo profissional indígena", avalia o escritor Jaime Diakara, índio da etnia Desana, que foi orientando de Afonso durante a graduação e hoje cursa o mestrado pesquisando as ideias cosmológicas de seu povo.

Adulto, Germano Afonso estudou física, cursou o doutorado na França e se tornou especialista em mecânica celeste, a área da astronomia que lida com os movimentos dos astros. Na França, trabalhou no célebre Observatório da Cotê D´Azur, em Grasse. Lá, com a ajuda de um canhão de laser, monitorava o passo de satélites a seis mil km de altura. Os dados revelavam que a órbita deles diminuía 1mm a cada dia, sem que fosse possível encontrar nenhuma causa. Afonso propôs um modelo que levava em consideração o efeito de outros fatores além da força gravitacional, tais como o aquecimento desigual da superfície do satélite. Mais tarde, estudou a ação de forças não-gravitacionais para explicar como fragmentos de asteroides volta e meia vem dar com os costados na Terra. Esta virou sua principal linha de pesquisa acadêmica.

Nas horas vagas, Germano ajudava um colega francês que operava o mesmo canhão de laser para medir a órbita da Lua. "O canhão tinha como alvo os refletores deixados pelas missões Apollo. Na época era uma coisa meio secreta, comentada apenas entre os pesquisadores", conta. Retornou à França cinco vezes durante 15 anos, colaborando com o Observatório da Cotê d´Azur. Fez carreira como professor de astronomia na UFPR, onde se aposentou em 2003. Hoje é coordenador de pós-graduação no Centro Universitário Internacional, no Paraná.

Publicidade

"O professor Germano é o nosso primeiro astrônomo profissional indígena"

"O trabalho dele é muito respeitado lá fora. Ele é visto como um físico criativo, e isso é algo que poucos têm", diz a astrônoma Jânia Duha, do Instituto Federal do Paraná e sua orientanda de mestrado e doutorado. A pesquisa do doutorado de Jânia, também ligada aos efeitos de forças não-gravitacionais sobre satélites, proporcionou-lhe um convite para residir nos EUA por um ano a fim de colaborar numa pesquisa da NASA.

Escrito nas estrelas: o início da busca pelo céu dos índios

Enquanto evoluía na carreira acadêmica, Germano começou a engatar a pesquisa com etnoastronomia. Os primeiros passos ocorreram em 1991, quando colaborou com uma missão de salvamento de um sítio arqueológico na região de Salto Segredo, no Paraná. O sítio seria destruído para a inundação de uma barragem, e os arqueólogos estavam intrigados com uma pedra de 1,5 m talhada artificialmente e envolta num círculo de pedras menores. A análise de Afonso mostrou que a estrutura funcionava como um observatório dos movimentos dos astros. Estava orientada no sentido Leste-Oeste com precisão absoluta, o que permitia identificar os pontos cardeais mesmo com o tempo nublado ou de noite. O círculo externo mostrava os pontos onde o sol nascia e se punha nos solstícios e equinócios. Possibilitava, assim, marcar o início das estações.

Para um trabalho de arqueoastronomia convencional, a pesquisa poderia parar por aí. Afonso, porém, foi até uma aldeia da região e conversou com o pajé. Queria compreender as origens. "Ele deu uma aula de como a determinação das estações do ano e dos pontos cardeais permitia estabelecer o calendário de atividades de agricultura, caça e pesca", lembra. Essa iniciativa mudou sua metodologia de trabalho. A partir dali, aprimorou sua investigação de sítios arqueológicos e pinturas rupestres em diversos estados do país.

Publicidade

A busca do ponto de vista dos indígenas contemporâneos sobre o material arqueológico do Brasil é um dos diferenciais da visão de Afonso. Ele começou a vislumbrar essa possibilidade quando lhe caiu nas mãos um livro do frade francês Claude d´Abbeville. Em 1612, o religioso viveu por quatro meses entre os índios tupinambá do Maranhão e registrou a experiência no livro História da missão dos padres capuchinhos na Ilha de Maranhão e terras circunvizinha, no qual relatou os nomes de 30 estrelas e constelações.

Crédito: Vinicius Ferreira

"Vi quatro ou cinco nomes que eu já tinha ouvido os guarani usarem também. Daí fui conversar com eles e pedi que me mostrassem onde ficavam as tais constelações", conta Germano. "Eles apontaram as estrelas do mesmo jeito que o d´Abbeville descreveu. Eu achava que fosse encontrar um conhecimento particular para cada aldeia. Essa conversa me mostrou que dois grupos que nunca tiveram contato, vivendo a 2500 km de distância e com quase 400 anos de diferença, partilhavam o mesmo conhecimento."

O astrônomo morou cinco anos em Manaus, onde trabalhava no Museu da Amazônia. Nesta fase, frequentou São Gabriel da Cachoeira, no interior do estado, que abriga 23 etnias indígenas. "Quando ia para lá era café da manhã, almoço e jantar conversando com os índios e aprendendo", diz. Também viveu algum tempo com os índios tembé, do Pará. A convivência resultou em iniciações em dois povos. Os tukano, que vivem no Alto Rio Negro, lhe deram o nome de Doé; os tembé, de Amã.

Publicidade

"Ele fez com que a cultura do índio fosse vista também como conhecimento"

Outra estratégia de pesquisa foi selecionar dez jovens indígenas que atuavam como professores nas aldeias para se tornarem bolsistas do Museu da Amazônia. Todos passavam parte do ano estudando na Universidade Estadual do Amazonas. A tarefa deles era aproveitar o período de retorno à aldeia para coletar o máximo de informações sobre astros. "Este conhecimento é restrito. Numa aldeia com 400 pessoas, só três ou quatro, os pajés e mais alguns, é que costumam saber", diz.

Além de coletar novas informações, o trabalho repercutiu nas aldeias do estado. "Fizemos várias palestras e atividades culturais nas aldeias", conta Jaime Diakara, um dos bolsistas do projeto. Entre as atividades, ele enumera a criação de um relógio de sol e de um planetário indígena, e o registro do calendário que orienta a vida dos povos do alto Rio Negro. "Esse conhecimento que já existia nas aldeias, mas estava 'para dentro'. O professor Germano conseguiu puxar 'para fora'", avalia. "Ele fez com que a cultura do índio fosse vista também como conhecimento", diz Diakara.

Consultas aos oráculos indígenas

Ao longo de duas décadas, Afonso juntou grande quantidade de informações sobre como o conhecimento astronômico embasava a mitologia e o cotidiano dos povos indígena. Entre os objetos mais importantes estão o Sol, a Lua, Vênus, as constelações do Cruzeiro do Sul e das Plêiades, a Via-Láctea e as regiões do céu onde se situam Órion e Escorpião, constelações ocidentais que surgem, no Hemisfério Sul, no verão e no inverno, respectivamente.

Os guarani, por exemplo, ainda constroem suas casas de forma que as portas deem diretamente para o leste e o oeste. É o chamado caminho dos mortos. Eles acreditam que é o percurso que seguem as almas dos falecidos. Também preferem realizar atividades como caça ou extração de madeira durante a lua nova, já que na lua cheia os animais estão muito agitados. E fazem o plantio principal do milho geralmente na primeira lua minguante de agosto. Aqueles que habitam o litoral associam a lua e as marés às estações do ano para o calendário de pesca artesanal. A melhor época para a pesca do o camarão, dizem, é na maré alta da lua cheia, entre fevereiro e abril. O linguado é mais comum no inverno, nas marés da lua crescente e da lua minguante.

Publicidade

O calendário regula também atividades não associadas à produção de alimentos. Por volta de janeiro, época de fortes temporais, ocorre o ritual do nimongarai, em que a criança recebe um nome. Os guarani dividem o céu em cinco regiões: zênite, norte, sul, leste e oeste, cada uma associada a nomes típicos. O nome da criança é escolhido de acordo com a associação a certa região. Enquanto Afonso conta todas essas peculiaridades, percebe-se que ele é um mapa vivo da cultura astronômica indígena. Parte do que aprendeu já foi apresentada em dois livros de divulgação intitulados O Céu dos índios Tembé (ganhador do Jabuti em 2000) e O Céu dos índios de Dourados.

Mesmo com prestígio internacional e livros premiados, arqueólogos e antropólogos criticaram o trabalho de Afonso sob o argumento de que, muitas vezes, ele enxergava elementos astronômicos em contextos onde eles não estavam presentes. Um exemplo foi o da interpretação de pinturas rupestres encontradas no Paraná. Duas figuras chamaram a atenção do astrônomo: um traço em formato de arco na horizontal e um círculo com um ponto no centro e dez riscos ao redor. O pesquisador recorreu aos informantes indígenas, que disseram que o círculo representava o sol e seus raios; o arco, por sua vez, identificava o primeiro aparecimento da lua crescente após o período da lua nova. "E eu procuro confirmar cada informação com pelo menos três fontes antes de dizer qualquer coisa", conta.

Publicidade

"Com seu interesse por temas como o I Ching e suas raízes indígenas profundas, difere muito do cientista simplório que costumamos ver no Brasil, ele tem uma abertura que lhe permite fazer pesquisa de uma forma muito criativa"

Quando apresentou sua interpretação num congresso, foi refutado por uma antropóloga. Ela disse que o arco representava uma canoa. Já a bola com riscos radiais era um signo de um cocar. "Daí voltei ao pajé e ele me explicou que o cocar é que já é uma representação do sol e que o arco serve tanto para a lua crescente quanto para a canoa. Os índios são mais holísticos, nós é que tendemos a analisar as coisas de forma compartimentada", analisa.

Ele também ataca a resistência de alguns arqueólogos a admitir a possibilidade de que os índios no passado tenham erigido marcos astronômicos. "Esses marcos que encontramos aqui são umas pedrinhas quando comparado a lugares como Stonehenge ou de Karnak. E que ninguém sabe quem construiu ou como! Mas estruturas assim existem no mundo inteiro, no Egito, no Peru… Só no Brasil é que não pode ter?"

Outro tema extra-acadêmico que ganhou atenção de Afonso é o I Ching. O livro é peça fundamental do taoísmo, corrente filosófica e religiosa oriunda da China Antiga, e muito usado como oráculo, inclusive no Brasil. Teve entre os seus primeiros divulgadores no Ocidente o célebre filósofo alemão Gottfried von Leibniz (1646 – 1716). Entre outras coisas, Leibniz é considerado o pai do código binário que tornou possível o desenvolvimento do software. Afonso dedicou um livro ao I Ching e diz que o próprio Leibniz teria reconhecido que a ideia do código já estava presente na obra chinesa. "Só depois é que o I Ching ganhou esse caráter de instrumento de adivinhação. Se você souber procurar, ele contém toda uma cosmologia ali, relacionada com o sol, a lua, os pontos cardeais… É mais um caminho para aprender o ponto de vista de outro povo, não-ocidental, e ir além do etnocentrismo", diz.

Publicidade

Decano do jornalismo de ciência no Brasil, o jornalista Ulisses Capozzoli acompanha o trabalho de Afonso desde os anos 1990. "No Brasil nós temos um modelo de cientista que é muito simplório. O Germano, com seu interesse por temas como o I Ching e as suas raízes indígenas profundas, difere muito disso", diz. "Ele tem uma abertura para as coisas menos ortodoxas que lhe permite fazer pesquisa de uma forma muito criativa."

Por que a academia exclui a sabedoria indígena?

A ex-orientanda Jânia pensa parecido. "Físicos são arrogantes por natureza. Só por trabalharem numa área que tem grandes nomes, muitas pessoas se sentem importantes", diz. "A mente aberta do Germano e seus vários interesses fazem dele uma pessoa mais humilde no meio científico. Ele sempre tratou os orientandos como iguais, mesmo os mais inexperientes e jovens."

Esse olhar ajuda a moderar a visão etnocêntrica que tende a enxergar a ciência ocidental como sempre mais avançada do que a dos outros povos. Num artigo publicado por ocasião do Ano Internacional da Astronomia, em 2009, Afonso apontou que o livro escrito pelo padre d´Abbeville sobre os indígenas do Maranhão registrou também que eles associavam as mudanças nas marés às fases da Lua. Ocorre que, na mesma época em que a obra foi editada, ninguém menos do que Galileu Galilei estava propondo uma teoria para explicar as marés.

Crédito: Vinicius Ferreira

Erroneamente, o pai da astronomia moderna tentava explicar as mudanças no nível do mar apenas pelos movimentos da Terra em torno do Sol e do próprio eixo. Só décadas depois Newton propôs a teoria da gravitação e reconheceu que a Lua desempenhava um papel importante. "Neste caso, o conhecimento dos índios estava à frente do que pensavam os cientistas", diz Afonso. "É um exemplo de como o trabalho pode contribuir também para a história da ciência."

"O que há de louvável na minha metodologia é que eu tenho a humildade de perguntar ao índio qual é a visão dele sobre aquele assunto", diz Afonso. "Em geral a explicação dele é mais convincente do que a minha. E mesmo que não seja, é outra explicação, que reflete outra maneira de ver o mundo."

E, com a calma de sempre, concluí: "Por que um arqueólogo que faz uma descoberta não procura os índios da região para ver o que podem falar a respeito? Será que eles só poderiam falar besteira? Muitos pesquisadores tratam a cultura indígena como se estivesse morta no Brasil. Ela está viva."