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Outros

O Louva-A-Deus

Leia "O Louva-a-Deus", um conto de Antônio Fraga, escritor elogiado por Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes por "Desabrigo"

1
GÊNESIS
Ça a debute comme ça.— L.F. Céline

Entomólogo amador, deparo com um louva-a-deus no jardim de minha casa. Após capturá-lo, vou à biblioteca, encerro-o numa caixa de charutos e fecho esta na gaveta da escrivaninha de meu pai. Saio, nem me recordo mais para fazer o quê. Quando volto, mais tarde, aturde-me o que vejo: o inseto devorou a caixa de charutos, a gaveta da escrivaninha e ataca o pouco que sobra do tampo do móvel. — Diabo! — Meu pai entrou na biblioteca, seguido por minha mãe.— Que fazes aí, parado feito pateta? Vamos matar esse bicho! Apanha uma régua e levanta-a. Frente à ameaça, o louva-a-deus ergue as patinhas dianteiras e junta-as, como a pedir clemência. Meu pai calcula o golpe e… — Não, não faça isso !— pede minha mãe, a quem o gesto do animalzinho enterneceu. Discutem, discutem. Em pouco, meu pai se encaminha para o botequim da esquina — o que faz sempre que o contrariam em casa. Sob a proteção de minha mãe, o louva-a-deus galga tranquilamente a estante e começa a roer a capa de um velho in-quarto. Alta noite — devora os livros, a estante e demais móveis — investe para as paredes do aposento; após ter dado cabo do vestíbulo e da sala. Infelizmente, o botequim da esquina abre cedinho. Mal clareia o dia, meu pai retorna para lá, e fico a sós, com minha mãe, no que sobra da casa. Às sete horas da manhã, mais ou menos, estando no jardim. Uma vizinha se aproxima curiosa. — Vão construir outro prédio? — Não. — Então por que motivo mandaram derrubar este? Minha mãe explica. A outra, primeiro, arregala os olhos, espantada; depois, quando minha mãe une as mãos, na mímica do louva-a-deus, apieda-se: — Tadinho! O coitadinho, roído o último tijolo de nossa morada, passa de um curto voo às paredes da residência mais próxima, exatamente a da vizinha. Embora penalizada, esta põe-se a berrar pelo marido. O homem chega à janela, inteira-se do ocorrido e volta-se para mim. — Seu pai, onde está? — No botequim da esquina. — Bonito, muito bonito. — Ele meneia a cabeça, com ar reprovador. — Ir para o botequim, enquanto lhe destroem a casa! Olha o louva-a-deus por um instante. Depois empina o peito, resoluto. — Vou buscar seu pai — comunica — para acabarmos com isto. E vai. Ao crepúsculo, o louva-a-deus já demoliu metade do quarteirão. Chefes e chefes de família se aglomeram no botequim da esquina. Um deles, magro em excesso, dá repentino murro no balcão. — A situação não pode continuar assim. — Claro, não pode — confirma o botequineiro, apanhandouma garrafa. Indica, logo a seguir, a taça vazia do magricela. — Outra dose? — Outra. — E o amigo? Outra dose? — Dupla — reforça meu pai. — O senhor é um bom copo — comenta o botequineiro, enquanto serve a bebida. — Bebe muitíssimo bem. — Estou tentando me animar — escusa-se meu pai. — Tenho de matar aquele bicho. — Mas que mal lhe fez o inseto? — indaga o botequineiro, toda a bondade em função da féria obtida. — Não ataca pessoas, destrói apenas casa! Vai prosseguir na defesa do inseto, quando um freguês pede silêncio — dedo apontado para cima. Ouvimos, estarrecidos, um leve roque-roque no telhado. Pálido, o botequineiro começa a tremer como um pudim. —Só destrói casas, hein?—recorda-lhe o magricela, vingativo.—Pois chegou a vez da sua. A esta altura, os bebedores voltaram a si do pasmo e passaram a discutir. Sugere este que se fuja e fuja logo; aquele que se mate o bicho a socos; mas um outro propõe solução diferente, a divergir. Em breve, a alvitrar todos e todos a discrepar, ninguém se entende mais em meio de ensurdecedora algazarra. Um cavalheiro, porém, consegue dominar todo esse clamor, bramindo: — Há um outro botequim! Esta revelação tem efeito de tiro em bando de pardais: mata o alarido. — Onde é que fica? — indaga um cara gordo. — Na outra esquina — indica o cavalheiro. — Que estamos nós fazendo? — volta a falar o gordo. — Vamos logo pra lá! A execução em massa dessa ideia põe o boteco em movimento. Eu — cai aqui, levanta ali e pisa acolá sobre mesas, pessoas e cadeiras derrubadas — sou, não sei como, levado à rua pela multidão em rebuliço. Na calçada fronteira, minha mãe se destaca por entre outras senhoras, todas a sorrir ferozmente, exultantes com a nossa retirada. — Eu sabia que o bicho faria algo de bom — diz uma delas, emocionada e convicta. Manhã seguinte, o Chefe de Polícia dirige-se ao Prefeito; o Prefeito é recebido pelo Presidente da República; convocam-se sessões extraordinárias do Senado, Câmara dos Deputados e Vereadores. Imediatamente, várias providências são tomadas. Uma delas, desviar o tráfego das ruas ameaçadas pelo louva-a-deus; outra, importar bebidas do exterior pois todas as provisões de álcool da cidade estão esgotadas. — As divisas necessárias à importação — argumenta um Deputado, falando a seus pares — podem ser recuperadas através de uma taxa que incida sobre a totalitariedade de impostos existentes. Num parêntese, sugiro que a taxa seja denominada ortóptera. — V.Exa. me permite um aparte? — indaga o líder da oposição. — Tenho sempre prazer em ouvir V.Exa. — A minoria lembra a V.Exa. que se poderia cognominar de mantídea a taxa, vocábulo mais expressivo no tocante ao louva-a-deus. — Fico grato à sugestão de V.Exa. — Sugestão da minoria — retifica a modéstia do líder minoritário. — Muito obrigado. Entretanto, a maioria que é representada no momento por minha débil voz… — Não apoiado! — Grato a V.Exa. — Não há de quê. — A maioria, como ia dizendo, não recuará em sua resolução de apodar a taxa de ortóptera… Resolvida essa questão — pelo voto secreto — generais, capitalistas, artistas de rádio, teatro e televisão posam para cinegrafistas e dão entrevistas a repórteres nacionais e estrangeiros; beldades se inscreveram no concurso que elegerá miss louva-a-deus; intelectuais da nova geração lançam o manifesto Movimento Inseticista etc. E enquanto isso, o louva-a-deus converte a cidade numa imensa ruína, deixando ficar de pé apenas as igrejas.

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2
NA LINHA DO HORIZONTE
Use your legs.—Shakespeare

Um perneta, dias mais tarde, está propondo algo a meu pai. Resolveu ir se instalar com alguns amigos — aponta um grupo à espera, adiante — na igreja matriz de nosso bairro. Como o templo não é muito espaçoso, urdiram em surdina para evitar adesões. Mas, se meu pai quiser… — Eu e a família? — Claro. — Um minutinho, por favor. Improvisamos uma barraca no jardim, com lençóis e cobertores. Meu pai se encaminha para lá, desaparece no interior da mesma e dentro em pouco ressurge—fisionomia irada. Ao chegar onde estamos, consertou as feições e toma um ar compungido. Uma pena recusar o convite; creia. O outro, está sinceramente desolado. Em todo caso, apraz-lhe ver que tem no capenga um amigo; fica-lhe muito, muitíssimo grato. — Sua mãe — elucida, logo que o aleijado parte na direção dos companheiros. Não entendo de pronto. — Minha mãe? — Sim — ratifica, enviesando os olhos para a tenda. — Ela disse que não iria. Sobrolho erguido, olha a barraca ainda por um tempo. Súbito, após haver comparado minha progenitora à esposa do boi, põe-se em marcha e toma o rumo do costume — os escombros do botequim. Não tendo o que fazer, sigo por meu turno no encalço do perneta. Claudicante, este já se movimenta a distância, acompanhado por homens, mulheres e crianças — todos a caminhar em passos tardos, ao peso dos salvados de seus lares: trouxas de roupa, caixotes com panelas, mantimentos, brinquedos etc. Apertando o andar, junto-me logo ao bando. — Vai conosco? Uma jovem, não obstante a trouxa na cabeça e o ventre avultado, está sorrindo para mim. — Não. — Acanha-me confessar que sou apenas um curioso e estiro o indicador para o fardo. — Vim dar-lhe uma mãozinha. Isto de etiquetas não lhe ocorre; transfere-me, pois a carga, sem esperar que eu insista. Oscilo, as pernas bambas sob o peso. Ela se inquieta. — Pode? — Naturalmente. Replica-lhe insultando o meu orgulho masculino. Em caminho, conta-me aos solavancos sua história. Mãe solteira. Ainda está envergonhada. Nunca iria supor que o filho dos patrões!… Foi um Deus nos sacuda, quando estes notaram que ela estava de barriga. Chamara logo a Polícia. O Delegado lhe avisou que por essa vez passava. Sim, podia ir embora. Mas da próxima, se voltasse a faltar com o respeito às causas de família, ia tomar um cadeião… Caminha um bom pedaço em silêncio, a remoer seus dissabores. Os meus, manifestando-se num resfolegar de cansaço, acabam por ferir-lhe a atenção. — Não é nada leve, hã? — observa, como que a achar o espetáculo divertido. — Não, não é — admito. — E o pior é que ainda estamos longe. Ela olha para adiante. Lá, naquele ponto em que a terra se confundo com o céu, o santuário é um minúsculo salpico de cal entre as ruínas. — Tem razão; não estamos nada perto — diz. — Mas devolva-me a trouxa. Já repousei bastante. — O quê?—fico indignado. — Então, não compreende que nunca poderia admitir? — Que coisa!… O senhor já está botando os bofes pela boca! — pondera com rudeza. — Não se faça de herói! Dê-me logo a trouxa! — Prefiro a morte — digo. Mas, daí a um nada, ainda que o faça sob um bilhão de protestos — como ordena a etiqueta — devolver-lhe a bagagem é um alívio. É uma pergunta só — quando alguém verifica que continuamos à mesma distância da matriz, não progredimos um centímetro sequer, embora a nossa fadiga ateste que já percorremos uns bons quilômetros — que acontece? Permanecendo na instável linha do horizonte, o templo se desloca aos nossos passos, recua à medida que avançamos. Não há outra explicação para o fenômeno. Supusemos, de início, que fosse uma miragem. Animados — claro que o santuário estava lá, na praça onde fora construída! — tocamos para diante. Mas, não; não era um sofisma dos sentidos, constatamos ao chegar. No local, entre os escombros, havia um limpo. E a igreja continuava no horizonte — a fugir como sempre, sempre a mesma distância. Desanimado, um mocetão robusto deixa cair o corpo sobre a relva da praça, a soltar palavrões em todos os tons possíveis; outro moço, cordilheira de músculos, dá massagens na barriga das pernas, a deplorar o esforço feito e o tempo perdido; sentada em sua trouxa, a moça grávida acaricia o ventre e põe a mágoa dos olhos nas lonjuras do abrigo — e o resto do bando é a mesma desolação, mais abatidos todos do que as próprias ruínas. Felizmente, o desalento não perdura. Os velhos, as mulheres e as crianças têm em pouco nos lábios aqueles risos de encurtar distâncias e quererem seguir para diante, prosseguir!, prosseguir!, revelando-se dotados de grande força de ânimo. Como é natural, quem mais deseja reencetar a caminhada é o perneta. — Nada de esmaecer! — exclama, eufórico. — Vamos andar de verdade, companheiros! Uma senhora idosa e magra, quero dizer, um senil feixe de ossos, concorda com o aleijado. — Se andássemos de fato, já estaríamos na igreja. Temos de ir depressa… — Em marcha acelerada — exagera o capenga. — …Para alcançar a igreja — concluiu a pré-histórica ossada. — A igreja foge, minha avó — lembra o moço dos músculos. — Se ela ficasse paradinha, nem que fosse no triplo da distância, eu iria e levaria a senhora na garupa. — Mas, se andarmos rápido… — Não adianta, avó. A fuga aumenta. — Aí a gente corre — argumenta um menino. Cedendo a um impulso, a velha acaricia a cabecinha do seu ingênuo partidário. — Curioso, um menininho ser mais valente do que adultos!… — admira-se, a desmanchar o penteado do guri com seus afagos. — Não é covarde, vejo. E o moço ri, a olhar o garoto que enfrenta os carinhos da avoenga das caveiras com os cabelos em pé, arrepiados. — Sem dúvida não chora, quando leva palmadas. — Pois o senhor chorava — afirma a velha, irritada com o bom humor do rapaz. — Não tem alma de herói. — É porque tenho o físico — explica-lhe o moço. — Graças a ele e a ter um sono forte, capaz de amaciar qualquer granito, venho dormindo há dias sobre pedras, sem me achar herói por isso. A velha dá de ombros. — Eu também durmo no chão e não me queixo — diz.—Que se há de fazer? — mostra, com um aceno, o casario demolido. — São provações de todos. — Não, minha avó!… Não atribua a todos o seu valor — protesta o moço. — No seu caso, com o débil sono da velhice, dormir no chão é heroísmo. — Acha? — Evidente. Mas teria a senhora essa brava resignação caso lhe faltasse a esperança de que nem sempre terá de dormir assim? Ela olha-o em silêncio, com uma expressão de dó. — Na minha idade não se tem esperanças — contesta, por fim. — Tem-se é a certeza de que um dia todos acabaremos por repousar me paz. — Num paraíso cheio de colchões, minha velhinha? — e o moço lhe devolve o olhar de comiseração. Nesta altura, o rapaz dos palavrões soergue o torso, cotovelos apoiados no capim. — Mais vale um relvado no chão do que dois colchões de mola a voar — declara. — O papai não se arreda daqui. — E se a igreja parar? — quem fala é a moça grávida. — Não, minha filha. Eles não sabem que Deus tarda mas não falha — responde a velhota. — Pois está nas Escrituras: pedi, e dar-se-vos-á. Se a igreja recusa, é para ver até que ponto irá a nossa fé. A questão é confiar em Deus e caminhar. — Eu não saio daqui — retorna o moço do relvado — Não costumo tentar o impossível. — Nem eu — ajunta o outro rapaz. — O impossível é a verdadeira substância dos milagres — ensina-lhes a velha. — Caminha e alcançarás. — Milagre por milagre, eu prefiro um que traga a igreja até aqui — opina um jovem amulatado. — Puxa, estava exatamente a pensar nisto! — diz-lhe um adolescente, surpreendido. Se a igreja vai, poderá vir… — Não, não virá — o mulato descrê. — Nem por milagre. — Gentinha ímpia! — exalta-se a velhota. — No meu tempo, os rapazes… — Eram umas bestas — assegura o moço dos palavrões. — Eram — concorda a velha. — Mas nunca davam coices em ninguém. — É porque tinham um físico delicado — explica o jovem dos músculos, com a devida seriedade. A velha está a pique de explodir, quando o adolescente dá um pulo. — Achei!… Já sei como é possível!… — anuncia, alvoroçado. — Faremos sua vontade, amigo — comunica ao mulato. — A igreja virá até aqui. Descobri a maneira de fazer esse milagre. Acocorando-se num ponto da praça, onde a terra tem uma falha de capim, risca no solo uma reta e corta-a, pelo meio, com uma outra, transversal. Sua voz assume um tom límpido, didático, quando diz: — Isto é uma cruz, cujos braços têm o mesmo comprimento. Uma das retas que a compõe representa a linha do horizonte; a outra, nossa linha de marcha. No meio delas, na fachada voltada para nós, está a igreja; nós estamos aqui, de frente para ela, na extremidade deste braço. — Desculpe, moço. Mas seu desenho está errado. — Errado em que, minha senhora? — A parte de cima tem de ser menorzinha. — Ora… Preveni, creio, que esta não era a cruz cristã, com um dos braços mais curto do que os outros. Trata-se de uma cruz grega, cujos braços são democraticamente iguais. — O senhor disse, eu sei. Mas a cruz verdadeira… — Não se ajustaria ao que pretendo explicar. — Pois explique outra coisa. Com esta a paciência do rapaz chega ao fim. — Cale a boca, vovó! — ordena ele. — Vá fazer seu crochê em outra parte!… — Deixe o moço falar! — Ué, será que estou tapando a boca dele? — espanta-se a velha. — Que fale! O adolescente volta a dar atenção ao seu desenho. — Pois bem — continua —, dizia eu que nós estamos aqui, de cara para a igreja, na extremidade deste braço. Vamos supor, agora, que um grupo de pessoas se encontra no outro extremo, oposto a este, e que começa a caminhar para os fundos da matriz. Ao recuar diante delas, a igreja vem em nossa direção, não é verdade? — Sim, vem — concorda um careca —, desde que haja gente do outro lado. — Nada mais fácil — garante o adolescente. — Lembre-se de que estamos aqui divididos em dois grupos: um que não deseja reiniciar a caminhada e outro que está disposto a caminhar. Agora bem; se o grupo de andarilhos quiser ir ocupar o outro extremo da linha de marcha, pode ir para lá, em linha reta, sem deslocar a matriz do lugar onde está? — Claro que não — diz o careca. — A igreja continuaria a recuar. — Então, imaginemos que eles resolvam fazer um trajeto curvilíneo. Assim, partem desta extremidade da linha de marcha para aquela ponta da linha do horizonte, tendo o cuidado de se manter a mesma distância da matriz a contorná-la. De lá — sempre a rodeá-la eqüidistantes — caminham para o outro extremo da linha de marcha. Aí, terão descrito um semicírculo em torno da matriz e estarão olhando para os fundos desta, de rosto voltado para cá. — Perfeito!—comenta um senhor. — Um grupo vai pra lá e o outro fica aqui, sem fazer nada! — Isso não tem muita importância — observa o capenga. — O pior é que o percurso agora é mais puxado. Eu, com uma perna só, não aguentarei uma estirada dessas. — E eu? — a jovem grávida aponta o seu ventre. — Aguentarei, no meu estado?! — Só um doido andaria a fazer curvas! — opina a velhota por seu turno. — Devemos é seguir para a igreja em linha reta. — Tem razão, minha avó — assenta o jovem dos músculos. — O plano desse moço é inviável. — Não criticamos o plano: criticamos a distância — diz o capenga, sagazmente. — Eu, tivesse a outra perna, já estaria em marcha. O rapaz dos palavrões se ergue do gramado. — A mim, as distâncias não assustam — declara. — Vou pôr o plano em prática. — Isto, meu bravo!… Assim é que se faz!… — exclama o capenga, eufórico de novo. — Use suas pernas, vamos!… Ponha os pés na estrada!… Mas o rapaz não lhe dá importância, olha o jovem dos músculos: — Vou só ou acompanhado? — Vamos juntos — responde o jovem dos músculos. Os demais moços aderem logo aos dois. E, daí a um nada, tendo por guia o adolescente, eles já estão marchando por entre as ruínas — segundo ora em bloco, ora em fila indiana — até sumir ao longe, apressados.

3
A RAZÃO
Der Mensch ist ein Ursachen.— Suchendes Wesen—Lichtenberg

Enquanto a igreja não vem, cada qual enche o tempo de espera a seu modo: as crianças a brincar de esconder e pular carniça; as mulheres a se juntar nos diz-que-diz; e os velhos, como sempre, a trocar impressões sobre o passado e a morte. De um dos grupos, o capenga me chama com reiterados ei!, ó moço!, psiu! Aproximo-me. Depois de haver se referido elogiosamente a meu pai—o mérito em pessoa, sem dúvida alguma — ele indaga de chofre: — Por que capturou o louva-a-deus? — E por que me pergunta? — interrogo, agressivo. Ele passa a mão no rosto, embaraçado. — Olhe, não me leve a mal — solicita. — Estava aqui a contar que a demolição começou na sua casa, quando este companheiro me perguntou como lhe dera na telha pegar o bichinho. Então, achei que ninguém poderia explicar melhor qual o motivo… — A nossa curiosidade não é malévola — ajunta um nariganga. — Nem benévola, creio… Mas, se estão curiosos, vou lhes dizer por que, embora a razão careça de interesse. Aprisionei o louva-a-deus por causa de uma formiguinha. — Esta é boa! — o narigudo supõe que pilherio. — Assim, foi tudo por causa de uma formiguinha? A incredulidade é geral. — Sim, de uma formiguinha — repito. — Como os senhores não devem ignorar, nossa terra pertence mais às formigas do que aos homens. Somos uns milhões e os formigueiros são bilhões — com milhares e milhares e milhares de formigas. — Isto de serem numerosas é só um fato aritmético — observa o nariganga desdenhoso. — Só, aquiesço. — Nada teria acontecido, porém, se elas só fossem numerosas. Nossas formigas, infelizmente, são vorazes. Da mais gigantesca árvore das matas ao mais ínfimo talo de erva dos quintais, nada lhes escapa às mandíbulas. Elas devoram tudo — seja rosa ou repolho, planta útil ou nociva, agreste ou cultivo. Atualmente, dão cabo de mais de um quarto dos vegetais do país. — Dariam prejuízo maior se fossem do nosso tamanho — opina o homem do nariz. — Aí sim, bonito estrago elas fariam! — Iludi-se. Em geral, a potência muscular dos insetos progride na razão inversa da estatura, sendo as menores espécies mais providas de força. Mas tenho um argumento bem melhor. O que lhes falta em tamanho sobra em fecundidade. E elas proliferam de tal forma que, se nada lhes vier limitar a reprodução, os nossos vegetais não tardam a desaparecer. Em breve, não haverá mais vegetais aqui. O nariganga meneia a cabeça em negativa. — O nosso amigo é francamente do exagero. Caso elas destruíssem tanta coisa, o Estado já teria acabado com todas. Estamos numa democracia—garante aos demais. Mas um careca franziu a testa, apreensivo. — O governo, o que faz? — Governa — afirmo. — Para isto o Governo tem um Ministro da Agricultura e o Ministro tem uma esposa. Por sua vez, o casal tem um filho pequeno, o garotinho tem uma pequena planta, a planta tem uma pequena folha e a folha tem uma pequena formiguinha. — Já sei! — proclama o capenga, a porejar argúcia. — Chegamos à formiguinha da captura, não? — Deu no alvo — confirmo — Pois, ao vê-la o menino corre a mãe, aos berros; a mulher corre ao marido, aos berros; o marido corre ao Ministério e berra um potente berro de Ministro. O careca sorri. — Eu imagino! — Imagine — consinto, bondoso. — Ao berro, correm todos os auxiliares de Sua Excelência, a encher de movimento os corredores. Correm, escadas acima, os humildes serventes; correm, degraus abaixo, os altos funcionários; correm, a entrar nas salas, os chefões dos chefetes; e os chefes dos chefinhos correm, a sair das salas. E a subir e descer, correm os elevadores; e a abrir e a fechar, correm as portas de armários; e correm as cortinas, e as portas de vai-e-vem; a correr tudo e todos, em todos os sentidos e todos os lugares. O narigudo circunvaga o olhar pelos presentes. — Uma balbúrdia — traduz em seu muito estilo ático. — Em meio ao corre-corre — prossigo, após haver concordado com um gesto — alguém descobre acidentalmente que há, na repartição, um Departamento Entomológico de Combate aos Insetos Daninhos à Agricultura, isto é, o DECIDA. Localizam-lhe o Diretor num bilhar da cidade. O homem vem na disparada e entra no gabinete do Ministro esbaforido, a ofegar quase tanto a se indignar. Mas que desplante, ufa! Nada menos do que uma formiga na planta de estimação do Excelentíssimo! Perde-se ao alento, safa, numa tal emergência! Ou se faz tudo, ou tudo vai à guerra! Mas, há males que vêm para bem. Este lhe propicia a oportunidade de explicar porque o DECIDA ainda nada decidiu. Tem uma verba de parcos bilhões, algumas vinte mil datilógrafas, pouco mais de dezoito mil arquivistas, só cinco mil desenhistas, menos de quatro mil contínuos e dois entomólogos. Para que dê início às suas atividades, urge dobrar-lhe o quadro de servidores e a dotação orçamentária. Ademais, visto que o medo e a cupidez são os dois fatores essenciais na aliança para o progresso de um país, o Excelentíssimo poderá interessar o homem do campo no combate à praga, não só pagando-lhe um tanto por saco de formigas abatidas, como ameaçando-o, no caso de apatia, com a reforma agrária. Estas providências não podem falhar, prova-se de modo insofismável, evidente, indubitável etc. etc. Em suma: curva-se o Ministro ao peso das razões apresentadas e resolve pôr em prática as medidas. — Então, que lhe dizia? — pergunta o nariganta, vitorioso. Há razões para alarme? — Não, não há — admito. — Pois bem; ao ser informado de que seria criada mais uma vaga de entomólogo estatal, não perdi tempo. Desemoldurei o meu diploma, fui à repartição, inscrevi-me na lista de candidatos ao cargo e fiquei à espera de chamado, certo de que seria nomeado e promovido; hoje, a este; amanhã, a posto melhor; sonha que sonha. — É bom subir — comenta o careca. — Subir é bom, nem que seja subir que nem balão, devido ao gás. — Bem, eu não ia subir assim à toa — observo. — Porque, modéstia à parte, tenho algumas ideias geniais. E como descobrira um meio de acabar com as formigas — convertendo-as em seres gigantescos, do tamanho de um homem — ia subir devido ao mérito, é claro. — Claro, pois o senhor é o tal em matéria de ideias meritórias! — ironiza o narigudo. — Não ignora, creio, que as formigas são relativamente mais fortes do que os homens. — Não — respondo. — E daí? — Daí que em lugar de arrancar folhas, elas levariam as árvores nas costas — exibe o que sente à flor da pele .— Por Gutenberg, que estrago não seria. Concordo. — Adeus, carreira, hein? Mas correram os dias, as semanas, os meses… E nada de chamado! Apreensivo, voltei ao ministério e interrompi o labor de um funcionário. Este ergueu os olhos de seu problema de palavras cruzadas e fitou-os em mim, boquiaberto. Caramba, se eu quisesse um lugar de tesoureiro, vá lá, compreenderia! Mas, entomólogo! Porventura ignoro que a criação de formigas é hoje a mais próspera indústria do país, graças à paga ofertada pelo Departamento Econômico de Compra de Insetos Daninhos a Agricultura? Serei, acaso, um comunista para supor que o Estado reduziria a penúria a classe produtora de formigas? — Sim, já lhe dava adeus, quando o referido funcionário resolveu me informar que o governo compensaria a extinção do quadro de entomólogos agrícolas, criando uma nova cadeira da matéria da Universidade. Assim, como eu tinha o diploma, bastar-me-ia defender uma tese para me converter em catedrático. — De olhos arregalados, o perneta comenta: — Puxa, o destino trabalha a seu favor! — Trabalha — confirmo. — Tanto que, por sorte minha, eu podia tirar proveito para a tese de um fato muito curioso observado pelo guri de um vizinho. Certa vez, o menino viera me procurar, todo assombrado. Sim senhor, ele aprisionara um gafanhoto, pusera-o na palma da mão e lhe ordenara que pulasse. Pois até aí nada demais: o inseto saltara, obediente. Mas então, ele lhe arrancara as patas, tornara a colocá-lo na palma da mão e voltara a lhe dar a mesma ordem. Desta vez, não é que o gafanhoto ficara inteiramente imóvel por mais que ele lhe repetisse a ordem, a gritar! — As crianças são muito imaginosas — observa o nariganga no tom de quem duvida. — Para se fazer de interessante costumam deturpar os fatos. — Sei. Mas vamos supor que o guri não houvesse alterado nada. Se o inseto ensurdecera ao perder os órgãos locomotores, o fato demonstrava haver uma inequívoca relação entre os órgãos auditivos e as patas. Nesse caso, o senhor concordará, ali estava a ideia para uma tese formidável. Ele sacode a cabeça a discordar. — Tinha a ideia, faltava-me apenas repetir a experiência do garoto e comprovar experimentalmente o fato. Faltava-me apenas o gafanhoto. Chamei o filho do vizinho, para auxiliar-me, dirigindo-me com ele ao jardim. Depois de caçar por toda parte, divisei uma mancha verde-clara no verde escuro da folhagem. Apanhei o inseto e mostrei ao garoto. “Aqui está” — disse-lhe, “sabes acaso que espécie de gafanhoto é esta?” O garoto olhou-me surpreendido. “Não é um gafanhoto” — falou ele, “é um louva-a-deus”.

A OCUPAÇÃO DA MATRIZ
Les péripéties allaient se derouler dans l’enceinte du sanctuaire viole.— Lautréamont

Quando a caravana atinge as portas da matriz, aparece o vigário. Ao saber da pretensão dos seus paroquianos, o bom homem fica bastante preocupado. — Em verdade, em verdade — lhes diz —, eu teria o sumo dos prazeres em acolhê-los, pois um sacerdote deve se rejubilar com a presença de fiéis, estar sempre disposto a cooperar com eles, a auxiliá-los. Explica que recebeu uma pastoral diocesana, [e] o bispo requisitara todo o espaço disponível da igreja. Mas, ainda que não lhes possa dar guarida — dare nemo potest, quod non habet — deseja contribuir com a solução para o problema do rebanho. Faz uma pausa à Hitchcock. — Há uma espaçosa igreja presbiteriana nas proximidades… A ideia repugna o perneta. — Somos católicos — ele diz. — É impossível dar-lhes abrigo — retorna o cura com firmeza. Toda lotação do templo está esgotada. —Tenha pena de nós!— implora a moça grávida, caindo-lhe aos pés. — Pelo amor de Deus, senhor vigário. — Não se trata de Deus, minha filha — esclarece pacientemente o padre. — Cumpro ordens do bispo. Em vão, porém, dá-lhes este nobilitante exemplo de acatamento aos superiores eclesiásticos. Se a turba, de início, pediu-lhe asilo com a devida humildade, passa logo a exigi-lo, sobe ameaças, estimulada por alguns exaltados. E ao ver que um, dois, três, quatro garotos se abaixam, a procurara e apanhar pedras entre as ruínas, o sacerdote bate em retirada. Mal o clérigo se afasta, todos se precipitam no interior da igreja— num tropel que estremece os sinos nas alturas e os santos nos altares. Enquanto uns se atiram no rumo da sacristia e outros na direção das escadas do coro, a maioria vai indo a toda a brida para o fundo da nave. Veloz, um mulato chega ao altar-mor com uma vantagem de alguns sobre os demais parelheiros, deixa tombar o fardo que transporta aos pés e arranca o crucifixo da pedra de ara. — Este lugar é meu! — grita, a brandir o lenho. — Cheguei aqui primeiro! Entreparando, os que seguem se dispersam de pronto em novos rumos. Tardio de reflexos, no entanto, um rapazinho não consegue frear a tempo o impulso e se aproxima em demasia do mulato. Pondo-lhe a mão no peito, este ergue o crucifixo. — Não me fira, senhor! — o rapazinho cravou os olhos na clava improvisada. — Por favor, não me bata! Empurrado para trás, cai sobre as mãos e começa a recuar, olhos fitos na cruz, de quatro. Sem lhe dar atenção, uma negra robusta passa ao lado dele e vai unir-se no altar ao vencedor da carreira. O mulato sorri-lhe e curva-se para o fardo. Desentrouxados os utensílios de cozinha, as mulheres se ativam no preparo do almoço e num minuto crepita em toda parte o carvão dos fogareiros. Nesses turíbulos domésticos, a espalhar fagulhas e fumo mais espesso do que incenso, equilibraram-se logo as caçarolas — a banha a estrugir e a exalar um cheiro que se mescla ao das picantes emanações de alho, cebola e outros temperos. Inesperadamente, por entre esse buquê de odores alimentares, irrompe um som de órgão. E a voz de um barítono — funda, trêmula, grave — vem dominar a igreja. Talenu o Kapopolo-makondo Kimbanda’ é! Xilenu o Kapopolo-makondo Kimbanda’ é Por causa de imperfeições do instrumento, o organista tem de realizar prodígios de dedilhação, como se fosse um virtuose a se exibir em catedral. Sob os seus dedos, o mar de sons se encrespa em ondas, a chocar entre si, a se empinar, depois tombar, vencidas, para se levantar, ainda a empurrar as notas temperadas dissonantes, numa luta sem tréguas, até que essas retornam numa enorme vaga e desabam, raivosas, a espumar. Num vôo místico, outras vozes se elevam até sobrepujar a desafinação do instrumento. Soa-me então o cântico como uma súplica coletiva algo transcendente. Ki nu jibe o kapopolo-makondo Kimbanda’ é Logo, cessada a luta, paira no templo o beatífico silêncio das almas em êxtase — milagre da catarse musical. Ite, missa est — ide, o canto acabou — digo para mim mesmo. Sacudo a mão de longe, num adeus companheiro à jovem grávida e abandono a igreja. No caminho de volta, ressoa-me ainda nos ouvidos os sons daquele canto cheio de unção celestial, surpreendo-me a solfejar baixinho a melodia daquele idioma estranho como língua clerical. Trauteio-os para meu pai, ao chegar na barraca em que moramos. — Deve ser um ponto de macumba, em quimbundo — ele aclara. — Muito bonito, aliás. Os sentimentos de minha mãe não se equiparam ao de sua pacífica apreciação estética. Ouvindo-me, ela se conteve a muito custo, numa falsa bonança. — São uns ímpios! — troveja afinal. — Deviam ser crucificados! Os olhos a relampejar, serve-nos de mal modo o almoço, trocando o andante desta faina caseira pelo tempestuoso.                                                                                                                     5
                                                                                                  DA MÚSICA NO ÚTERO
                                                                                         Woman is like music. — G. Eliot Por falar em beleza, enquanto eu cantava, pensou que deveria me explicar como esse canto fetichista resulta de toda uma elaboração inconsciente de reminiscência da vida fetal. Porque, é bom que eu saiba, a música, como as demais artes, tem sua origem no útero. Lá é o lugar onde aprendemos a distinguir os sons pelas suas características, fato que passará a demonstrar. Antes, julga necessário esclarecer que a audição musical não se aprimora com o estudo, ao contrário do que opinam os sagazes professores de solfejo. Ela se aperfeiçoa no decorrer da existência uterina. Na falta de outro argumento, defenderia esta tese apoiado na seguinte razão: por meio do estudo, obtém-se apenas um conhecimento nominal da música, pelo menos quanto aos seus rudimentos. No útero, os sons das ventosidades, que lhe percorrem do piloro ao reto os oito metros de intestino, vão se ressoar nas membranas basilares do feto. Este armazena no inconsciente essas rudimentares impressões sonoras, todo curvado para diante, com o queixo apoiado no peito e de olhos fechados — na atitude de um perfeito melômano. Ora, nem mesmo um ouvinte de Bach poderia manter por muito tempo essa posição sem se fatigar. Cansado, o feto procura desentorpecer os músculos: dá pontapés, se remexe, se estira. Por seu lado, os músculos da matriz se contraem e oprimem a criaturinha, tanto mais fortemente quanto mais pronunciado seja o esforço desta para sair da atitude de reflexão. Toda esta agitação, como devo compreender, repercute nas entranhas da fêmea e redunda num maior rendimento musical dessa fonte de sons. Assim, desde nossa nebulosa existência uterina, condicionamos à percepção de sonos duas impressões de ordem oposta: uma de pressão forçada, relacionada com os sons débeis e os ritmos tardos; outra de expansão voluntária, relacionada com os sons fortes e os ritmos vivos. Estas formas contrárias de percepção sonora, contíguas às sensações de bem-estar e mal-estar que o feto associa as suas opostas posições corpóreas, irão servir mais tarde para a expressão antagônica do belo musical. Todo homem tem a nostalgia do útero no momento de angústia, e não posso negar que tudo que ele expôs até agora se adapta aos fatos observados por mim. Ao entrar na igreja, o capenga e seus amigos manifestaram regozijo de fetos que se encontram na matriz.                                                                                                                             6
                                                                                        A EXPULSÃO DOS INVASORES DA IGREJA Nos dias posteriores à demolição da cidade pelo louva-a-deus, um bando de sem-teto resolveu ir se asilar na igreja matriz de nosso bairro. Homens, mulheres e crianças se encaminhavam para lá, a pé, transportando os salvados dos escombros de seus lares — fardo de roupa, caixotes com panelas, mantimentos, brinquedos etc. Antes que o exemplo frutifique, o clero pede auxílio às Forças Armadas. Exército, Aeronáutica e Marinha atendem ao apelo, antecipando a chamada de conscritos e abrindo o voluntariado. Os recrutas recebem um preparo físico excepcional, além de aulas teóricas acerca da nobre missão que irão cumprir. Aplicar-se-lhes-á desde a vacina antirrábica até a antietílica. Cada um receberá sabonete, toalha, pente, pasta e escova de dente com um folheto em que se explicam o mistério e a necessidade do uso de caráter exclusivamente pessoal etc. Seja dito de passagem que o acidente tem o mérito de solucionar um velho conflito entre as secretarias de Guerra e da Fazenda. O Ministro da Guerra sempre propugnou uma série de despesas que o seu colega da Fazenda nunca calou serem absolutamente ociosas e dispensáveis. É claro que os deveres dum bom Ministro da Guerra, como um especialista na sua função, se opõem aos deveres profissionais dum bom Ministro das Finanças. O ideal deste é economizar, para evitar as emissões inflacionárias; o ideal daquele é de dar às armas todo brilho necessário, sem medir as despesas com o tacanho espírito de poupança. Nesta emergência, porém, o secretário das finanças compreendeu que deve gastar até o último centavo do erário, para salvar o resto, abrir um crédito sem limite para a compra de porta-aviões, submarinos atômicos etc. Graças a esse patriótico gesto, patrulhas das três armas iniciaram uma operação de limpeza. Cem regimentos de carros de combate avançam do subúrbio para o centro; bombardeiros e caças sobrevoam o litoral para garantir o desembarque da tropa da marinha. Canhões são camuflados nas ruínas. Homens fardados, equipados de bazucas, lança-chamas e metralhadoras, vasculham os escombros; todos os buracos se transformam em ninho de morteiros; enquanto o grosso da tropa se coloca em posição de combate. Um boletim do Alto Comando esclarece: “O moral da soldadesca é excelente” — disposto cada bravo a verter o sangue em defesa dos santos lugares. Presos os invasores da matriz, ficou provado tratar-se de perigosos agitadores. Testemunhas insuspeitas declaram — sob juramento — ter ouvido dizer que eles pensavam em reivindicar melhoria de salário devido à constante majoração dos preços dos gêneros de primeira necessidade. De acordo com as nossas leis, a justiça deve ser rápida e barata. Sem gasto de um centavo e em pouco menos de quinze minutos, conclui-se que os invasores da igreja são perigosos extremistas. Os próprios réus se acusam ao recorrer à velha e desmobilizada tática de negar que sejam extremistas. Fica provado, de sobejo, que vão além dos mais temíveis marginais. Os invasores entregam-se sem que as forças armadas dessem um único tiro. A jovem grávida, por exemplo, é mãe solteira: seduziu um rapazola de vinte e oito primaveras, filho de patrão. O aleijado perdeu a perna num desastre de trem, sem dúvida com o fito de receber a polpuda indenização. Entretanto, após converter a pena de morte lenta a que foram condenados os menores de dezoito anos na de fuzilamento, o governo estende sua magnanimidade à jovem grávida e ao perneta: são condenados à prisão perpétua com trabalhos forçados.