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Relembrando a comédia absurdamente racista 'Uma Escola Muito Louca'

O longa de 1986 mostra um estudante que, sem dinheiro para ingressar em Harvard, toma uma overdose de "pílulas de bronzeamento" para parecer negro e conseguir uma bolsa de estudos.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Em 2016, o Roku, um provedor de streaming online, fornece quatro opções de aluguel do filme Uma Escola Muito Louca (Soul Man no original), uma até pelo serviço Urban Movie Channel. Para surpresa de qualquer um que viu o filme de 1986 — com o ator de E.T. C. Thomas Howell e uma horcrux cinematográfica — Soul Man ainda não foi banido por toda a eternidade.

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Para quem não sabe, o filme, que completou 30 anos este ano, conta a história de Mark Watson (Howell), um estudante da UCLA que, sem dinheiro para pagar a Escola de Direito de Harvard, toma uma overdose de "pílulas de bronzeamento" para parecer negro e assim ser elegível para uma bolsa de estudos para estudantes negros. É.

Tem milhares de filmes nos quais gente branca se passa por negra para efeito cômico; acabei de reassistir, por exemplo, o jornalista nerd interpretado por Chris Elliott no mockmentary de rap CB4, escrito e dirigido por roteiristas e comediantes afro-americanos. Vale apontar que Soul Man, pelo contrário, é obra de um diretor e uma roteirista brancos: Steve Miner, mais conhecido por seus filmes de terror, e Carol Black, criadora de Ellen e da querida série da infância de muita gente Anos Incríveis. Só há dois personagens negros centrais no filme. Outro elemento incomum da obra: filmes do final do século 20 com um branco wannabe também não costumam envolver blackface, que dirá um protagonista totalmente pintado.

Você pode pensar, pela descrição, que o filme de Miner era algum experimento exploitation bizarro de baixo orçamento. Mas não, o longa é obra da elite de Hollywood e resultado de um orçamento de milhões de dólares. O filme tem muitas caras conhecidas: uma jovem Julia Louis-Dreyfus como colega de classe de Mark, um não tão jovem James Earl Jones como professor, e Leslie Nielsen, interpretando o pai preconceituoso de uma universitária branca obcecada pelos direitos civis (Melora Hardin). "Pude sentir 400 anos de opressão e raiva em cada movimento pélvico", ela suspira, depois de um encontro com Mark.

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Essa fala tosca ecoa a explicação de Mark de por que não se importa em se transformar num homem negro no começo do filme. "Estamos nos anos 80, cara", ele diz para Gordon, seu amigo e cúmplice à la Eddie Haskell (interpretado por Arye Gross). "Essa é a década de Cosby. Os EUA amam gente negra." Essa explicação distópica coloca Soul Man em movimento; tocando pela primeira vez a música original do filme, "Soul Man", com Sam Moore e, pasme, Lou Reed.

Depois disso, Mark é jogado no ringue da experiência negra norte-americana, como imaginado pela mulher que escreveu Anos Incríveis. As provações que ele enfrenta incluem dois caras que sempre fazem piadas de "negão" no refeitório, e depois, notando a presença de Mark, acrescentam "Sem ofensa, OK, cara?" Depois de ser parado pela polícia de trânsito de Cambridge, Mark acaba numa cela com um monte de irlandeses cartunescos abusivos. Cenas como essa deveria induzir um riso do tipo "Cara, não acredito que eles falaram isso". Infelizmente para o público, o filme fala isso e mais.

Eventualmente, Mark surge forçosamente no papel de um solitário deprimido, porém diligente, no campus. Ele se une a uma estudante negra de verdade, Sara Walker (Rae Dawn Chong), para superar sua posição marginalizada na escola — como? Estudando muito para as provas finais. Depois de uma visita de cinco segundos à casa modesta dos avós dela, eles compartilham um beijo dramaticamente injustificado na neve, ao som de um solo sensual de saxofone.

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O período confuso de expiação antes de Mark admitir publicamente o golpe provavelmente é a parte mais angustiante do filme. Depois que ele confessa, o sidekick Gordon pergunta se ele vai voltar à sua cor branca: "Você realmente odeia os Beach Boys agora?" "Difícil dizer", Mark responde. "Acho que ainda gosto das coisas mais funk deles."

Durante momentos péssimos como esse, Soul Man revela sua similaridade com outro filme bizarro: Eu os Declaro Marido e… Larry de 2007, no qual Adam Sandler e Kevin James fingem ser um casal gay para garantir um seguro de vida. Do comentário sobre os Beach Boys em diante, Soul Man transforma o patético pivô de Eu os Declaro de "É tão errado que é engraçado" numa ineficaz e triste mensagem de "se coloque no lugar de outra demografia por um semestre e você aprende a nunca mais tirar sarro deles".

Claro, as conclusões misericordiosas de filmes profundamente inaceitáveis parecem bem pouco realistas. Mas Soul Man consegue superar até as piores expectativas. Depois da grande revelação de Mark no campus, Gordon faz o papel de um pseudo-advogado de defesa, virando o roteiro do argumento "produto de seu ambiente". Mark, ele argumenta, foi criado para ser egoísta, produto de uma família branca de classe média nos subúrbios. "Você pode culpá-lo pela cor de sua pele?"

Por alguma razão, o personagem de James Earl Jones concorda com a avaliação, e até se diverte com o golpe de Mark. "Você deve ter aprendido muito mais do que esperava com essa experiência", diz ele, sorrindo. "Eu realmente não sabia como era, senhor", diz Mark, acrescentando "Se eu não gostasse, eu sempre podia sair".

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Essa fala é o golpe de misericórdia nauseante do filme, tentando justificar o fato de que Mark se safa sem sofrer quase nenhuma consequência. Ele diz ao personagem de Jones que quer se formar para "fazer um trabalho que seja útil para alguém".

O final feliz de Mark antecipava uma nova safra do cinema racista: o filme do salvador branco do século 21, uma constante do futuro nos cinemas e premiações do Oscar.

Apesar de o filme ter recebido protestos de grupos ativistas e péssimas críticas na época, Soul Man foi um sucesso comercial e até recebeu uma recomendação pública do presidente e da primeira-dama dos EUA. Doze anos depois, Hollywood ia parir um filme ainda mais repreensível sem nem piscar: A Tribo dos Krippendorf, longa em que um antropólogo (Richard Dreyfuss) forja evidências de uma tribo obscura da Nova Guiné filmando sua família pintada e com penas na cabeça.

Soul Man é chocante, mas nos anos seguintes, a vida real imitaria a arte, com exemplos como o irmão de Mindy Kalling fingindo ser negro para entrar na escola de medicina e os incontáveis casos de blackface nas universidades norte-americanas. Agora parece inevitável que algo igualmente perverso ressurja, da poça primordial do nosso país profundamente dividido.

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Tradução: Marina Schnoor

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