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Entre as drogas e a escravidão: a vida das trabalhadoras sexuais do maior bordel do Bangladesh

Entre uma concorrida estação de comboios e um porto de mercadorias cheio de milhares de homens, Dautladia é a casa de quase duas mil trabalhadoras sexuais.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma VICE News.

Anupa não sabe que idade tem. É uma trabalhadora sexual que trabalha no maior e mais antigo bordel do Bangladesh. Foi sequestrada por um traficante de pessoas e vendida por 400 dólares. Actualmente, é forçada a ter relações sexuais com vários clientes por dia para poder pagar a sua "dívida". Para que se desenvolvesse mais rápido e parecesse mais velha deram-lhe os mesmos esteróides que se dão às vacas, para que estas engordem. "Antes de começar a tomar os comprimidos, qualquer beleza que pudesse algum dia ter tido, pura e simplesmente desapareceu. A minha pele ficou estragada e o meu corpo já não é como antes. Sofro muito com isso. Já não sou como era", declara à VICE News.

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Entre uma concorrida estação de comboios e um porto de mercadorias cheio de milhares de homens, Dautladia é a casa de quase duas mil trabalhadoras sexuais, a maioria delas crianças e muitas submetidas à escravatura sexual. Construído pelos britânicos durante o domínio colonial, actualmente é propriedade da família de um político da região, que beneficia com o crescimento económico da zona.

Todas as fotografias por Phill Caller/VICE News.

Isso é o que mantém o negócio em alta. Os dalals visitam diariamente as cidades mais próximas, em busca de raparigas entre os 13 e os 14 anos. "Rondamos as ruas à noite. Falamos com as raparigas, dize mos-lhes que existem lugares onde estariam melhor , que podemos cuidar delas, que existe um lugar onde podem trabalhar em segurança. É assim que as convencemos a vir para o bordel. Assim que chegam, são aprisionadas pelas madames", conta-nos um dalal de Daulatdia, que não quis mostrar a cara nem dar o nome.

Muitas menores, como Anupa, são forçadas pelos seus próprios proxenetas a tomar esteróides para ganhar peso e parecerem mais desenvolvidas. Kushi, umas das madames mais conhecidas em Daulatdia, queixa-se de que as miúdas têm poucos clientes, por isso fazem-nas tomar esteróides, para que pareçam mais "desenvolvidas". Kushi dá o exemplo de uma das raparigas, Rosina, que diz ter 14 anos, mas que não ganhou peso suficiente.

Os médicos da zona afirmam que os esteróides são viciantes e que 90 por cento das raparigas que estão no bordel já os tomaram. Este fármaco pode provocar problemas nos rins e nos ossos e, em casos extremos, pode ser mortal. Ainda assim, nada disso parece afectar a oferta e a procura dos esteróides, que custam menos de um dólar. "Vende-se. As miúdas compra m caixa atrás de caixa. Há outras lojas que também os vendem em grandes quantidades", diz um auxiliar de uma farmácia.

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O Bangladesh é um dos poucos países islâmicos que não criminaliza a prostituição, ainda que alguns bordéis tenham fechado. No ano passado, as autoridades locais fecharam o bordel Tangail, no norte do país. Mas isso não diminuiu o número de clientes que visitam o Daulatdia. Segundo um estudo das Nações Unidas, há centenas de milhares de bangladeshi que frequentam estes estabelecimentos, diariamente. A indústria não está regulada e atrai homens como Karim, de 27 anos, cliente há mais de sete. Karim diz que prefere ter relações sexuais com miúdas mais novas. Incentiva-as a tomar drogas com ele, (como a Yaba, uma metanfetamina ), antes de iniciar o coito. "Faz com que aguente mais. Em vez de cinco minutos, posso aguentar 10", garante.

Segundo dados da Action Aid, há cerca de 200 mil mulheres a trabalhar na indústria do sexo no Bangladesh, na sua maioria adolescentes. Apesar de ser ilegal que raparigas menores de 18 anos trabalhem na prostituição, muitas delas acabam por trabalhar neste ofício contra a sua vontade, ou apenas para sobreviverem . E os homens vão ao bordel como escapatória à s normas estabelecidas, nas quais o sexo antes do casamento é um tabu e o jogo ilegal.

A cada dia que passa, estas raparigas perdem a esperança de poderem abandonar esta vida. "Eu sonho, irmã, com poder ir embora daqui. Os homens vêm, dão-me dinheiro, fazem o que têm a fazer e vão- se embora. Não tenho ninguém que me queira aqui", diz uma trabalhadora sexual que não quis dar o seu nome.

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Muitas das raparigas em Dautladia pertencem já à segunda ou terceira geração de trabalhadoras sexuais, em alguns dos casos descendentes de mulheres que trabalharam no bordel durante o governo britânico. Mas, apesar das perspectivas de um futuro desolador, algumas tentam assegurar que, pelo menos os seus filhos não lhes sigam os passos. Não é permitida a entrada de crianças no bordel, por isso durante décadas as mães de Dalatdia enviaram os seus filhos, com dois anos, para os seus familiares. Aquelas que estabelecem relações duradouras, por vezes, acabam por casar- se oficialmente, mas o mais comum é que tenham um acordo matrimonial verbal. Nestes casos, as mães deixam os filhos ao cuidado dos pais, dos seus parentes, ou com uma família de acolhimento, num acordo informal e a troco de dinheiro.

As ONG lutam por poderem proporcionar a estas crianças uma educação, com a esperança de que possam ter uma vida diferente. Do bordel avista-se uma aldeia, que conta com um dos seis colégios que podem oferecer uma segunda oportunidade a estas crianças, geridos pela organização BRAC. É uma das 38 mil escolas primárias criadas para as crianças do Bangladesh em risco de exclusãoe que ficaram fora do sistema educativo. A educação primária é gratuita nas escolas públicas, mas a mais próxima de Daulatdia e das suas aldeias vizinhas fica a meia hora de caminho. BRAC, conhecida como o Comité para o Progresso Rural de Bangladesh (Bangladesh Rural Advanced Committee, em inglês), não é a única ONG com escolas perto do bordel, mas é a única que proporciona uma educação gratuita.

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Mohammed Shahidullah, o supervisor das escolas BRAC daquela zona, diz que os filhos das trabalhadoras sexuais estudam e brincam com outras crianças sem nenhum problema. Aos professores é-lhes dito para serem muito pacientes e carinhosos com todas as crianças, com o objectivo de abordarem as necesidades psicológicas e sociais dos filhos das trabalhadoras sexuais. "Como para esta rapariga", diz, referindo-se a Sheuli, de 11 anos, uma aluna que se destaca e que conseguiu chegar à final de Deepshikha, um concurso nacional de talento para crianças. "Sheuli é um pouco mais agressiva e atrevida que os outros".

Sheuli, uma rapariga alta e segura de si mesma, é a filha mais velha de uma prestigiada madamee de um político local. "O seu pai não a deixa visitar o bordel e eu própria não a deixaria cá vir", diz a sua mãe, Taslima, de 34 anos. "Levou-a daqui quando era pequena. A primeira mulher do meu marido gosta muito da minha filha, tomou sempre conta dela".

Sheuli e outras filhas de trabalhadoras sexuais estão numa encruzilhada, diz Salma Akter, a sua professora. "Quando chegam aos 14 anos os filhos vão-se embora, para encontrarem trabalho e seguirem o seu próprio caminho. Muitas das raparigas escolhem a profissão das mães, mas nem todas. São mais as raparigas que estudam e seguem em frente", explica Akter, que deu aulas naquela escola durante mais de nove anos.

Taslima espera que a sua filha opte pelo caminho da educação, de uma vida normal, um caminho que ela nunca teve possibilidade de escolher. "A minha mãe veio para aqui depois de eu nascer, por culpa do meu pai", conta, sem dar mais explicações. Diz que veio para Daulatdia aos 18 anos, para levar a sua mãe para casa, mas acabou por ficar lá. "Naquele momento era pobre e precisava de dinheiro". Agora considera-se agradecida, "ninguém da minha família, excepto o meu pai, sabe que trabalho aqui. Pensam que o meu marido se casou duas vezes e que eu sou a esposa jovem que vive fora, noutra casa".

Com um ordenado de 460 euros mensais pelo aluguer dos quartos -Taslima nega-se a fazer negócio com as raparigas - tem a possibilidade de comprar tecnologia de luxo, pagar as aulas de música da sua filha, e poupar para o futuro da sua família, que vive longe de Daulatdia. "Quero que Sheuli seja uma artista", diz. "Esperamos que o nosso filho seja um rapaz, mas se Deus me der outra menina vou criá-la da mesma forma". E acrescenta: " Ela é bastante inteligente. Gostava que fosse médica".

Não é certo que Taslima e as suas filhas deixem Daulatdia, mas há esperança na educação, para que estas crianças possam tomar um rumo diferente. Fora da escola, uma das mães adoptivas comenta: "O que é que interessa se a sua mãe tem um trabalho sujo? Um filho é um filho. Não somos todos iguais, mas os nossos filhos podem sê-lo".