Primavera Sound - Dia 2 - Do sexo tântrico ao orgasmo dançante

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Música

Primavera Sound - Dia 2 - Do sexo tântrico ao orgasmo dançante

Acabei molhado (e não foi por causa da chuva).

Depois do dia chuva, prometia cair uma carga de água durante a noite de ontem, o que poderia, se não estragar, pelo menos condicionar a festa. Os muitos impermeáveis oferecidos pela organização do Primavera Sound, e outros trazidos pelo público, relembravam a todos a previsão (mas bastaria olhar para o céu negro). Graças aos deuses dos festivais tal não aconteceu e, apesar de um aguaceiro ou outro, acabou por chover menos do que no dia anterior. À chegada ao Parque da Cidade, de passagem para o palco All Tomorrow's Parties, ainda deu para ouvir os Midlake agradecerem os raios de sol que despontavam, o único registo que guardo do concerto. A essa hora, o que interessava era chegar a tempo dos Television.

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Na canção "When She Sang About Angels", Robert Forster, uma das cabeças dos australianos Go-Betweens, lastima-se por Patti Smith cantar sobre Kurt Cobain e não sobre Tom Verlaine. Percebe-se porquê. Quem ouve a voz de Verlaine como que ouve a maneira de cantar de Forster. Os Go-Betweens são uma das inúmeras bandas influenciadas pelos Television: muita da música que se chamou "alternativa" nos anos 80 e 90 (antes da etiqueta "indie" se sobrepor) descende da obra do grupo nova-iorquino. Lançado no meio do turbilhão punk, Marquee Moon, o primeiro álbum da banda, foi uma pedrada no charco: em vez da fúria e da contestação próprias do género, havia um rendilhado de guitarras que nunca explodia verdadeiramente (e em que não havia distinção entre guitarra solo e guitarra rítmica), uns toques de jazz (na bateria, principalmente), uma contenção que enlevava mais do que o ruído desbragado. Por isso, não espanta que mais de 30 anos depois do lançamento, Marquee Moon soe tão fora de tempo como na altura. Fora de tempo mas não datado. Ao vivo (os Television vieram tocar Marquee Moon na íntegra) e com Jimmy Rip a substituir o guitarrista original Richard Lloyd, o álbum não perde qualquer das suas qualidades e ganha no prazer, na cumplicidade e no entrosamento de uma banda que se conhece muito bem. Auspicioso fim de tarde. Os bons auspícios confirmar-se-iam naquele que seria o concerto do segundo dia (e provavelmente de todo o festival). Na esteira do revivalismo shoegaze, que já trouxera ao Porto os My Bloody Valentine (melhor banda do mundo), os recém-reunidos Slowdive apresentaram o seu monumental wall of sound, feito de duas (às vezes três) guitarras a reverberar cada uma para seu lado, um baixo pulsante e uma bateria pujante. Pese embora uns problemitas de som (que prejudicaram sobretudo a voz angelical de Rachel Goswell), a parede ergueu-se e envolveu dentro dela aqueles que quiseram deixar-se levar pela beleza inefável que sai da guitarra e da voz de Neil Halstead e dos restantes membros da banda. Reza a lenda que o shoegaze ganhou o nome pela postura dos seus executantes, que tocavam a olhar para os pés (na verdade, para os 120 pedais que tinham por ali). Eu defendo outra teoria: quem olha para os pés (ou está, pelo menos, com a cabeça para baixo) é o espectador, absorto no mundo criado por aquelas cinco pessoas em palco. Os Slowdive não são os My Bloody Valentine (melhor banda do mundo), são mais adocicados e menos agrestes, ameaçam por vezes cair no bonitinho, mas aguentam-se e oferecem delícias que apetece provar para sempre.

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Naturalmente, depois deste pico, o segundo dia teria de passar por um vale. À escolha, a banda zombie preferida de toda a gente e uns tipos sisudos que fazem música à séria, vulgo, pós-rock tântrico. Os Pixies, que morreram em 1993 e continuam a passear o cadáver cada vez mais putrefacto pelos palcos do mundo. O espectáculo até pode ter a sua graça da primeira ou segunda vez mas, por esta altura, só causa pena e um abanar de cabeça. Isto costumava ser uma banda divertida, explosiva, enérgica; agora é uma maquina de hits feita para ganhar uns trocos, gasta e a precisar de manutenção (ou como os Pixies são uma espécie de Rolling Stones mais anafados). Bem, death to the Pixies e adiante. Os Godspeed You! Black Emperor! (GY!BE para os amigos) são uma banda eminentemente masculina, não só porque todos os membros são homens, mas porque fazem rock para homens de barba rija: tecnicista, pesado, "importante", sem devaneios da pop ou a ligeireza de músicas mais simples — isto não é pós-rock, é a enésima encarnação do chatíssimo rock progressivo, a prova de que o rockismo está bem vivo (mas não se recomenda). Como homens que sabem que durante o coito só têm direito a um orgasmo, os GY!BE fazem os impossíveis para adiá-lo, perdendo-se em preliminares intricados e intermináveis, deixando o ouvinte à míngua.

Passemos (e pensemos) em coisas mais divertidas, como a música do dinamarquês Trentemoller — que apareceu, com a sua banda, envolto numa névoa perene, qual D. Sebastião musical. Não sendo uma maravilha, foi uma benção para ouvidos enfastiados, uma jovial mistura entre "música de dança" e guitarras, que entretém e faz abanar as ancas. A esta hora, já nem me lembrava que se podia ter prazer a ouvir música, pelo que agradeci o lembrete. Contudo, o melhor cruzamento entre electrónica e guitarra veio depois. Os Darkside de Nicolas Jaar e Dave Harrington têm uns pozinhos de Suicide, embora sejam menos niilistas, de shoegaze (como já a banda de Trentemoller, com as suas três guitarras, tinha), de rock vintage até (dos anos 50), se bem que nunca percam a vontade de fazer dançar — pelo menos, ao vivo; em disco, preferem criar densos ambientes sonoros. Esta música não será propriamente original, mas ganha em frescura a quase tudo o que veio antes. Abençoada seja. Palavra (e louvor) final para o DJ Todd Terje (diz que se lê terié), que passou muitos dos temas do excelente álbum de estreia It's Album Time, que conjuga músicas da América do Sul e a leveza da melhor música dançante. Da prestação (que soube a pouco, como saberia sempre a pouco mesmo se tivesse durado mais), os corpos saíram molhados, não da chuva anunciada mas do suor conquistado batida a batida. Isto, sim, é sexo a sério.

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