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Música

Mamas não, bombas sim

O guitarrista dos Eagle Twin é bibliotecário.

Sempre achei que as prisões eram um espaço interessante. O Gentry Densley conhece-as como ninguém, porque — além de ser o guitarrista dos Eagle Twin — trabalha há anos como bibliotecário na prisão de Salt Lake City. Horas antes do concerto que a banda deu em Madrid, levei o Gentry até um sótão clandestino onde se joga póquer e bilhar a dinheiro, para que me contasse o que sente ao emprestar livros a assassinos e traficantes. Pelo que percebi, é como ser o Tim Robbins no Shawshank Redemption. VICE: Deve haver utilizadores da tua biblioteca que nunca tinham lido um livro na vida.
Gentry: Claro. Muitos nem sequer sabem o que é um romance até chegarem à prisão. Na cadeia, os livros são vistos como um luxo, como uma via de escape. Quanto maior for o livro, maior é a abstracção. Isso permite-lhes esquecerem-se daquilo que os rodeia, ajuda-os a deixar de pensar nos crimes que cometeram. De certa forma, também é uma forma de reabilitação. Quais são os best-sellers na tua prisão?
O Canto Do Cisne de Robert McCammon é o mais requisitado. Talvez porque fala do apocalipse, do bem e do mal. É um livro em que acontecem coisas estranhas e é fácil de ler. Acho que a prisão é o único sítio do mundo onde o livro tem êxito. As 48 Leis do Poder de Robert Greene também é muito apreciado. Sobretudo pelos traficantes de droga. Suponho que seja porque os ajuda a melhorar as suas técnicas de manipulação. Também gostam do Game of Thrones e do Shawshank Redemption do Stephen King. Logo vi! E tu és a personagem que o Tim Robbins interpreta no filme.
O funcionamento da biblioteca é semelhante. O sistema de empréstimos com cartão de leitor é igual, mas o resto não se assemelha tanto. Gosto disto porque é um emprego muito flexível. Já estou lá há 11 anos. Nunca tiveste medo?
Às vezes, mas os presos, normalmente, mantêm-se no seu lugar e, além disso, adoram a biblioteca. É claro que muitas vezes acontecem desgraças mas, normalmente, só me apercebo quando já estou em casa e as oiço pela rádio. É um lugar desolador. Consegues saber se determinado preso é culpado ou inocente por aquilo que lê?
Se apenas lêem coisas sobre a máfia ou se encontro anotações nas margens dos livros que dizem “eu consigo um preço melhor” ou “isto não é nada comparado com o que eu faço”, se calhar fico um bocado na dúvida. Que livro nunca emprestarias a alguém que está preso?
Suponho que um daqueles que expliquem como construir bombas. Ou o Fight Club, que explica como fazer napalm a partir de sumo de laranja. Mas impedes que leiam certos livros? Por exemplo, O Conde de Montecristo.
[Risos] Esse livro nem é dos mais perigosos. E não penses que aqueles livros que te ensinam a fazer bombas não sofrem uma censura por aí além. Os guardas não lêem os livros e por isso fazem a censura pelas capas. Se eles vêem um mamilo, censuram-no. O que é que é mais difícil: criar hábitos de leitura num preso ou num jovem?
A um jovem. Hoje, não saberia como fazê-lo, a sério. Para conseguires que as novas gerações leiam, tens de educar os miúdos desde muito pequenos. E mesmo assim, hoje em dia, não parece nada fácil. Têm muitas distracções e muita tecnologia. Estou a ver que com os livros és um tipo old school.
A minha namorada ofereceu-me um Kindle, que para levar para as tours é bom, mas se tiver papel não quero saber de livros digitais. Guardo os meus livros todos e se na biblioteca forem deitar algum fora eu levo-o para casa. Mas para que é que os guardas? Não são como os CDs que escutas várias vezes.
Têm de passar anos até que possa voltar a ler um mesmo romance. Com a poesia é diferente. Aí volto a ler com a mesma frequência dos CDs. Sempre foste um rato de biblioteca?
Estudei música na universidade e trabalhei em lojas de música. Foi daí que transitei para os livros. Sou um rato de biblioteca agora, mas antes não era muito. És influenciado pelo que lês quando estás a compor?
Muito. Sou influenciado pela poesia, as histórias, as ideias, os mitos universais… Sou influenciado pelo Joseph Campbell que escreveu o The Hero with a Thousand Faces. No novo disco há uma tradução de Federico García Lorca feita com o meu espanhol rasco e o Google Translator. O Lorca é o meu autor espanhol favorito. Descobri-o através do George Crumb. Dentro da língua espanhola também adoro o Borges e também gosto muito do Italo Calvino. Conheces outros músicos igualmente apaixonados por literatura?
Alguns. O Mark Deutron, baixista dos The Melvins nos anos 90, conhece tudo o que Cormac McCarthy escreveu. Daqui a bocado tenho uma entrevista com a Sasha Grey, que agora é escritora. Há algum livro que lhe possas recomendar?
À Sasha Grey? Não sei. Santo Agostinho? As confissões? Recomendo-lhe os poemas completos de Rumi, um poeta persa. Todos os poemas dele falam sobre amor. Recomendo-lhe também o Papillón, que é um livro muito lido na prisão. Outro que ela tem mesmo que ler é Raymond Carver. Também pode ler Corman McCarthy, principalmente o Meridiano de Sangue. Fotografia por Sergio Albert Avilés