A transexual que dá treinos de futebol na periferia do Recife

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A transexual que dá treinos de futebol na periferia do Recife

De pulso firme, ela comanda cerca de 45 adolescentes, entre os 13 e os 18 anos.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Brasil.

Gretchen, a mais conhecida transexual do Bairro do Pacheco, na periferia de Jaboatão do Guararapes, no Recife [Brasil], está sentada à porta de casa enquanto contempla, distraída, as suas unhas vermelhas e gastas. O cabelo preso por muitos ganchos e o vestido discreto, bem abaixo do joelho e sem decote, escondem o jogo. Até parece uma senhora recatada.

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Só parece. Não demora muito para se revelar como uma estrela local. Expansiva e com gestos fortes, Gretchen é assunto de conversa por onde quer que passe. É, de longe, a pessoa mais conhecida das redondezas. O sucesso deve-se ao trabalho que realiza nas linhas laterais dos campos de futebol. É ela quem treina, de terça a sexta-feira, os aspirantes a jogadores na escolinha de futebol "Deus É Fiel", a única da comunidade (e que nada tem a ver com a Igreja) onde mora há 30 anos.

De pulso firme, com os longos cabelos dobrados sob o boné, ela comanda cerca de 45 adolescentes entre 13 e 18 anos. Não cobra nada pelo serviço. Faz, porque acredita que o desporto pode ajudar a garotada a dar-se bem na vida. "Antes dessa idade a carne é muito nova, os nervos são muito moles ainda. Tenho medo que partam as pernas", explica a treinadora, tentando amansar a voz grossa. "O menino de 13 anos já tem uma carne mais durinha".

Antes do treino. Fotografia: Adolfo Sonteria

Não se pode dizer palavrões, gozar, ter más notas, usar droga, beber ou fumar. Se Gretchen apanhar alguém, tira-o da equipa. Exigente, a treinadora é muito respeitada pelos alunos e pelos seus pais. "Eu conquisto esses meninos. Às vezes prometo que a quem fizer o primeiro golo eu dou dez reais. Mas. se vejo que há ganância, não dou nada", conta. Quando há jogo, Gretchen dá sempre uma volta pela comunidade para conseguir, por mínimo que seja, um pouco de conforto para os pequenos atletas. "Corro atrás, peço duas guaranás prós meninos, mas só dou quando ganham, quando perdem vai tudo embora. Já deixo pró próximo".

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A trajectória futebolística de Gretchen, baptizada há 51 anos como Nerivaldo Eretiano da Silva, começou cedo. Aos 14, era guarda-redes da equipa juvenil do Santa Cruz, clube com o maior número de adeptos de Pernambuco. Nessa fase começou a escolher as equipas do próprio clube e deu início à sua carreira como técnico(a).

Durante o treino. Fotografia: Adolfo Sonteria

Foi nessa época também que conheceu os prazeres da carne. A ligação dela com o futebol é tão íntima que até a sua iniciação sexual tem a ver com o desporto. "Perdi a virgindade numa aposta para um jogo Santa Cruz e Sport. Tive que sair com o menino. Ele era Sport e eu Santa Cruz", conta, com tom malicioso.

Se o Santinha ganhasse o clássico, a treinadora facturaria uma quantia em dinheiro, ou uma camisola oficial. Caso perdesse – o que ocorreu –, ela teria que se relacionar com o outro apostador. Segundo Gretchen, foi uma das únicas derrotas do tricolor do Arruda que não a incomodou. "No dia seguinte ao jogo ele já andava à minha procura e a bater-me à porta para ter relações. Perdi-me por causa de jogo. O menino era bonitão. Ia perder a oportunidade?", diz. "Foi óptimo, mas depois casou e foi-se embora".

Gretchen não nega que tenha pequenos flirts no mundo do futebol, mas é categórica ao falar dos seus atletas. Para ela, é uma questão ética não misturar o seu trabalho com sexo. "Tem uns aqui no bairro também, mas sem ser da equipa, porque senão fico sem moral".

Fotografia: Adolfo Sonteria

Contrariando as estatísticas da região, a transexual não ganhou fama deitada na cama — ou de pé no meio do mato. "Nunca fiz programa, não gosto. Tá doido, elas fazem ali na ponte (perto da entrada do bairro) e é 5, 10 reais. É chupada completa. Eu não vou arriscar a minha vida por isso. Ainda no mês passado uma menina foi espancada ali, quase a mataram com pancada na cabeça. Três homens a baterem-lhe".

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À beira do campo, Gretchen separa os de verde dos de amarelo. Do lado esquerdo estão os meninos entre 13 e 14 anos. Do lado direito uma equipa visivelmente maior, mas todos abaixo dos 17 anos. Entre eles está John Lennon de Lima Cabral, de 15 anos. O atacante é rápido e habilidoso, principalmente na perna direita. O seu ponto fraco, o de muitos em campo, inclusive, é a baixa estatura. Ele revela gratidão para com a treinadora. "Aprendi muitas coisas com ela. Eu era preguiçoso, mas ela incentivou-me muito. Treinei o físico, as finalizações e melhorei muito". Ele é um daqueles em que a técnica mais aposta. "John Lennon sabe jogar à bola", diz.

O atacante John Lennon: uma das apostas de Gretchen. Fotografia: Adolfo Sonteria

Outro que se tem destacado nos treinos e jogos da Escolinha "Deus é Fiel" é o ala Carlos Eduardo Barbosa, também de 15 anos. "Aprendi tudo sobre futebol com ela. Treinamos sempre a táctica, técnica, individualismo", diz o atleta, que é um pouco mais alto que a média e com óptima qualidade na marcação e no primeiro passe. "Todo a gente tem de ter uma hipótese e eu acho que tenho hipótese de treinar e de ser jogador".

Carlos Eduardo, na Escolinha Deus é Fiel. Fotografia: Adolfo Sonteria

Ser jogador profissional é a expectativa de todos. Quem está mais próximo dessa realidade é Wellyson Luiz Silva da Hora, também de 15 anos. O lateral-esquerdo passou uma temporada de treinos nas categorias de base do Atlético-MG, em Belo Horizonte. Hoje, aguarda uma resposta do clube para saber se ficará por lá em definitivo. "Fiz uns seis treinos e fui bem nos seis, marquei golos, joguei bem". Assim como os seus amigos, Wellyson deve muito do que sabe à treinadora. "Ela é uma guerreira e nunca nos deixou de lado. Está sempre connosco".

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O grande sonho de Gretchen – além de colocar próteses de silicone nos seios – é ter condições para comandar os seus atletas. Falta tudo: equipamentos, balneário, água, bolas. Com dificuldade na documentação e na busca de recursos para a comunidade e a Escolinha, não há muito mais para além do campo, com mais areia do que relva, emprestado pela Polícia Militar. Os jogadores, com equipamento rústico, apesar das chuteiras caras, dividem o espaço com diversos animais que por ali pastam.

Fotografia: Adolfo Sonteria

Gretchen é uma atracção local, isso é claro. É para ela que os holofotes se viram no Bairro do Pacheco. E a comunidade já percebeu o seu poder. O único senão é que a sua competência técnica não entra na questão. É o caso de José Roberto Ferreira de Lima, o Birungueta, o homem que assumirá a administração da Escolinha de futebol. Sobre a capacidade da treinadora ele é directo. "Saber ela não sabe, porque só sabe quem estuda. Mas ela traz a comunicação social aqui, e já foi ao [Programa do] Ratinho".

Com um discurso mais político do que prático, diz: "O intuito é formar cidadãos, não jogadores. Um atleta é consequência do trabalho", e tem prometido organizar as finanças e burocracias da equipa e pretende manter Gretchen quase como um trunfo.

Assim como a Escolinha, a treinadora também vive em condições complicadas. Ganha 77 reais por mês do [programa] Bolsa Família e mora por favor em casa de uma amiga, que mantém um salão de cabelereiro na parte da frente. "Ela não gosta de futebol, só gosta da selecção brasileira para ver aqueles gostosos", diz. "O Kaká".

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Fotografia: Adolfo Sonteria

Mulher ou frango?

Embora diga com segurança que nunca viveu cenas de homofobia ou transfobia à beira do campo, Gretchen conta que sempre notou a curiosidade dos adeptos dos sítios por onde passa. "Eu ouvia as crianças perguntarem: 'papai, isso é uma mulher ou um frango (em Pernambuco e em quase todo o Nordeste brasileiro a expressão refere-se a gays)? Que raios é isso?'. Eu ficava calada só a ouvir e a comandar a minha equipa. As crianças são curiosas, por isso não ligo", diz.

Em casa a história era diferente, bem mais agressiva. Ainda que recebesse apoio da mãe, sofria com a severa repressão paterna. "O meu pai era chato. Quando eu o via, escondia-me. Ele dizia: ' se eu te apanho com aqueles frangos meto bala em todos'".

Fotografia: Adolfo Sonteria

A revolta, porém, não mudou a vida de Gretchen. O apelido, inspirado na cantora do mesmo nome, surgiu na adolescência. O corpo de hoje – feminino, com peitos e ancas avantajadas – é um processo recente. Primeiro levou injecções de hormonas para, como ela mesmo diz, "os peitos crescerem"; depois aplicou silicone líquido no rabo com a doação de uma amiga. "Custou 500 reais. Primeiro vem a anestesia com uma agulha fina e depois uma agulha grossa, de cavalo mesmo. Eles enfiam cinco agulhas e vão enchendo. Queres ver?", diz ela, antes de levantar o curto vestido cinza e exibir a cuequinha lilás com a inscrição Boka Loka.

Fotografia: Adolfo Sonteria

"Se tivesse dinheiro colocava silicone no peito, mas custa 7 mil reais", afirma. "Com esses dois peitinhos eu ainda me mostro, imagina se tivesse próteses? Todo o travesti tem o sonho de ter peito". Já sobre cortar os genitais, Gretchen é definitiva. "Eu não sou mesmo mulher e não vou ser aquela que quer ser mulher".

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Fotografia: Adolfo Sonteria

Actualmente ela tenta, com o auxílio dos atletas, juntar algum dinheiro para participarem num torneio em Caruaru, a pouco mais de 100 quilómetros da capital. Se conseguirem todo o valor necessário, alguns milhares de reais, vão viajar. Se não der, essa verba servirá para comprar materiais desportivos.

A impressão que dá é que, ainda que a equipa vá e vença o torneio em Caruaru, a vida na comunidade seguirá da mesma forma: sem ajuda, sem amparo, mas com muito esforço e determinação. A Prefeitura de Jaboatão parece ter-se esquecido do Bairro do Pacheco, Gretchen não.

Fotografia: Adolfo Sonteria


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