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Comida

Porque é que teres tomates para jantar fora sozinho faz de ti um ser humano melhor

Sentares-te e observares bem a tua comida e as pessoas à tua volta, em vez de abraçares o conforto do scroll constante no ecrã do telemóvel é, hoje, em dia, um acto intenso de disciplina.
Foto por Jim Pennuci via Flickr

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma MUNCHIES.

Em Amsterdão, já se aceitam reservas no Eenmaal, um restaurante de decoração minimalista que apenas aceita clientes que queiram comer sozinhos. O espaço reivindica ser o primeiro do género; uma cantina para solitários.

Procurar o lucro neste tipo de cliente é, claramente, um grande negócio. De acordo com um estudo levado a cabo pelo Hartman Group, quase metade dos norte-americanos adultos comem a maioria das suas refeições sozinhos. No Reino Unido, segundo o Office for National Statistics, as pessoas singulares chegam aos 7.7 milhões - quase um terço - dos núcleos familiares. O apetite para apontar directamente a esta franja populacional é, pois, compreende-se, voraz.

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Há uns anos tive de deixar de tomar a pílula contraceptiva depois de ver uma mulher completamente sozinha, com as suas meias elásticas medicinais e casaquinho de malha feito à mão, a comer um prato de ovos e batatas fritas com uma colher. E não reconsiderei as minhas precauções contraceptivas por ter achado aquele cenário insuportavelmente erótico. Nada disso. A visão desta solitária, sentada discretamente naquela mesa de café e a a devorar timidamente o seu prato, deixou-me o coração a sangrar.


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Era óbvio que o estrogénio tinha-me levado para um qualquer lugar de absoluta insanidade. As pessoas que comem sozinhas não precisam da nossa piedade. Chorar por elas, ainda para mais quando estão a satisfazer uma das maiores necessidades e, ao mesmo tempo, um dos maiores prazeres da vida, é um tiro ao lado.

Porquê? Porque uma pessoa concentrar-se no que está a consumir, assumir sozinha o seu próprio ambiente de refeição, pode ser uma das pedras angulares da auto-suficiência. Ficas livre daquelas tretas de te envergonharem pelo que estás a comer, das restrições dietéticas absurdas e aborrecidas dos outros, da conversa para encher chouriços, de teres de esperar tanto por alguém que antes das entradas chegarem já comeste os guardanapos e, mais importante ainda, ficas livre do compromisso. És uma ilha.

"Não estou minimamente preocupado se pensam que sou um triste coitado", diz-me o crítico de comida Jay Rayner. E é claro que não se preocupa. "Um dos meus maiores prazeres é esgueirar-me pelas ruas da Chinatown de Londres à hora de almoço de um dia qualquer de semana, sentar-me de costas para a porta com um exemplar da revista The New Yorker e comer meio pato assado no Four Seasons, na Gerard Street. É o meu ideal de refúgio", justifica. O prazer pode ainda ser melhorado, salienta, se tiver a sorte de ser atendido por um bom empregado de mesa, que "sabe que ninguém tem de ter pena de ti". "Estás ali, porque estás a conceder-te um momento de prazer. Estás a entreter-te a ti próprio", conclui.

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Se não estás habituado a comer sozinho, podes sentir-te tentado a compensar a situação com conversas por sms completamente falsas, ou mesmo com chamadas telefónicas que não existem. Mas, não o deves fazer. Claro que há determinadas comidas que se prestam mais a refeições solitárias que outras. Como te poderá testemunhar qualquer mulher que já tenha sido assaltada pelos olhares lascivos de um grupo de homens enquanto comia uma banana, uma salsicha, ou um gelado, algumas comidas são mais "suspeitas" sem companhia.

Esse medo da comparação com o sexo oral é, assegura Jay, uma maldição para as mulheres: "É algo que, de facto, nós homens não sentimos, nem podemos perceber. A não ser que estejamos, sei lá, a devorar um prato de amêijoas, ou algo do género, mas ainda assim acho que ninguém nos vai olhar de lado".

Como todos os melhores prazeres onanistas, comer sozinho é algo que normalmente se faz só com uma mão; uma mão segura o livro, o jornal, a revista, ou o telefone, a outra leva a comida à boca. Isto, todavia, não se aplica se as tuas capacidades para comeres sozinho te permitem envolveres-te em refeições tão obscenas que, se calhar, é melhor esconderes-te num canto do restaurante. "No Bodeans (a meca dos amantes de entrecosto em Londres), por exemplo, tenho um cantinho especial onde posso esconder-me à vontade", revela o crítico.


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Apesar de toda esta conversa sobre os prazeres de comer sozinho, para alguns a coisa é mesmo uma necessidade chata e aborrecida. Neste momento estou a meio de uma viagem de bicicleta pela Nova Zelândia e tenho passado muitas horas a observar gajos de meia idade, vestidos com as suas camisolas azuis de poliéster, a atacarem em silêncio rolls de queijo e canecas de café, enquanto olham distraídos para o infinito. São o exército de motoristas de autocarro, sem os quais as hordas de turistas fumadores de ganzas, disseminadores de doenças sexualmente transmissíveis e compradores compulsivos de colares de conchas, certamente não passariam dos arredores dos aeroportos. Quem me dera.

"Acho que as pessoas não têm noção do quão solitário é este trabalho", diz Dexter, motorista há mais de 20 anos e que apanhei a comer uma empada de carne e batata nas margens do Lago Wanaka. "Durante o dia estás ocupado, mas à noite estás por tua conta. Vais comer alguma coisa rápida e depois vais para o quarto. Estás sempre fora de casa, a maior parte das noites num quarto diferente e, quando acordas de manhã, já sabes que vai ser outra vez tudo igual. Preferia comer com outras pessoas, mas a maior parte das vezes isso não é possível", realça.

Este recarregar de baterias em modo fast-food e carboidratos, apanágio de condutores solitários como Dexter, está a milhas de distância dos jantares a solo tão bem retratados por Ian Fleming na sua saga James Bond. Tal como uma mão perfeita no poker, as viagens pelas estradas dos Alpes, ou a forma de derrotar um adversário no golfe, são particularmente esclarecedoras as longas descrições de Fleming sobre os hábitos requintados de Bond enquanto homem dedicado aos prazeres de comer sozinho. Em Diamonds Are Forever, depois do quarto duche do dia, Bond dirige-se ao "Voisins, onde bebe dois vodka martinis, Ovos Benedict e morangos", enquanto lê as previsões para as corridas. É só um exemplo.

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Mas, o que é facto é que, na era do iPhone em que vivemos não sabemos realmente como é comer sozinho. Graças ao Twitter, ao Facebook, ao Instagram e outros que tais, a maior parte de nós vai estar a almoçar tendo nos dedos (provavelmente cheios de maionese) o poder de aceder a mais material de leitura que aquele que existe na Biblioteca do Congresso dos EUA, ou a mais gente que aquela presente numa reunião da Assembleia Geral da ONU.

Sentares-te e observares bem a tua comida e as pessoas à tua volta, em vez de abraçares o conforto do scroll constante no ecrã do telemóvel, é, hoje, em dia, um acto intenso de disciplina. E, tal como praticamente tudo o que envolve doses massivas de força de vontade, se calhar é algo que devemos tentar saborear mais vezes.

Há dias, dei por mim sentada sozinha numa mesa banhada pelo Sol, na esplanada do Sweet Mother's Kitchen, em Wellington, na Nova Zelândia, a comer uma cesta de pão de milho quentinho e a beber uma cerveja. Eram quatro da tarde e tinha duas horas livres. Se estivesse sujeita à vontade de alguém, ou tivesse algum problema de consciência em comer sozinha, provavelmente teria passado esse tempo livre a visitar um museu por obrigação, a fingir que gosto de andar às compras ou - Deus me livre - a receber "mimos" de beleza num cabeleireiro qualquer, ou uma cena do género. Em vez disso, sentei-me ao Sol, besuntei-me de protector solar e curti a minha comida. Como diz Jay Rayner, "comer sozinho deveria ser encarado como jantares com alguém que amas". Ou seja, se não consegues sentir-te satisfeito contigo próprio, se calhar estás mesmo lixado.


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