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Entrevistei o Humorista no Júlio de Matos

Ninguém é o que queria ser.

Há algumas semanas, estreou na Sic Radical um documentário sobre um humorista que ninguém conhece mas que se auto-intitula de “a fonte”. Egocêntrico, mentiroso, presunçoso, manipulador, convencido, por vezes agressivo. Nos seus “espectáculos”, este humorista insiste em tentativas de graçolas quase sempre fracassadas. Quem viu os primeiros episódios saberá que a devolução silenciosa que o João Cunha recebe nada tem a ver com indiferença. Tal como em Kaufman, a frustração — a nossa e a da personagem — é elemento central e é a partir dela que poderá (ou não) surgir a comédia. Quis falar com ele, que me pediu que nos encontrássemos no Júlio de Matos, vá-se lá saber porquê. VICE: Oi João. O que estás aqui a fazer, meu?
O Humorista: Estava a passear. Isto é um sítio onde podes entrar. É um hospital de pessoas com problemas mentais e eu sou sensível a isso. No fundo, sempre que posso, passeio ali e deixo que as pessoas que lá estão me vejam, de forma a dar alento a essas pessoas. Quero que elas percebam que a vida cá fora vale a pena. Por isso, é importante que recuperem… Mas de que forma dás alento às pessoas? Não estou a perceber.
As pessoas verem ali alguém conhecido e com sucesso… Achas que és conhecido?
Basicamente. Quer dizer, olhas à volta e sentes isso. Estou aqui com esta roupa um bocado diferente também para as pessoas não me reconhecerem. Trago até uns óculos escuros para tentar… Mas sim pá, sinto isso no contacto com as pessoas. Vejo nos olhos das pessoas que fingem, frequentemente, que não me conhecem para não me incomodar. Faz parte do respeito que têm pelo artista. “O” artista?
Não. Eu sou “o Humorista”. Provavelmente, aquilo que me falta para ser “o artista” é a participação num filme. Sendo tu o Humorista, tens alguma referência ou não existe ninguém que te possa inspirar?
Aprendo todos os dias com a vida, com o passar do tempo. Mas em termos de referências vivas, não existe nenhuma. Como, um dia, disse Nietzsche: “A vida é feita de degraus.” Ok. Como começaste na comédia?
Logo quando nasci [risos]. Quando nasci, não chorei. Portanto, vim a rir. Depois, cada vez que estava com os meus pais e os amigos deles (até acho que eles só eram amigos dos meus pais para me poderem ver e ouvir), era, normalmente, o centro das atenções. Talvez tenha sido aí que comecei. Onde e quando surgiu o teu primeiro espectáculo mais a sério?
O primeiro espectáculo surgiu no clube de caçadores de Alvaiázere. Era relativamente novo, não sei… Isso não abona muito a favor do teu estatuto.
Por que não? Porque não parece ser uma referência.
Isso é um preconceito teu. Já lá estiveste? O reconhecimento faz parte da tua perspectiva. Ok? E como disse Kafka: “Olha, reconhece e faz a tua avaliação.” Acho que Kafka não disse isso.
Já leste tudo de Kafka? Em que livro leste isso?
Está, hmmm… Já li, [mas] às vezes confundo os títulos. Acho que não foi Kafka. Por acaso, tens razão. Quem disse isto foi o Paulo Coelho. Enfim, o que interessa é este sentido. Ganhas dinheiro com o que fazes?
Não, estou aqui a encher chouriços. Obviamente, que ganho dinheiro. Como em qualquer arte, o artista tem de ser recompensado pelo seu dom e é isso que, no fundo, as pessoas pagam. Pagam a oportunidade de assistir à expressão do meu dom. Mas já aconteceu teres de devolver o dinheiro às pessoas, certo?
Isso foi um caso em que as pessoas não estavam minimamente preparadas. Estão habituadas a outro tipo de humor. Não conseguiram receber aquilo que eu tinha para lhes dar. Isso aconteceu, mas acho que foi uma situação única. No documentário que fizeram sobre ti, podemos ver que o público não ficou muito satisfeito. Está toda a gente errada menos tu?
Não faço humor superficial, ok? O meu humor é profundo. Se quiseres, é um atalho da consciência para o sentimento. Falo de vida, de experiência, de temas fracturantes… Chamaste careca a um careca e disseste que não querias pretos na sala.
São temas fracturantes porque, a partir daí, as pessoas passaram a ver os carecas e os escurinhos de maneira diferente. Mas eu estava a dizer, antes de me interromperes, que faço isto como uma missão. A minha missão é ajudar as pessoas a encontrarem-se. E para isso usas técnicas peculiares.
Quando dizes peculiares, queres dizer inovadoras e de grande nível artístico, é isso? Sem dúvida. Por exemplo, copiaste as “piadas” do Nilton. Achas que é consequente?
Tu é que estás a dizer que são as piadas do Nilton. Provavelmente, ele já tinha visto aquela piada e usou o meu material. Fez confusão, talvez. Sei lá, já vi piadas minhas feitas pelo Jerry Seinfeld, um gajo conhecido que faz coisas nos Estados Unidos. Um colega teu que ninguém conhece chamou-te filho da puta e ainda te quis bater. O que se passou?
É assim. Às pessoas a quem dei o privilégio de partilhar o palco comigo não respondo directamente. Posso entender o que as pessoas podem sentir quando percebem que não estão à altura de quem está a partilhar o palco com eles. Isso por si só já é duro. Não vale a pena mexer mais nessa ferida. Se filho da puta for usado no sentido de eu ser um filho da puta genial aí, não vou ser eu a falar por mim. Disseste várias vezes que o mercado português é pequeno para ti. Qual é o teu limite?
O meu limite é fazer um espectáculo na Lua. Na Lua?
Na Lua. Acredito no destino. Como escreveu a Agustina em A Cidade e as Serras: “Da cidade até à serra há muito que subir”. Esse é um caminho que vou fazer. Um caminho que vai surgir naturalmente e que vai andar a par com o reconhecimento que o público tem dos meus espectáculos. Por vezes, sinto que cada espectáculo é o único, porque não faz sentido continuar em palco sem ter o feedback que tenho tido, sem ter as pessoas a pedir incessantemente na minha página do Facebook para fazer espectáculos… Tens mil e tal likes no Facebook.
Porque há pessoas que me contactam directamente. Tem a ver com a privacidade de cada um, acho eu. Às vezes, tens graça.
Se tivesses dúvidas disso, nem sequer me estavas a entrevistar. Estou a dar-te uma oportunidade de estares a entrevistar-me. Se achares que não é uma oportunidade terminamos aqui e vamos embora. Já tens planos para o futuro?
Tenho planos a sete anos. Um deles é montar uma empresa de consultadoria, na qual ajudo pessoas que querem montar negócios a arranjarem nomes. Imagina, queres montar uma casa de pneus no Lavradio, ficaria “Pneudio”. De que forma é que isso é humor?
É sempre importante haver um tom de comédia nos nomes. Às vezes, nas empresas é preciso pôr Lda. à frente. O humor, como é ilimitado, contrasta com o limitado. Crias aqui um cenário em que tens a Lua e o Sol. Estás a ver? Relativamente a planos mais breves, vou apostar na formação para tentar, no fundo, dar oportunidade a pessoas que queiram beber da fonte. Outro dos meus objectivos passa por, dentro de um ano, estar a viver apenas da publicidade. Como os Gato Fedorento?
Não sei. Já ouvi falar, mas não estou muito por dentro. Outro objectivo que quase me esquecia. Precisava de ser operado ao joelho e, provavelmente, os próximos espectáculos serão para angariar dinheiro para a minha operação. Mais alguma coisa a acrescentar?
Tu é que sabes, estou aqui a dar-te esta oportunidade… Gostaste do documentário? Não. Achei uma merda.
Se calhar, mais vale ser merda e conhecido do que ser merda como esta entrevista e a tua revista, ou lá o que é essa merda. Ok.
Ok. Fotografia por Nuno Barroso