Imagem via usuário do Flickr Adrian Miles.
No próximo sábado, o braço do Brooklyn do festival Afropunk acontece no Commodore Barry Park, em Nova York. As atrações incluem Lenny Kravitz, Grace Jones, Ms. Lauryn Hill, Death Grips, Danny Brown e Suicidal Tendencies. Um festival nos EUA com uma escalação talentosa majoritariamente negra e capaz de oferecer shows de hip-hop, eletrônico, jazz, soul e hardcore punk certamente é um grande feito cultural em si. Mas a versão atual do Afropunk se desviou demais de sua visão original?
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É inegável que, nos últimos 11 anos, o Afropunk Festival tenha visto mudanças dramáticas. O que começou como um encontro de algumas centenas de punks inspirado no documentário de mesmo nome de 2003, de James Spooner, lentamente cresceu para se tornar um festival para 60 mil pessoas, contando com atrações como D’Angelo, Chuck D e Saul Williams.
Em 2015, o Afropunk apenas cresceu. O festival agora é internacional: haverá um evento em Paris, em maio, com Lianne La Havas mais Jaden e Willow Smith, e outro em Atlanta, em outubro.
Talvez a mudança mais notável esteja no fato de que o Afropunk não é mais gratuito. O festival, que originalmente não cobrava entrada, procurando financiamento através de patrocinadores, vendas de suvenires e com outras casas de show, hoje cobra ingresso. Isso custa US$ 75 (R$ 260) pelo final de semana ou US$ 45 (R$ 157) por dia – ele, contudo, é gratuito para quem realizar trabalhos voluntários aprovados. Naturalmente, dúvidas sempre surgem quando algo que era grátis de repente não é mais. Uma das principais: o que mudou para que haja um preço num festival que destaca uma comunidade sub-representada?
O cofundador do festival, Matthew Morgan, e a coorganizadora, Jocelyn Cooper, estavam prontos para essas perguntas. Eles se mostraram confiantes quando conversamos sobre o 11º festival num café no Brooklyn. Ficou claro que eles estavam mais interessados em conversar do que em dar uma entrevista unilateral. Antes de eu começar com as perguntas, Morgan pede para saber quais são meus artistas preferidos (Kanye West e Interpol da era Turn on the Bright Lights), lamenta um pouco quando digo que sou um escritor negro que escreve principalmente sobre rap (o que respondi ser mais por interesse do que por obrigação) e fala sobre a maior dor de cabeça dos organizadores: planos dando errado no último minuto, apesar de um ano inteiro de preparação. Mas eles estavam ali para responder a perguntas; então, fomos em frente.
A amabilidade ia e vinha entre a franqueza quando tocávamos na ideia de pagar pelo Afropunk. Morgan se mostra um mestre da réplica básica: “Por que não?”. O ponto dele é válido. Por exemplo, as pessoas entram em pânico para comprar todo novo Air Jordan lançado, porém ficam putas em pagar por um ingresso que seja uma fração do preço do tênis. E é claro que um festival com uma mensagem pró-afro vale US$ 70. Isso nos leva de volta pruma máxima comum: se a comunidade negra não se der valor, quem dará?
“Há toda uma proposta de valor que temos de investir em nós mesmos”, disse Morgan. “O que as pessoas gostam nesse festival? Ele é único? É importante? Como ele faz você se sentir? E se a experiência não vale US$ 70, então não merecemos isso. Vá ao Pitchfork. Ao Lollapalooza. Ao Bonnaroo. Apoie esses eventos com o seu dinheiro. Ou fique em casa.”
E os pontos dele não são apenas marketing: a paisagem do festival é esmagadoramente branca. Talvez apoiar um negócio predominantemente afro-americano, quando a Budweiser arrecada dinheiro com o festival fundado por Jay Z, o Made in America (“Eles se importam em dar outro milhão a Jay Z?”, pergunta Morgan), não seja uma má ideia. No entanto, de 2003 a 2015, o Afropunk não só cresceu – ele foi reinventado. Logo, as dúvidas são quão longe essa reinvenção foi e se toda essa ambição se distanciou demais da ideia original do filme: “para cada garoto negro que já foi chamado de nigger… e para cada garoto branco que acha que sabe o que isso significa”.
Siga o termo “Afropunk” até suas raízes e você tem “rebelião afro-americana”. Mas ser afro-americano e parte da cultura rebelde do punk rock vem com suas próprias complexidades. A linhagem negra do início do rock foi escondida. A luz de Chuck Berry e Little Richard foi eclipsada pelos pequenos furtos de Elvis Presley e Keith Richard. Com o branqueamento de algo que eles ajudaram a criar, os afro-americanos foram obrigados a fazer o que sempre fizeram: ser flexíveis. Seguir em frente e criar com o pouco que tinham. O hip-hop foi feito dessa necessidade. Os fãs negros que se identificavam com a emoção do punk se depararam com uma dura verdade: essa não era a rebelião deles. Os punks brancos podiam se revoltar contra seu privilégio à noite e esconder suas tatuagens de dia. A cor não pode ser escondida – e, portanto, ser negro é viver num estado constante de rebelião.
O documentário de Spooner explora uma rebelião dupla: ser o “preto do rock” num ambiente que pode ser predominantemente branco e não inclusivo e ter sua cor questionada por outros como você.
Inspirado por sua própria experiência dentro da cena punk, AfroPunk veio num período de seca do rock negro – décadas depois de Fishbone e Bad Brains, porém um pouco antes de Bloc Party e TV on the Radio (Kyp Malone aparece no filme). Afro-americanos no punk não apareciam no começo dos anos 2000.
Doze anos depois da estreia do documentário, Spooner, que sempre estará ligado a isso (sua bio no Instagram afirma sarcasticamente “Sim, fiz aquele filme afropunk”), hoje trabalha como tatuador. Ele tem um estúdio em Los Angeles, embora faça trabalhos para um cliente no estúdio de Park Slope, Nova York. Spooner é um profissional ocupado atuando nos dois lados do continente, mas se mostra muito entusiasmado quando fala sobre o clima que gerou o AfroPunk. “Quando comecei a fazer o filme em 2001, eu jogava ‘punk negro’ no Google e não achava nada. Zero”, lembra Spooner.
Essa obra, um documentário DIY apresentando entrevistas com afro-americanos da cena punk, se tornou um conector para muitos negros que compartilhavam as lutas mostradas nele. Eles começaram a conversar no fórum do filme na internet, que abrigava uma comunidade unida que gerou amizades reais.
“Para esses garotos, foi tipo a salvação: eles realmente queriam conhecer uns aos outros”, diz Spooner. “Assim, eles começaram a falar sobre se organizar e se encontrar.”
Esse encontro acabou sendo o Afropunk inaugural de 2005. Realizado na Academy of Music, no Brooklyn, o encontro, com curadoria de Spooner e Morgan, foi um evento espontâneo com filmes, shows no defunto CBGB e um piquenique simples em que as pessoas se conectavam através de uma paixão compartilhada. “Isso, para mim, era tudo que o festival deveria ser”, frisa Spooner. O Afropunk em sua forma original era um produto do etos punk de Spooner e do know-how da indústria da música de Morgan, que viu potencial na marca Afropunk e investiu dinheiro do próprio bolso para tornar o festival realidade.
O público do Afropunk de 2013. Foto via usuário do Flickr Daniel Latorre.
A diferença entre as ideologias de Spooner e Morgan em relação ao Afropunk progrediram para um rompimento em 2008. Naquele ano, os usuários do fórum foram surpreendidos ao se depararem com seu ponto de encontro virtual simples transformado num esquema de cores em branco, prestes a se tornar uma revista digital (o guitarrista do Jenny Hates Techno, John M. Ellison, conhecido nos fóruns como guettopunkrocker, lembra: “Loguei no site e pensei: ‘Que porra é essa?’.”). As mensagens compartilhadas no site tinham sido apagadas, o que enfureceu alguns usuários a ponto de eles abandonarem completamente o fórum virtual. Spooner também se sentiu alienado do festival. Isso era um piquenique tranquilo alguns anos atrás. Agora, um estudo de marketing dizia que negros gostavam da cor vermelha. Então, como a Mountain Dew estava financiando o festival, ele teve de testemunhar jovens participantes tirando fotos promocionais com amostras grátis de Mountain Dew Code Red: “Tipo: ‘Que merda, isso não é punk!’.”, ele critica. Spooner, que nunca ligou muito para isso (ser o organizador de um festival), encerrou seu envolvimento com o Afropunk em 2008.
A queda do fórum original provavelmente era inevitável: a comunicação em tempo real e a acessibilidade do Facebook logo o tornariam obsoleto. Além disso, o Afropunk tinha se tornado maior que as centenas de membros ativos do fórum. A mudança da maré estava chegando.
“Fiz uma postagem no fórum antigo quando mais pessoas estavam entrando: ‘Se esse lugar se tornar uma revista ou muito maior do que é hoje, você pode dar adeus a tudo’.”, me contou o antigo membro do fórum Damos Abadon. “Logo depois, tudo mudou.”
Parece que a visão de Spooner não mudou tanto assim dos temas do filme: essa busca por conexão interpessoal através do ruído branco dentro de uma lente mais específica de gênero. Morgan, que veio da indústria da música, viu o potencial. Havia outras caixas para abrir: hip-hop alternativo, R&B alternativo, membros LGBT, a comunidade do cabelo natural, etc. Uma definição mais ampla do Afropunk – “liberdade”, como Cooper coloca – funcionou como um guarda-chuva para todas essas facetas da experiência negra.
Hoje, o foco de Spooner é tatuagem. Ele está tão fora do círculo Afropunk que não sabia que a mais recente edição do evento tinha começado a vender ingressos até eu mencionar isso. Apesar de ter superado o festival, Spooner fica um pouco melancólico. “É difícil ver isso – é como dar à luz, criar a criança, deixá-la sair para o mundo, e ela te desapontar”, comenta Spooner sobre o que o festival se tornou.
Membros do falecido fórum me deram várias razões para seu distanciamento do Afropunk atual (apesar de ninguém dizer que simplesmente ficou velho demais para isso). Um sentia que o evento tinha se tornado apenas outra marca. Outro sentia que a segunda parte do nome do festival era negligenciada: D’Angelo sempre vai ter mais destaque no cartaz que o Bad Brains. No entanto, o ceticismo não vem apenas dos membros originais do fórum. Cynthia Francillion, que já foi quatro vezes ao Afropunk (duas como voluntária), elogiou o festival por dar à comunidade do cabelo natural um meio para se expressar. Negócios negros precisam de apoio, mas, como muitas pessoas com quem falei, os amigos dela temem que algo com um impacto tão pessoal seja corrompido. “Eles têm medo de que o Afropunk se venda. Que o festival vire o próximo Coachella.”
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Tradução: Marina Schnoor