Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.
O que teria acontecido com Chelsea Manning se o presidente Obama não tivesse comutado sua pena de 35 anos de prisão? Felizmente, nunca saberemos – mas o mais provável é que as coisas não teriam melhorado sob uma administração de Trump.
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Chelsea Manning teve algumas vitórias em sua batalha por tratamento para dismorfia de gênero enquanto estava encarcerada, mas não há dúvidas de que o tratamento que ela recebeu do exército foi incrivelmente cruel. Para ter acesso à terapia hormonal vital de que precisava, ela teve que lutar com unhas e dentes; ano passado ela foi sentenciada à solitária como punição por uma tentativa de suicídio, o que a fez tentar se matar outra vez. E ainda em 2017, o exército não permitiu que ela deixasse o cabelo crescer mais que os padrões militares para homens. Depois de sete anos de prisão que quase custaram sua vida, é difícil imaginar o que mais sete, ou mais 28 anos que restavam de sua sentença, teriam feito com seu estado emocional e mental.
Como advogado da ACLU [União Norte-Americana Pelas Liberdades Civis] trabalhando para defender o direito de Manning ao tratamento para dismorfia de gênero, Chase Strangio tem sido fundamental nos últimos anos na conscientização sobre as crueldades enfrentadas por Manning, e em ajudá-la a assegurar seus direitos legais. As notícias da última semana de governo Obama foram monumentais para milhares de pessoas, e não há dúvida de que foram especialmente importantes para Strangio, que esteve à frente da luta para assegurar a liberdade de Manning. Ele falou à VICE nos dias seguintes à comutação e sobre o que isso significou para ele, para ela, para aqueles que eManning inspirou, e o que vem agora.
VICE: Você pode falar sobre o tratamento que Chelsea vem recebendo nos últimos sete anos, o que isso significa para ela e sua vida, e o que acontece agora?
Chase Strangio: Foram sete anos horríveis para Chelsea, e posso dizer que ela lidou com essas dificuldades com uma graça inacreditável, muito mais do que eu seria capaz. Mas logo antes de ser presa em 2010, ela estava lutando com dismorfia de gênero, estava servindo numa zona de guerra e sendo confrontada com as atrocidades das batalhas, depois foi imediatamente colocada em confinamento solitário numa cela no Kuwait, e aquelas condições foram replicadas de muitas formas em Quantico. Especialmente saindo de um tempo de serviço tão traumático e doloroso, a solitária a desestabilizou muito, como teria acontecido com qualquer ser humano. O confinamento solitário é uma prática horrenda e torturante, que a comunidade internacional de direitos humanos, os médicos e o próprio presidente reconheceram como algo similar a tortura, ilegal e inadmissível. Essas condições certamente terão um efeito duradouro na saúde e no bem-estar de Chelsea, como tiveram para tantas outras pessoas.
Durante seu julgamento na corte marcial, ela tomou a decisão de não se assumir como transgênero. Mas no dia de sua sentença, ela deixou claro que começaria a viver publicamente como mulher e iria procurar tratamento durante seu encarceramento. E dali em diante, os militares responderam categoricamente que não forneceriam o tratamento. Foi chocante, já que essa é uma posição totalmente inconstitucional, o que sabíamos muito bem, então a ACLU e eu nos envolvemos. A ACLU já estava envolvida no caso antes, nos aspectos de informante e sobre o tratamento que ela teve em Quantico, aí me envolvi no aspecto do acesso ao tratamento para dismorfia de gênero.
Chelsea sempre foi otimista de que os militares fariam a coisa certa. Sabe, para alguém que aguentou um tratamento atroz do governo norte-americano, ela tem muita fé nos nossos princípios democráticos. Ela acreditava que os militares a tratariam, ela fez todas as requisições imagináveis, e cada uma delas foi negada ou ignorada, então acabamos processando o Departamento de Defesa. Conseguimos garantir o acesso à terapia hormonal e [acesso a] cosméticos, mas o governo realmente lutou para restringir o direito dela de deixar o cabelo crescer, não só negando seus pedidos mas litigando agressivamente contra eles, de maneiras inconsistentes com a posição da administração Obama quando ao respeito dos direitos trans no país.
Uma das coisas que me deixam mais emocionado é pensar que Chelsea vai sair da prisão em quatro meses, deixar o cabelo crescer e expressar seu gênero em seus próprios termos, depois de uma década tendo todo aspecto de sua autonomia corporal controlada pelo governo. É incrível pensar nisso.
Você já escreveu as maneiras como Chelsea tem sido vista como um símbolo em vez de uma pessoa. Você pode comentar mais sobre isso?
Uma das realidades gerais do encarceramento é o modo como desumanizamos aqueles que prendemos e os tiramos de vista. Fazemos isso de várias maneiras – literalmente removendo as pessoas da sociedade, mas de outras maneiras administrativas e sociais, restringindo o acesso das pessoas à comunicação, ao toque e à intimidade – o que torna muito mais difícil percebê-las como seres humanos. O que, claro, é exatamente o propósito da máquina de encarceramento punitivo.
Para Chelsea em particular, o governo estava determinado a tirar sua voz e a tornar um exemplo para justificar o tratamento incrivelmente cruel dado a ela. Como advogados trabalhando com ela, um desafio era encontrar maneiras de ajudá-la a contar sua história em seus próprios termos, e ser percebida como um ser humano pelo público. Mesmo ouvindo as reações da mídia semana passada, ninguém tem a menor ideia de quem ela é, e, francamente, a mídia não entende do que o caso dela se trata. Eles pensam nela como uma traidora, porque foi isso que disseram a eles, mas ela é uma pessoa cheia de compaixão e patriotismo que se juntou ao exército em parte porque era pobre e precisava do dinheiro para pagar a faculdade, em parte porque tinha um profundo senso de patriotismo e queria servir a seu país depois do 11 de Setembro. Durante essa época, ela foi sem-teto por um tempo e passou por todo tipo de discriminação como uma jovem queer, ela serviu o exército sob a lei Não Pergunte, Não Fale, e a proibição do serviço de pessoas trans. São coisas que poucas pessoas percebem ou sabem – suas motivações para servir o exército, sua dedicação ao país, e a discriminação sistemática que ela experimentou como uma pessoa queer e trans de baixa renda.
Durante os últimos três anos, ela pôde escrever e compartilhar algumas de suas histórias, e pudemos ajudá-la com sua conta no Twitter e coisas assim. Mas ela não estava sendo vista, sabe? E de muitas maneiras – não apenas visualmente.
Sei que ela vai querer que as coisas se acalmem um pouco depois que for libertada, mas quais são os próximos passos para vocês? Sei que em algum momento ela vai voltar aos holofotes, quando estiver pronta – estou imaginando como esse futuro vago será.
Quando começamos a ter conversas mais concretas sobre o futuro, quando parecia que a comutação era uma possibilidade, por mais cautelosas que essas conversas fossem, duas coisas emergiram. A primeira é que fazer a transição durante o encarceramento é incrivelmente complicado emocional e fisicamente – algo que só posso imaginar. E Chelsea sabe que vai precisar cuidar de si mesma de várias maneiras, e esperamos que as pessoas mais próximas dela possam ajudá-la a conseguir as ferramentas que ela vai precisar para isso. Como seres humanos, criamos mecanismos de sobrevivência e defesa que nos ajudam a lidar com nosso ambiente; esses mecanismos se tornaram mais fortes e complexos nos vários ambientes institucionais de que ela foi parte, do exército aos vários lugares de confinamento onde ela ficou presa. Então haverá um processo de se certificar de que ela está segura, saudável e tendo acesso aos cuidados de que foi privada na vida por tanto tempo.
Segundo, ela sente uma responsabilidade e um comprometimento enorme para com a comunidade trans; ela é inerentemente, sempre será e sempre quis ser uma defensora, e quer se envolver ns diálogos fora da cadeia, e participar das próximas lutas da comunidade trans, que sem dúvida serão muitas. Tenho certeza que ela vai continuar esse trabalho, e quero muito vê-la crescer e aprender, e aprender com ela, enquanto partimos para a próxima fase. Fui muito inspirado por ela nos últimos três anos e meio, e sei que temos muito a aprender com Chelsea enquanto ela continua se desenvolvendo no mundo livre.
Essa conversa foi editada para maior clareza.
Tradução: Marina Schnoor