Na última semana, a página PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL PCC 15533 — assim mesmo, em Caps Lock — chamou atenção da mídia pelo conteúdo, ahm, bastante suspeito de suas postagens. Com tom dúbio e amador, o site mostrava cartilhas, dicionário, estatísticas e informações internas em três idiomas da maior facção criminosa do país. Parecia, para muitos, uma incursão do grupo intercontinental nas selvas da internet.
O problema do mundo online, porém, é que aqui, assim como ninguém sabe que você é um cachorro, não dá para sacar se a pessoa do outro lado é do PCC. Na rede, quase nada do que parece, é: uma senhorinha indefesa pode ser combatente de scammers; seu fã no Facebook pode ser um robô; e, como é o caso da página em questão, um aparente editor de site de facção pode se tratar de Rícard Wagner Rizzi, de 53 anos, um guarda civil de Itú, no interior de São Paulo, com grande interesse sociológico.
Videos by VICE
“Não tenho nenhuma ligação com o PCC”, me disse Rizzi, por telefone, com forte sotaque. “Fiz o site porque gosto do assunto e de escrever. É mais sobre preparar o texto. Acho bacaninha.”
A ideia do guarda, diz, veio em 2011, quando, numa tarde em que fazia ronda no fórum da cidade, tropeçou em um processo movido por um investigador da Polícia Civil contra membros do PCC. Interessado pelo tema, Rizzi foi atrás de mais documentos e passou a levantar dados e histórias. “Na época eu tinha muito acesso aos processos”, conta. “Aí foquei no que achava interessante.”
Rústica, com montagens e textos cheios de adjetivos, a página mantém até hoje o formato pouco elaborado. Os subtemas são variados: podem ser relatos em primeira pessoa sobre a rotina de presos, interpretações filosóficas acerca da facção ou impressões pessoais de estudos antropológicos. Tem lá o seu público. São, segundo Rizzi, 500 visitas diárias, com picos de milhares de acessos caso haja algum incidente com a facção. Ainda assim, mesmo com bom número de leitores para um site amador, o guarda afirma que nunca recebeu dinheiro pelo site. “É muito pouco, nem vale a pena sacar”, diz, entre risos. “Só deu prejuízo.”
Os principais leitores, afirma Rizzi, são policiais e pessoas ligadas aos direitos humanos. É por essa razão, explica, que as postagens soam ambíguas ou paradoxais. Se em um post ele critica o sistema prisional, tem que tomar cuidado para não ofender os colegas; já quando narra denúncias contra investigadores, prefere o tom incisivo. “Escrevo pensando em ambos, não posso puxar muito para um lado”, afirma. “Tenho que ter uma linguagem para que cada um deles se enxergue.”
O processo de postagem é diário — ainda que Rizzi, autocrítico por excesso, adie dias por muitas vezes não gostar do resultado. O guarda civil conta que demora cerca de seis horas entre pesquisa, publicação e diagramação dos textos. A parte mais penosa é a coleta. Nas horas vagas, busca matérias sobre o PCC na imprensa e estudos em plataformas universitárias. Se algo lhe interessa, colhe as informações e redige prosas com variados (e por vezes confusos) pontos de vista. São relatos de crimes, histórias de brigas, estatísticas e levantamentos psico-sociológicos de acadêmicos sobre a facção. Alguns posts são épicos no tom e no tamanho: podem ter mais de dez páginas.
O tempo de redação aumenta quando os conteúdos saem em inglês e espanhol. Rizzi afirma que foi um experimento pelo qual tomou gosto. Ao notar visitas de pessoas de vários países no site, decidiu, com a ajuda do Google Tradutor, verter os textos para as línguas de Shakespeare e Cervantes. Deu resultado. Desde que passou a traduzir, recebeu muitos contatos de pesquisadores do exterior. O último foi de doutoranda sobre crime na Holanda. “Assim como tenho interesse sociológico e psicológico pelo tema, muita gente de fora também tem.” As conversas, diz, acabam com ele indicando melhores fontes do que seu site.
As traduções do PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL PCC 15533 serviram também para mostrar que pessoas ligadas à facção o leem. Não faz muito tempo, um membro do PCC na América do Sul o contatou para reclamar da página. O latino não gostara da tradução em espanhol. Depois de trocas de mensagens, mandou versões em castelhano do estatuto e da cartilha para Rizzi, que, agradecido, acatou-as na página. O contato, diz o guarda, parou por ali. “Acho que [os membros do PCC] acessam pra ver estatuto, esses pontos fundamentais, mas o resto não conseguem”, afirma. “Não são matérias fáceis.”
Leia também: Dos salveiros ao WhatsApp: como o PCC usou a tecnologia de comunicação para se expandir
Coincidência ou não, pouco depois do contato do gringo, Rizzi foi inserido em um grupão de WhatsApp da facção. “Eu nunca soube quem me colocou”, conta. Segundo o guarda, havia dezenas de pessoas de várias localidades, a maioria de dentro da prisão. Os membros passavam o dia se parabenizando por ações e mandando “salves”. Embora achasse o clima pesado, o dono da página permaneceu no grupo por seis meses. Quando sentia oportunidade, arriscava a enviar links de textos seus sobre o PCC. Acabou, claro, chamando muita atenção e foi expulso da grupo. “Alguns perguntavam quem eu era, e eu tinha que escrever com linguagem dúbia”, diz. “Dei graças a Deus que me tiraram.”
“Alguns membros da facção perguntaram quem eu era, e eu tive que escrever com linguagem dúbia”
Rizzi, porém,continua com fontes dentro da facção. Por trabalhar num bairro que diz ser bem pesado, possui contato com diversas pessoas que estiveram no PCC. “No ramo criminal você acaba conversando com todo mundo. Se tenho alguma dúvida sobre algum procedimento deles, costumo perguntar para essas pessoas antes de escrever”, diz. Quando o questiono quem e que tipo de dúvidas são, ele desconversa. “Isso não posso falar.”
Embora seja evasivo em muitas perguntas sobre o PCC, Rizzi dá pistas de como enxerga a facção ao interagir com seus leitores. “Não acredito que o PCC seja um ‘monstro para sociedade’, ele é apenas um de seus frutos”, escreveu, com parcimônia, em resposta a um comentarista inflamado.
Ele parece não ter medo de retaliação de qualquer lado. Em seus perfis nas redes sociais, o guarda possui fotos que mostram seu rosto de olhos puxados e cabelos grisalhos, bem como informações de sua vida pessoal. Também mostra, ao lado do nome, um pseudônimo: TS Bovaris. Trata-se de uma brincadeira que fez com um amigo uma década atrás. A ideia era ver quem conseguiria criar um nome falso com palavras existentes na língua portuguesa. Com dicionário em mãos, o guarda inventou um bem peculiar: Teândrico (adjetivo para algo que é simultaneamente divino e humano) Servandija (nome comum a todos os parasitas e vermes) Bovaris (corruptela de “bovarismo”, tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem). Rizzi passou a usar o apelido em assinaturas pela internet, mas, depois de um tempo, para não ser confundido com fake nem com alguém de identidade dupla, juntou ao nome original. “Não oculto quem sou”, diz. “Assim ninguém me confunde.”
Por trás do discurso destemido, o guarda civil não esconde que anda frustrado com os rumos do site. Afirma estar de mudança. “Estou arrumando minha casa e evitando a internet”, conta. Sua ideia é exercitar a escrita criativa com outro tema. Quer resgatar a aura de textos pré-página do PCC, quando criava narrativas fantásticas inspiradas em fatos cotidianos e tramas religiosas —em uma delas, conta, associou a questão de filhos de Deus caídos na Terra para narrar um vendaval em Itú. “Edgar Allan Poe foi um cara que me marcou, mas hoje não tenho tido mais tempo para ler”, diz, saudoso. Parece, a bem dizer, ter cansado da pungência da realidade criminal. “Quero ter mais tempo, aí vejo o que faço. Esse site foi conseqüência, não foi premeditado. Capaz de acontecer algo assim novamente.”
Leia mais matérias de ciência e tecnologia no canal MOTHERBOARD.
Siga o Motherboard Brasil no Facebook e no Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram .