“Um preto, um gay e uma mulher entram num bar. O barman ligou para a policia dos bons costumes e mandou prender-me, porque eu iria fazer uma piada sobre a situação”. Em 1978, George Carlin foi processado por uma pessoa – UMA – por causa do monólogo “Seven Dirty Words You Can Never Say on Television”. Em 2015, Trevor Noah foi quase queimado na fogueira por, uns anos antes, ter escrito no Twitter: “A hot white woman with ass is like a unicorn. Even if you do see one you’ll probably never get to ride it”.
Kevin Hart não vai apresentar os Óscares de 2019 porque, algures entre a invenção da roda e os crocs, fez uma piada sobre o medo que tinha de o filho se tornar gay. Resultado? Os Óscares serão apresentados pelo holograma do Tupac ou, quem sabe, por nada nem ninguém. Desejando ver. O humor como o conhecemos, carregado de gozo com estereótipos, está a morrer, dando lugar a frases feitas. Humor higiénico que não magoa ninguém, nem sequer faz pensar. Ou rir. Tenho a certeza de que se alguém hoje fizesse a piada do tipo que vem do ultramar deprimido porque foi violado por um macaco e “nem uma carta, nem um telefonema”, haveria alguém ofendido, porque “o amor carnal entre homens e animais é uma realidade e deve ser celebrado”.
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Eu que sou eu e não sou ninguém, dou imenso valor ao sentido de humor. Qualidade primordial que me lubrifica, faz pensar em road trips eternas com quem me faz rir mas, convenhamos, não é mais do que isso, o riso. O aligeirar. Eu sei lá se o tipo não gosta de ficar sem lavar os dentes durante dias. É só uma qualidade isso do humor e ter a foto da ex na carteira pode ser mais importante que o resto. Ou do ex. Mas, lá está, aqui já estou a gozar com bissexuais.
A verdade é que, hoje em dia, espera-se de um tipo com sentido de humor o mesmo do que de alguém que saiba em dois segundos onde se situa o ponto G. Nem precisas de tirar a roupa. Ta-da, está ali e conseguiu. Como o Tinder, mas sem dados móveis. No entanto, todos os humoristas que gostavam de meter o dedo (no pun intended) na ferida usando estereótipos e gozando com as situações, foram enfiados num armário para que os gays pudessem sair de lá com plumas e sem gozo. Estou a ser mázinha? Amigos, tenho amigos gays. Deal with it. Deveríamos poder gozar com tudo menos comigo que eu sou sensivel, tá?
Em Portugal, então, oh meu Deus, a coisa está grave. Betinhos que andam aos bandos, a fazerem programas “gelado na testa” e a receberem palmas de pessoas que provavelmente já morreram (sim, porque as palmas já vêm gravadas e não cheiram a fresco) e um público que agradece aos deuses não ter de pensar ou mesmo questionar a piada. Cair em público sempre funcionou muito bem, toda a gente se lembra de quando o Abrunhosa caiu e ri-se, mas ninguém se pergunta porque é que isso as faz rir. “Evaristo, tens cá disto?”, também. Não se entende o porquê do riso, mas isso não interessa.
Isto é só uma introdução. Não sou nenhuma expert em humor. Quanto muito, quando vou à farmácia e me perguntam se o meu nome na ficha é o masculino, justifico sempre com um “sou eu antes da operação” e nunca reagem. Não desisto e eles também não. Ficamos num impasse de me querer divertir e eles de ganharem o guito ao fim do mês. Faço riso de porco, eles pedem-me o dinheiro e acaba, assim como a maior parte dos meus relacionamentos.
No entanto, vejo a televisão portuguesa e aborrecem-me os programas de “fazer rir”. Piores do que a minha antiga empregada que agora trabalha no café do shopping e diz sempre “queria café, já não quer?” e ri-se enquanto me pergunto como a deixei tomar conta da minha casa (talvez não devesse dizer que tive uma empregada, ou então, pelo menos, deveria tratá-la pelo nome. É Marta, a senhora chama-se Marta. pronto).
E lembro-me por exemplo do Daniel Sloss, que brincou com a situação da irmã tetraplégica. Um dia, num acidente que rebentou com a bagageira do carro, a mãe teve que pegar nela ao colo, imóvel e inactiva. Quando os mirones pensaram que ela estava morta, a mãe justificou-se com um “não, não, ela sempre foi assim”. E ai de quem criticasse esse tipo de piadas, retorquia Daniel Sloss, seria duvidar do amor que tinha pela sua irmã que era – acreditem – enorme.
Aprendi a ter alguma piada em casa. Os meus pais – péssimos pais – obrigaram-me a mim e à minha irmã a seguirmos um código de conduta que nos fizesse voar dali para fora. E assim fizemos. Podia dar aqui exemplos das vezes em que levitámos os nossos progenitores até eles baterem com a cabeça no chão, ou da vez em que imitámos o meu pai a dormir protegendo os tintins com a mão enquanto ressonava. Se me safou de uma adolescência triste? Sem dúvida. Ainda hoje, a minha irmã é a “minha pessoa” porque me salva, porque me mostra o lado ridículo de todo o meu drama. Se o humor me salva? Ah sim. Se me fez entender que toda a tragédia tem o seu lado leve? Sim. Se Daniel Sloss ao explicar o corpo inanimado da irmã aligeirou o seu sofrimento? Quase aposto que sim.
O humor não tem como função primordial educar. Não vale a pena achar que sim. Podem ver os “stand ups” do Totò que só vão ficar mais burros. Podem ver Gervais horas a fio que não vão acreditar em Deus, mas vão pensar duas vezes sobre os animais; coitado de quem vai a um show à espera de ser educado. Lembra-me os meus ex que diziam, apontando para a braguilha, “isto não se chupa sozinho”. O que educa são livros, filmes e música.
O humor tira o peso dos dias, só isso e isso é tudo. Torna os preconceitos em objectos de gozo sem sequer se pensar em ofender. O humor não tem de educar, o humor só tem de mostrar uma janela com Sol, se for necessário com pretos em campos de algodão, feministas de peitos ao léu porque outro desgraçado disse “olá” no metro a uma miúda e um gay a cantar “I’m coming out” de Diana Ross. Se, com isso, conseguem aprender o ridículo da situação, óptimo, foram educados. É um bónus. Não é o objectivo principal. Depende de vós. O humor mostra, com risos ou sorrisos, outra realidade que podem (ou não) aceitar.
O Mundo não gira à vossa volta, não se tornem vítimas porque um dos vossos primos de terceiro grau tem um irmão que tem um avô que trabalhou em campos de algodão. Vejo todos os dias alguém ofendido porque, algures, alguém, num stand up qualquer, disse qualquer coisa sobre algo que remotamente os identificou. A carência nesta era das redes sociais também ajuda a isso. Sinto-me tão ofendida porque falaram em brócolos e eu juro que, se não fossem tão caros, hoje tinha comprado um.
Não é contra vocês, são somente generalizações de preconceitos tornando-os ligeiros e ridículos. Sinto falta de quem brinque com coisas sérias. Os betinhos no horário nobre a puxarem a brasa à sardinha do seu partido, barba feita e frases ensaiadas? Sim. Se tenho limites? Todos nós os temos, cada um o seu. Se me irrita que gozem com idosos ou cães? Sim, mas eu gozo com ciclistas e tenho de aguentar um deles a dar-me lições de moral. Não é grave, é a vida, é humor. Faz falta. Um dia atropelo-vos a todos, é só acabar primeiro com os pretos, os gays e as feministas.
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