Em um sábado de 1964, o neurologista Oliver Sacks tomou uma pequena dose de anfetaminas, LSD e um “tiquinho” de maconha, olhou para uma parede branca em sua casa e disse “quero ver a cor anil agora, agora!”.
“E então”, ele escreveu na New Yorker, em 2012, “como se fosse derramada por um balde de tinta gigante, apareceu uma bola enorme e trêmula, no formato de uma pera, do mais puro anil. Luminosa e divina, ela me preencheu com êxtase: era a cor do céu, a cor, pensei […] me inclinei em direção a ela em uma espécie de torpor. Então, subitamente, ela desapareceu, deixando-me com um sentimento insuportável de perda e tristeza por seu desaparecimento. Mas eu me consolei: sim, o anil existe, e pode ser conjurado pelo cérebro.”
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Sacks só começou a usar drogas que alteram a mente depois dos 30 anos, mas, depois disso, o fez regularmente, experimentando uma grande variedade de alucinações que, ele afirma, proporcionaram a ele mais empatia com seus pacientes com transtornos cerebrais.
Há uma longa trajetória de acadêmicos e cientistas que experimentam alucinógenos não para, conforme a expressão “plugue-se, ligue-se, vá longe” [no original, “ tune in and drop out”], mas para levar o cérebro até seus limites e, assim como Sacks, ver do que ele é capaz. O neurologista escreveu que quando começou a tomar drogas, nossa compreensão sobre os neurotransmissores e a química que os põem em funcionamento (e, subsequentemente, a experiência e o comportamento) estava em seu início. O que suscitou perguntas como: “Por que o LSD é tão potente? Todos esses efeitos são explicáveis com a alteração da serotonina no cérebro?”.
Trilhamos um longo caminho na compreensão dos efeitos do LSD, especialmente por ter se tornado cada vez mais frequente nas pesquisas convencionais. Um estudo de 2016 utilizou três tipos de exames de imagem para mostrar que o LSD causa alterações na circulação sanguínea cerebral e na atividade elétrica, criando um cérebro muito mais conectado – o que significa que as várias regiões cerebrais têm mais comunicação entre si – do que os cérebros do grupo placebo. O artigo incluía imagens impressionantes apresentando cérebros sob efeito de LSD repletos de atividade e conexões em comparação com os cérebros sem a droga.
Contudo, ainda há muito a ser descoberto sobre a neurobiologia exata um cérebro sob o efeito de LSD, e o que podemos inferir a respeito do cérebro normal a partir disso. Um estudo recente publicado na Scientific Reports buscou fazer exatamente isso. Uma equipe internacional utilizou um novo tipo de exame de imagem, que utiliza o formato do cérebro para interpretar a atividade cerebral sob efeito do LSD. Os autores descobriram que, sob o LSD, o cérebro expande seu comportamento e suas conexões de maneiras até então desconhecidas por ele; a droga leva o cérebro ao limite do comportamento caótico, sem permitir que ela nos derrube.
As descobertas também apontam para potenciais explicações a respeito da utilidade dos alucinógenos no tratamento de condições mentais, como a depressão, e oferecem provas do princípio básico do caos e da ordem presente em todos os cérebros, independentemente de estar sob efeito do LSD.
Quando conversei com Selen Atasoy, autora principal do artigo e uma pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, ela me contou que antes de explicar qualquer coisa, primeiro precisamos dar um passo para trás. Descobri que o novo método que ela utiliza para ler o cérebro é uma em si uma viagem e que, para explicá-la, precisamos voltar no tempo para mais de 200 anos.
No fim do século 18, um cientista acústico alemão chamado Ernst Chladni polvilhou areia em placas de metal, e as fez vibrar com o arco de um violino ou violoncelo, assistindo à formação de padrões belos e complexos.
O som, em sua frequência particular, estava criando a chamada onda estacionária na placa de metal, com partes da placa movendo-se para cima e outras para baixo, de modo sincrônico. A areia afastou-se das áreas movimentadas para cima e para baixo, e caía e se acumulava nos limites das regiões que não se moviam.
As ondas estacionárias podem ter aparências bastante diferentes com a mudança na frequência, contudo, elas também podem ser alteradas com o ajuste do tamanho ou da forma do objeto sendo vibrado. De volta às placas de metal: se você bate um arco de violino em uma placa circular ou triangular, em vez de uma quadrada, os padrões das ondas estacionárias serão diferentes. Existe uma equação que os cientistas (em geral, os físicos) utilizam para predizer as ondas estacionárias, e calculam qual será seu formato, juntamente com as frequências associadas, levando em consideração o formato da superfície onde elas ocorrem.
A equação da onda estacionária também funciona com outras ocorrências sincrônicas na natureza. A equação é capaz de predizer os orbitais eletrônicos na mecânica quântica ou os padrões eletromagnéticos em uma grade iônica. Surpreendentemente, a equação da onda estacionária pode ser utilizada para compreender por que os animais – como leopardos, zebras e girafas – têm certos padrões de listras ou pontos na pele. Se você realizar o experimento das placas de metal de Chladni com placas cortadas no formato dos animais, você verá padrões iguais às “estampas” de pelagem de animais em frequências diferentes.
Ao reconhecer que as ondas estacionárias, ou harmônicas, como também são conhecidas, são universais na natureza, Atasoy decidiu aplicar essa equação ao formato do cérebro humano.
O Projeto Conectoma Humano utilizou uma técnica de imagem chamada tensor de difusão para criar um mapa estrutural do cérebro humano. Ele exibe quais regiões estão conectadas umas com as outras por meio das fibras de matéria banca do cérebro, as quais se estendem através de diferentes partes do corpo. O resultado, chamado de conectoma humano, é como um “mapa rodoviário” de todas as conexões do cérebro.
Existe uma relação entre o mapa e os padrões que os cientistas veem na ressonância magnética funcional (fMRI), que representa a atividade neuronal (se o conectoma for como as rodovias que conectam diferentes partes do córtex, a fMRI mostra o equivalente aos carros dirigindo nelas). Contudo, essa relação era até então desconhecida, afirma Atasoy. As pessoas tentavam compreender como a estrutura física do cérebro influenciou qual atividade poderia ocorrer, não somente quando a mente estava ativa, mas também em repouso. Dados de fMRI mostram que mesmo quando as pessoas não estão fazendo nada, ativamente, seus cérebros mostram atividade sincrônicas, o que significa que existem oscilações para cima e para baixo, as quais correspondem umas às outras através de regiões cerebrais distintas.
Esses estados de sincronia em repouso levaram Atasoy a pensar que poderia aplicar a equação harmônica ao cérebro. Basicamente, no lugar da placa de metal, ela e seus colaboradores utilizaram a estrutura física do funcionamento interno do cérebro humano (o conectoma) juntamente com os dados de ressonância magnética das camadas extrernas do córtex a fim de predizer as ondas estacionarias do cérebro.
“Nós resolvemos a mesma equação dos padrões harmônicos no conectoma humano em vez de outras formas geométricas, como placas de metal ou esferas, nas quais foram aplicadas anteriormente”, explicou Atasoy. “Então, quando olhamos para os dados da fMRI, em vez de nos concentrarmos nos locais onde há maior atividade, em comparação com onde há menos, nós podemos questionar: como será que esses padrões harmônicos, ou harmônicos conectomas, realmente compõem os dados da fMRI?”
Ao observar o formato do cérebro, Atasoy prevê quais padrões de ondas emergirão no córtex em frequências diferentes. Quando todos os padrões são observados em conjunto, eles compõem uma nova linguagem para descrever o cérebro, ela afirma, que inclui tanto os elementos espaciais quanto temporais da atividade neuronal. Os padrões nos dirão quais regiões dever estar sincronizadas umas com as outras em uma frequência particular, para que possamos descrever os dados da fMRI como uma combinação desses padrões. Para melhor explicar o que isso significa, Atasoy sugeriu uma analogia com a música.
“É como se o cérebro estivesse executando uma peça musical, ou como se fosse uma orquestra”, ela afirma. “Os dados da fMRI nos mostram os sons, e o que fazemos aqui é decompor o som nas notas musicais, tentando descobrir quais notas são combinadas em quais tempos específicos para criar os sons da fMRI que ‘ouvimos’.” Foi assim que examinaram a mente de 12 pessoas sob efeito do LSD, do placebo e do LSD enquanto ouviam música, na pesquisa; não somente observando o modo como a atividade cerebral é alterada, mas lendo sua atividade cerebral através das lentes da harmônicas conectomas cerebrais subjacentes. Isso embaralhou sua mente?
O que eles descobriram é que sob a influência do LSD, mais ondas harmônicas estavam contribuindo para a atividade cerebral, e sua força de ativação também estava aumentando. O cérebro estava basicamente ativando mais harmônicas simultaneamente, e em combinações novas.
Voltando à analogia musical, Atasoy afirma que é como a diferença entre um músico que executa uma peça acompanhando uma partitura, e outro que improvisa. Estudos descobriram que músicos usam mais notas durante improvisação em comparação com a execução memorizada. O cérebro, de modo semelhante, expande seu repertorio de um modo que não é aleatório; o resultado ainda é uma peça “musical” coerente, com o acesso a notas novas e escala em combinações que nunca foram ouvidas ou tocadas.
“Esse tipo de expansão não aleatória do repertório nos faz pensar que deve existir um tipo de reorganização na dinâmica cerebral”, afirma Atasoy.
Quando observaram mais atentamente a organização específica, eles descobriram uma explicação em potencial: evidências estatísticas de um princípio neurocientífico que já foi objeto de muita controvérsia, mas que vem ganhando apoio nas últimas décadas. A organização do cérebro apresentou assinaturas de algo chamado criticalidade, ou um conceito de atividade cerebral no qual nosso cérebro dança em uma linha tênue entre a ordem e o caos total, e que o LSD nos empurra na direção desse limite.
A criticalidade é uma teoria proposta inicialmente pelo físico dinamarquês Per Bak em 1999. O neurofisiologista Dante Chialvo, um dos pioneiros da criticalidade, afirma que as teorias foram inicialmente motivo de risada. “A ideia dominante era de que o cérebro é como um circuito”, afirma. “E como um circuito, ele sempre repete a mesma coisa.”
A premissa básica é que a criticalidade é um ponto crítico entre a ordem e o caos, quando esses dois extremos estão tenuamente em equilíbrio. Pense na transição entre o gelo e água líquida. Quando a temperatura começa a se alterar, nada acontece até você alcançar uma temperatura crítica em que o gelo começa a derreter. O gelo é uma estrutura molecular mais organizada em comparação à água; a criticalidade é o entre-lugar do gelo e da água líquida, quando ambas existem ao mesmo tempo. A natureza nos mostra que todas as fases da água podem estar presentes em uma única, Chialvo afirma: a chuva contida nas nuvens, os lagos congelados, o vapor em um dia úmido de verão etc. todas interdependentes no mesmo sistema contendo estrutura e flexibilidade, ordem e desordem.
Esse é o estado que Chialvo e seu colegas acreditam que o cérebro se encontre: sempre no limite do comportamento caótico, mas nunca cruzando-o totalmente. Eles pensavam que isso fazia sentido. O cérebro precisa ser flexível o suficiente para se adaptar, mas estruturado o suficiente para funcionar. “Se você estiver em um sistema rígido e muito organizado, é difícil sair dessa situação”, ele afirma. “Se você for completamente desorganizado, será difícil realizar algo simples, porque há desorganização.”
Levou 25 anos, mas um número cada vez maior de estudos tem emergido a fim de apoiar a criticalidade, começando com os achados apresentando evidências disso na atividade neuronal. Nossos neurônios não somente são disparados ao mesmo tempo – isso seria como o gelo. Eles também não são completamente desorganizados, como a água. Ao existir na linha tênue entre o caos, podemos ter a combinação de ambos. Há uma sincronia – neurônios que disparam conjuntamente – mas também há flexibilidade para comportamentos caóticos e individuais, se necessário.
“Quando apresento essa ideia, costumo utilizar o exemplo de um grupo de soldados que macha junto, o que seria uma grande sincronia”, Atasoy afirma. “E um grupo de crianças que brincam individualmente, sem nenhuma relação umas com as outras – isso seria o caos. Sem interação entre os membros. Então, imagine um grupo de adolescentes dançando, de modo sincrônico, mas com a possibilidade de realizar movimentos individuais diferenciados de vez em quando. Isso seria a criticalidade.”
Por meio de um indicador estatístico de criticalidade, Atasoy e sua equipe perceberam em seus dados, dos participantes sob feito de LSD, que o cérebro era empurrado cada vez mais para a criticalidade do que os participantes sob placebo. Eles acreditaram que a reorganização da dinâmica do cérebro vista por eles se tratava do cérebro sendo empurrado em direção ao caos, aproximando ainda mais a transição entre gelo e água, mais flexível, capaz de criar estados novos, utilizar mais harmônicas, e criar todas as experiencias sensoriais e emocionais que as pessoas relatam ter sob efeito do LSD.
“Ao tomar LSD, você pode assumir estados nunca visto antes”, Chialvo afirma. “Para falar, pensar, ver e criar, você precisa reunir grupos neuronais diferentes em todas as combinações possíveis. Dizemos que a maior quantidade de configurações é possível com a criticalidade e, nesse caso, é ainda mais possível sob o efeito do LSD. Fico muito feliz em ver resultados novos, mesmo não estando particularmente supreso. É necessário, e muito importante, demonstrá-los empiricamente.”
Retornando à metáfora da improvisação musical: é como ouvir as músicas de jazz experimental que usam uma variedade e combinação de notas desordenadas a ponto de praticamente não se parecerem mais com música. Esse é o cérebro sob efeito do LSD.
Atasoy afirma que além de aumentar nossa compreensão sobre o funcionamento do cérebro – seus padrões harmônicos, sua tendência em viver no limite – podemos também começar a entender por que o LSD e outros alucinógenos estão se apresentando como terapias úteis no tratamento de doenças mentais como a depressão.
Ela afirma que mais evidências são necessárias, mas que existem dados preliminares mostrando que um indivíduo deprimido pode ter determinadas dinâmicas cerebrais presas em um padrão do qual ele não consegue se desvencilhar. Ao fazer uso de psicodélicos, eles podem permitir maior flexibilidade e exploração de novos caminhos e acessos à padrões novos.
“Vimos que há uma diferença entre o cérebro psicodélico e o cérebro normal: o psicodélico parece alinhado com a criticalidade”, ela afirma. “Agora, se um distúrbio, como a depressão, afasta o cérebro da criticalidade prendendo-o em determinada harmônica, ou combinação de harmônicas, seria como um músico tocando a mesma música o tempo todo. Esse músico não pode improvisar porque ele ou ela está preso nesse padrão de notas. Se conseguirmos levar o cérebro para mais perto da criticalidade, o músico poderá utilizar todo o espectro de notas musicais, todo o repertório, o que poderá ajudar a dinâmica cerebral a não permanecer presa, a se libertar desse padrão. Isso também é, teoricamente, o que desejamos explorar no futuro.”
Oliver Sacks escreveu que, na época em que se qualificou para ser médico: “Eu sabia que queria ser neurologista para conhecer a consciência e o self corporificados no cérebro, e para compreender seus poderes impressionantes de percepção, imaginário, memória e alucinação”.
Explorar o cérebro com alucinógenos é importante não necessariamente para compreender o cérebro sob efeito de alucinógenos – mas para revelar a função e o potencial do cérebro em sua totalidade. O dr. M. Mitchell Waldrop escreveu em seu livro Complexity: The Emerging Science at the Edge of Order and Chaos que “O limite do caos é onde a vida encontra estabilidade suficiente para se sustentar e criatividade suficiente para merecer o nome de vida”.
É de uma natureza muito humilde e impressionante que a mesma equação utilizada para descrever por que a onda de um Stradivarius produz belos sons, ou explicar o formato das bolinhas de um leopardo, pode dizer quais são formas surgirão da superfície do cérebro. Além disso, mesmo sem o efeito do LSD, podemos viver regularmente no limite do caos – mas por meio de um equilíbrio notável, no limite da produção de tarefas cognitivas complexas do dia a dia. Isso, por si só, já é uma espécie de viagem.
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