“Olha o Selton Mello ali”, apontava Luís Schiavon em ladeira da Bela Vista, bairro central de São Paulo, numa tarde ensolarada. “Deixa eu dar um toque nele.”
Pá, pá, pá. Três rajadas de festim.
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O corpo do célebre ator voa longe e se choca em muro cinza grafitado.
“No pau dele, hahaha!”, comemora.
De mãos à cabeça, a multidão corre. Sirenes assobiam; executivos jogam suas malas ao chão. Uma viatura da Polícia Militar encosta e, rodopiante, atira a esmo. São instantes de puro caos.
Eufórico, Schiavon foge pela rua. “O Jô Soares, olha”, e mira a arma em um poligonal homem balofo, de terno azul e óculos de aro grosso que desce em sua direção.
Aperta o gatilho, mas o revólver trava. Pela lateral, uma integrante da gangue das velhinhas católicas o surpreende. Ela saca uma metranca da saia e o rechaça para o céu.
“morto!“, enuncia o canto direito da tela.
Na cadeira em frente ao computador, Schiavon bota a mão na testa e gargalha.
“Porra, essa velha de novo.”
*
Não é preciso dizer que estamos num cenário virtual. O jogo em questão é criação do próprio Schiavon. Trata-se de GTA São Paulo 2013, uma clássica adaptação — ou mod, se preferir — de GTA III que hoje é, para muitos entusiastas, uma relíquia dos títulos para PCs.
Mistura de sátira e divertida crítica social, o game de 2008 ganhou destaque por encabeçar novo tipo de expressão artística. Que diabos era aquilo, afinal? Seria jogo, animação, piada ou intervenção? Tudo isso e… Nada?
A criação era engenhosa. Schiavon se valeu da previsão do fim do mundo em 2012 e desenhou, com ajuda de software de modelagem 3D, uma São Paulo pós-apocalíptica. No mundo aberto, botou três ilhas: a capital, Praia Grande e Diadema, todas em ruínas. O enredo era tão simples quanto cômico: salvar a indústria nacional de pegadinhas.
A atmosfera do clássico da Rockstar mudou por completo. O realismo criminal deu lugar a um mundo surreal com grafites irônicos, outdoors pornôs, mensagens subliminares, clones de Paulo Maluf, missões escatológicas, seitas absurdas. Nem mesmo a física fazia sentido: alguns carros, com rodas de prédio, dobravam avenidas como calzones virtuais.
Para povoar o ambiente inóspito, o artista lançou mão de mashups. Usou personagens malucos, uns inventados por ele e outros conhecidos — como Bender, do Futurama — , e aliou a imitações de um dos seus principais alvos de escárnio: celebridades da TV.
“Não tenho nada contra o Selton Mello, essa galera”, explicou, com voz calma, no escritório de sua espaçosa casa na Zona Norte de São Paulo. “O problema é que ser artista virou desculpa para você ser filho da puta.”
Como faz notar, Schiavon não gosta do papo artístico. Aos 47 anos, de óculos, barbicha e moicano, ele está mais para integrante de banda punk oitentista — impressão não tão enganosa, visto que toca músicas do estilo num grupo amador com a esposa Andrea e amigos.
Sua carreira é, numa parte, anárquica; noutra, arredia à fama. Bom desenhista e dono de estilo ímpar e transgressor, Schiavon ganhou destaque na cena dos quadrinhos nas décadas passadas, mas nunca se sentiu confortável com o status. Mesmo incentivado por nomes consagrados, preferiu o anonimato. “Muito copiei Schiavon”, me disse o quadrinista Allan Sieber, por email. “Histórias como ‘Capitão Zipo’ e ‘A Liga da Vesga’ são clássicos. Um gênio subestimado ele.”
Sem a estabilidade que o sucesso poderia trazer, Schiavon passou por inúmeros hiatos produtivos. Nunca se sentiu parte de cena alguma. Numa de suas crises mais agudas, nos anos 2000, chegou a morar na rua. “Cheirava cola, dormia na praça. Foi tranquilo até, mas tive que voltar depois de uns dias”, conta. De acordo com ele, muitas das suas criações são resultados de visões que tinha nessa época — inclusive seus mods. “Voltei melhor, mais focado.”
Fã disperso de jogos, o paulistano teve contato com GTA nos anos 2000. Foi quase por acaso. Na época, trabalhava numa produtora como faz-tudo. “Servia café, fazia pontas horríveis no filmes, era terrível”, lembra, entre risadas explosivas. Nos intervalos, ligava o videogame do dono da casa, inseria CD e acendia o baseado. “Era um passatempo, pra relaxar”, diz.
Numa jogatina noturna, notou que carros sobrevoavam o cenário. Sem entender se era alucinação ou não, pesquisou o fenômeno no Google. Ali descobriu que era possível alterar os mapas. Baixou o software alemão e iniciou as alterações. Com noções básicas de programação, estudou a plataforma e, aos poucos, desenvolveu o projeto.
O lançamento do mod ocorreu numa feira de arte, no Rio Grande do Sul, e teve sucesso inesperado. De início, Schiavon fez 50 cópias em CD e as vendeu como água. O interesse, embalado por resenhas curiosas como a da Folha de S. Paulo, aumentou. Por um mês, chegou a comercializar mais de 200 cópias, cada uma a 20 reais.
No meio do sucesso, porém, Schiavon desistiu. Num golpe cego, apagou o blog do jogo e pediu que esquecessem o projeto. “Poucos entenderam o que era”, afirma, remexendo a cabeça, de cenho franzido. “Muita gente reclamou, o pessoal dos mods me xingou porque eu tava lucrando com aquilo. Aí o jogo meio que se perdeu.”
Hoje encontrar o game é missão quase impossível. Muita gente fala, busca, cita em rodas nerds, mas aquelas dezenas de cópias nunca mais apareceram. O único que tem um exemplar, ainda que escondido nas profundezas do PC, é o próprio Schiavon.
“O problema é que ser artista virou desculpa para você ser filho da puta”
Com a tela ligada, em pé, ele me mostrava as minúcias — desenhos, propagandas, músicas, roupas, tudo customizado por ele — do game.
Pá, pá, pá, atirava.
Enquanto carros pegavam fogo, pergunto a ele se GTA São Paulo 2013 ganhou importância por, mesmo sem querer, acertar a data da maior crise social que emergiu no país. Teria ele, em sua sede de distopia, previsto o caos?
“Ah, isso é besteira, aconteceu”, rebate, sem dar importância à previsão.
Schiavon revela que sua busca com GTA é, na verdade, contrária ao realismo. Quanto menos real, melhor. Ele detesta o detalhismo de jogos de tiro. “É uma hipocrisia, fazem o jogo cada vez mais real, com mais detalhes de armas e de mortes”, diz. “É ferramenta para matar gente.”
Uma das inspirações para seu mod foi o nada realístico seriado Turma do Gueto, da TV Record. “Eu amava, não tinha coisa mais… absurda. Os diálogos, as cenas, era tudo sem sentido”, conta, rindo. “Na época eu andava com o pessoal do rap e eles eram convidados para fazer uma participação e morrer. Ficavam putos. Mataram vários, hahaha.”
Pá, pá, pá.
“Durou duas temporadas, acho. Aí uma hora a galera começou a falar que não ia morrer mais, hahaha.”
Pá.
“morto!“
*
Quase nove anos depois do lançamento, Schiavon segue criando em cima da plataforma de GTA III. Sua simplicidade é, diz, ideal para criar novos mundos com base em desenhos.
No seu quarto, ao lado de sua inseparável cadela adotada, uma bulldog já idosa, o artista mostrou o que deve ser a continuação de GTA São Paulo 2013. Chamará Aécio Crimes, uma referência ao senador do PSDB acusado de corrupção. As piadas escondidas, claro, seguirão. Os gráficos, por sua vez, serão mais cartunescos.
“Tá vendo aquele quadro ali?”, pergunta, apontando para um desenho na parede, uma espécie de prédio cujas janelas formam cabeças disformes. “Penso em fazer mais para esse lado. Farei o cenário com esses traços, algo bem diferente.”
Outro mod que está em processo de criação é quase como uma HQ interativa. Feito em parceria com o amigo João Pinheiro, o jogo possui belo cenário em preto e branco desenhado pela dupla. Nesse título não há sarcasmo ou niilismo. Narra, na verdade, a luta de uma militante negra contra políticos envolvidos numa manobra ilegal. Schiavon, no entanto, crê que abandonará o projeto. “Chiarão por ter sido criado por dois caras brancos. É melhor evitar dor de cabeça”, diz o desenhista, cansado de tretas.
É também por não querer mais confusão que o paulistano evita os mods de GTA V. Nos últimos meses, a Take-Two Interactive, publisher do jogo, entrou em guerra com a popular ferramenta de modding OpenIV, de onde saem criações bizarras como baleias no trânsito de Los Santos. O motivo é que vários jogadores usam as edições de arquivos proprietários do game para bombar cheats na versão online do jogo. As criações insanas, então, deram lugar aos truques. “Prefiro a plataforma esquecida do GTA III“, diz Schiavon. “Exige menos do PC e permite customizar melhor os cenários. É mais simples.”
Na rua acidentada de sua casa, num final de tarde com o pôr-do-sol quase como o do mundo virtual, Schiavon falava da importância de usar a diversidade dos mods como ferramenta educativa. Passávamos por senhores encostados em bares, casas coloridas, muros altos pichados, cães bem nutridos. Com ar tranquilo, ele contava que, depois de mal sucedida experiência como evangélico, busca virar professor de games.
“Minha ideia é unir o conceito de Minecraft, onde as pessoas podem criar seus mundos, com os recursos GTA. Uma espécie de colméia”, disse. “Tem que falar a língua da molecada, usar ferramenta pra ensinar ciência e tudo mais.”
Ele então para no boteco, pede uma cachaça e, com humor, conclui: “Do contrário serão tudo uns artista filho da puta.”
Esta reportagem é parte da série GTA XX sobre os vinte anos de ‘Grande Theft Auto’. Todas as matérias podem ser vistas aqui.
Você pode baixar o ‘GTA São Paulo 2013’ por aqui antes que o Schiavon tire do ar.
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