Música

O Mundo Esquecido do Funk no Suriname

Em um cantinho escuro da internet está o galaxyeuropemusic.com — o lar online do Sumy. Se você lutar contra o passado dos gifs cintilantes e subtítulos incoerentes (“um planeta que Deus defende?”), poderá ser capaz de discernir que o dono do site um dia foi o centro do seu próprio universo musical. No Suriname, país onde o Sumy nasceu, o músico passou o início dos anos 80 produzindo discos comoventes de funk com infusão de calypso que eram tão rápidos e irresponsáveis quanto os melhores Western. E então, meio que do nada, junto com diversos outros artistas, Sumy e o movimento disco do Suriname desapareceram completamente.

De acordo com o Lonely Planet, a melhor forma de descrever o Suriname é como “uma convergência densa e quente de rios que vai de encontro com o ritmo animado da diversidade étnica”. A ideia de que um lugar vai de encontro com a diversidade étnica é o tipo de coisa que parece ter sido dita por um liberal democrata, mas em se tratando do Suriname, talvez seja verdade. O pequeno país tem um passado de encruzilhadas globais. Devido ao colonialismo holandês, seus escravos africanos e os subsequentes imigrantes javaneses, a população de aproximadamente 500 mil pessoas foi formada por povos de todos os continentes e culturas. Isso dá ao país uma história diversificada, mas não necessariamente feliz, criando um clima no qual a identidade reprimida.

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Via Discogs.

Principalmente nos anos 80, e não pela primeira vez na história da subordinação, a dança serviu como uma fuga. Durante um período especialmente tumultuado na história da nação — quando a escravidão ainda era legal e prolífica — uma dança chamada Kaseko surgiu. Criada pelos descendentes de escravos africanos foragidos, a dança era uma celebração da própria liberdade. A dança era arrebatadora e com um compasso acelerado impulsionado pelos pés batendo fervorosamente em ritmos sincopados. A palavra Kaseko foi concebida como uma subversão da expressão francesa ‘casser le cops’, que significa ‘quebre o corpo’. Não só uma celebração, mas também um ato de sacrifício. Kaseko cresceu ao longo do século 20, aparecendo no jazz, calypso e, eventualmente, na música eletrônica da América do Norte.

Pouco tempo depois, a mistura de estilos africanos e sul-americanos reuniu novas forças e vozes que haviam crescido com a Kaseko e começaram a construir novas vertentes de funk e soul que traçaram uma elevação das suas raízes híbridas. E foi aí que o Sumy surgiu. Apelidado desta forma como uma abreviação de ‘Surinam baby’, a carreira do músico começou em Paramaribo, capital do país. Primeiro ele começou a tocar música em instrumentos feitos por ele mesmo por hobby, mas em 1979 comprou seu primeiro orgão Hammond, um piano Rhodes e um sintetizador PPG. Com esses novos brinquedos, Sumy gravou seu primeiro single, “Going Insane”. Uma faixa bizarra de baixo orçamento, cuspindo e quebrando tudo com atitude e com uma letra tão soco na cara quanto completamente vaga (em sua maioria apenas palavras aleatórias).

Com esse primeiro single nas costas, aparentemente não havia nada que pudesse fazer com que o Sumy parasse de produzir alguns dos discos de funk mais incisivos e peculiares dos anos 80. Isso tudo veio à tona com o lançamento do seu disco de 1983, o Tryin’ to Survive. A tracklist por si só já é puro ouro, contando com faixas como “Bitch, We Danced a Lot”, “Goodthingman” e o primeiro single do álbum “Soul With Milk”. Eu já ouvi “Soul With Milk” várias vezes e sinto que não estou nem perto de entender exatamente onde o Sumy quer chegar. Talvez seja uma referência às suas tentativas de misturar música soul com nuances de outras influências, uma espécie de combustível espiritual. Independentemente disso, os nomes das faixas e a estética do álbum capturam perfeitamente o espírito da revolução de dança no Suriname. Acompanhado de muito rosa choque, vestindo um conjuntinho metalizado e apresentando uma protuberância significativa, a capa do disco do Sumy diz tudo. Diferente, carregado de sexualidade e completamente exuberante, Sumy estava liderando a Kaseko e saindo do anonimato.

Então por que será que você nunca ouviu falar dele? Basicamente na única entrevista já feita com o Sumy, ele menciona sua luta para ser levado a sério pelos músicos europeus, que o acharam arrogante, alegando que o Sumy dizia ter “nascido uma estrela e chegaria ao topo do mundo sem sair do Suriname”. Possivelmente essa luta para se tornar um artista plenamente realizado na Europa, ofuscada por um gênero dominado por artistas como Prince, era o motivo da birra. A batalha por reconhecimento já tinha se provado árdua o suficiente para os artistas afro-americanos, então é fácil prever que seria ainda mais difícil para os afro-surinameses. Dito isso, o Sumy fechou um contrato com a Philips para dois singles — “The Funky G (Only Comes Out at Night)” e “Funkin’ in Your Mind”. Graças a este sucesso ele pôde lançar o Tryin’ to Survive e depois fundou sua própria label.

Fotos via Discogs.

Talvez, no fim das contas, o trabalho do Sumy não fosse tão único assim. As músicas do Tryin’ to Survive são bizarras e brilhantes, mas ainda são claramente construídas em paralelo a cena americana disco e funk. Talvez sua ambição de rivalizar com os grandes nomes fez Sumy ser ofuscado por eles. Mas houve tentativas; Sumy e a sua banda Freaky Thangs fizeram shows em Amsterdam, mas além dessas performances seu airplay foi limitado. Em 1986, Sumy mudou seu nome para Krisnallah, alegando que fez isso porque “Sumy é um pseudônimo, um apelido, e o povo do Suriname fará uma estátua minha depois que eu morrer, porque terei provado que eles são capazes de criar uma estrela, um líder eterno, saca”.

No início deste ano, a gravadora holandesa Rush Hour relançou 500 cópias limitadas do seu clássico cult-funk Tryin’ to Survive. Este lançamento ocorreu dois anos depois da sua label parceira também holandesa Kindred Spirits ter lançado a compilação Surinam!, que contava com o Sumy ao lado de muitos de seus contemporâneos surinameses. O interesse é muito claro, já que no auge do revival da disco e funk que vem ganhando força ao longo dos últimos anos, todos querem ouvir algo inédito. Para os DJs não é mais seguro confiar totalmente em faixas da banda Chic, ou até mesmo naquela faixa consideravelmente obscura da Commodores que você achou por acaso no YouTube. O Sumy, pelo menos até agora, parece possuir um dom bastante raro: uma música funk gloriosa que as pessoas de fato nunca ouviram antes.

Por isso, é bom pensar que o Sumy não só é parte de um período de tempo, lugar e cultura estranhos, mas também que esses relançamentos poderiam marcar uma espécie de revival. É prova do poder dessas gravações o fato de que agora estão esbanjando reconhecimento depois de tantos anos do seu nascimento. Também é uma prova poderosa da universalidade da dance music. O Sumy descreve a si mesmo como “nascido de uma mistura de DNAs” e tendo “sangue chinês, indiano, europeu, africano e também uns 30% nativo americano”. A chance disso ser realmente verdade é bem pequena, assim como as chances do povo do Suriname construir uma estátua após a sua morte também são. Mas sua ambição e espírito idiossincrático falam muito sobre a forma que ele enxerga sua própria música. Em parte, o seu momento foi fugaz, mas em se tratando de dance music, a sua capacidade de inspirar e motivar é eterna e atravessa gerações. A história do Sumy e da música disco do Suriname pode nunca ser totalmente explicada, mas a visão que temos dela reflete uma expressão imprudente de um mundo verdadeiramente perdido na música.

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Tradução: Stefania Cannone