Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.
Nas últimas duas décadas, a programação original da HBO tornou-se sinónimo de ambição. No entanto, Westworld, pode muito bem ser um dos projectos mais audaciosos do canal até à data. A série [que estreou na madrugada de hoje no TV Séries, em simultâneo mundial] deriva do filme com o mesmo nome, realizado por Michael Crichton, em 1973, e centra-se na história de um gigantesco parque de diversões, em que o tema são os Westerns, as principais atracções são andróides vestidos a rigor e os visitantes podem fazer o que quiserem com eles – construir amizades, beber ou ir para a cama com eles… matá-los até.
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Os robots – ou como são denominados na série, “anfitriões” – são incapazes de causar ferimentos aos convidados [no entanto, e sem querer “spoilar” muito a coisa, pelo que a VICE viu na antestreia mundial para a imprensa e convidados, há vários indícios fortes de que a relação entre anfitriões e convidados será tudo menos neutral num futuro próximo].
Numa abordagem explícita e directa a temáticas profundas – entre as quais religião, tecnologia, moralidade, violência e natureza humana (e inumana) – ao mesmo tempo que constrói uma aura absolutamente cativante, Westworld consegue equilibrar de forma impressionante o peso das suas orientações filosóficas, com um interessante e divertido turbilhão de romance, crime e mistério. Se esta descrição te faz lembrar mais ou menos a fórmula de Lost, não estarás muito enganado. J. J. Abrams, criador e produtor executivo do êxito da ABC de meados dos anos 2000, é também produtor executivo de Westworld e partilha os créditos com os criadores e guionistas Jonathan Nolan (The Dark Knight, Interstellar, Person of Interest) e Lisa Joy (Pushing Daisies, Burn Notice).
Um dos muitos problemas que Lost enfrentou na sua altura foi a falta de planeamento no que dizia respeito a tornar sensata toda a mitologia à volta da série. É óbvio que Joy e Nolan estão a dar tudo para evitar armadilhas semelhantes. Nas últimas semanas antes da estreia têm surgido notícias que dão conta que a HBO tem planeadas para já umas impressionantes cinco temporadas de Westworld. Quando toquei no assunto numa recente conversa com os criadores, eles rirarm-se antes de clarificarem que a sua visão não é assim tão específica. “A forma mais rápida de garantir que não chegas ao número de temporadas que queres é, precisamente, avançares um número”, explica Nolan. E acrescenta: “Já faço isto há tempo suficiente para saber que é uma tolice assumir que consegues planear as coisas com tanta precisão – embora seja certo que, quando embarcas numa série como esta, tenhas de ter uma ideia do caminho que vais seguir”.
Criar uma série televisiva com o seu próprio universo, separado do material original também foi algo muito importante para Joy e Nolan. “O filme original deu-nos um trampolim para o mundo que queríamos criar. Quando embarcámos nisto passámos muito tempo a comprometermo-nos com o que queríamos fazer no episódio-piloto – para onde queríamos ir e como queríamos construir a mitologia. No final parecíamos loucos maníacos, porque colámos todas as ideias na parede da sala onde estávamos a trabalhar. Quando acabámos não havia uma janela à mostra, foi quando pensámos, ‘ok, se calhar está na altura de começarmos a escrever, para podermos tirar isto tudo da parede”, conta Joy.
VICE: A série lembra-me muito aqueles jogos RPG de consola. Pensaram nisso durante o processo criativo?
Jonathan Nolan: sim, claro, bastante. Eu costumava jogar muito antes de termos o nosso filho, que tem agora três anos.
Lisa Joy: E antes de termos uma série de televisão. [Risos]
Nolan: Muito do “storytelling” mais interessante de hoje em dia está nos videojogos, que era algo que não existia quando Michael Crichton fez o filme original. A indústria dos jogos é, hoje em dia, maior que o cinema e a televisão. Nunca trabalhei nessa área, mas temos amigos que trabalharam e sempre me fascinou o conceito de escrever uma história em que as acções dos protagonistas não são parte da história. Em jogos comoThe Elder Scrolls: Skyrim, Red Dead Redemption, ou em coisas produzidas pela Bioware, a moralidade é uma variável. Como é que escreves uma história em que a componente oral do herói existe num espectro? É um desafio fascinante.
Também me fascina a forma como personagens não jogáveis têm as suas próprias vidas. Em Skyrim, quando andas por uma localidade, não és necessariamente a pessoa mais importante que ali está. Estas personagens não jogáveis têm vidas que acontecem quer estejas lá, ou não. Ouvi, por exemplo, os comentários de Ken Levine sobre como foi construir Bioshock Infinite e o afecto que os “developers” e “designers” de jogos ganham pelas suas personagens. É uma diferença qualitativa quando comparada com as relações que os guionistas têm com as personagens que escrevem, porque as personagens dos jogos não recitam diálogos – fazem umas merdas e os jogadores interagem com eles. É uma relação que, na minha opinião, Chrichton antecipou até certo ponto, mas tornou-se muito mais complicada do que aquilo que ele poderia imaginar.
Alguns dos elementos de Inteligência Artificial explorados em Westworld parecem mais próximos da vida real do que aquilo que provavelmente estaremos dispostos a admitir. As potencialidades crescentes da IA são boas ou más para a sociedade?
Joy: Para mim a questão é se nós somos maus ou bons. A IA é, de alguma forma, um reflexo dos seus criadores. A forma como se comporta é padronizada pela programação e a forma como nos comportamos perante ela já tem a ver connosco. Com os nossos valores, bem como como com os nossos níveis de empatia e humanização perante ela. Historicamente, impressiona-me muito pouco a forma como os humanos agem com grupos que consideram ser “diferentes”. Acho que é uma falha na humanidade, esta falta de habilidade em relação à empatia. Mas também sou uma pessoa optimista – há muitas coisas boas que podem ser feitas com a IA e espero que seja esse o lado que vai prevalecer.
Nolan: Estamos mesmo à beira daquele momento desconfortável em que seremos de criar universos totalmente habitados por criaturas quase IA que nos vão fazer as vontades e satisfazer os apetites. Essa espécie de lua-de-mel poderá durar uns 18 meses até que um deles se torne ciente e queira sair. Acho sinceramente que essa será a história da nossa época.
As vossas experiências anteriores em televisão foram bastante diferentes daquilo que é Westworld.
Nolan: Quando eles dizem “Não é televisão, é HBO”, não estão a brincar. Em termos de alcance e de valores de produção, estamos a falar de algo entre uma série de televisão e uma série de cinema. Muitas das coisas que aprendemos ao longo dos anos foram úteis, mas muitas não foram. [Em Person of Interest] habituei-me muito a ser capaz de escrever, produzir, realizar e editar ao mesmo tempo, mas com esta série isso é impossível.
Joy: Para mim, poder contar uma história desta dimensão em conjunto foi algo completamente novo. Tudo o que fiz antes tinha uma certo grau de qualidade processual. Esta foi uma oportunidade maravilhosa de mergulhar a fundo na mitologia, nas personagens e no “storytelling”. Em Pushing Daisies, o criador da série, Brian Fuller, realçava sempre os visuais que estavam escritos e isso foi um hábito que ficou comigo. Não é apenas sobre as palavras que estás a escrever, é também um espectáculo visual. E Westworld é uma série muito visual.
Mesmo em tendo a reputação da HBO, Westworld é uma série bastante violenta e sexualmente explícita.
Nolan: Isto pode parecer de alguma forma hipócrita, mas tanto eu como a Lisa não estamos assim tão interessados em retratar violência sexual no ecrã. Obviamente, parte da série é sobre isso, mas não é algo que estejamos interessados em fetichizar. No entanto, é uma série sobre violência, e colocamos a questão: “Porque é que gostamos de violência em quase todas as nossas formas de entretenimento?”. A violência está na maior parte das histórias que gostamos de ver, mas não faz parte das coisqas que gostamos de fazer. Portanto, porque é [os convidados de Westworld] estão a pagar para saciarem esse apetite?
Joy: Temos uma criança pequena em casa e tento arranjar filmes e formas de entretenimento que não envolvam violência, mas é incrivelmente difícil, porque até nas histórias mais clássicas para crianças a violência e a perda estão presentes. Porque é que somos tão atraídos pela perda e pela violência? Acho que é uma espécie de remédio. Exploramos na ficção aquilo que desesperadamente tememos e evitamos na realidade. Capturar isto na ficção é a nossa forma de o evitarmos. Talvez seja por isso que as pessoas vão ao parque de Westworld. Não é necessariamente uma questão para a qual tenhamos resposta, mas é algo sobre que falámos.
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