O policial negro disfarçado que se infiltrou na Ku Klux Klan do Colorado

Hoje em dia, a Ku Klux Klan é principalmente uma piada sem graça, um punhado de racistas ignorantes que curtem se fantasiar e fazem protestos mal planejados. Porém, meio século atrás, o poder deles se estendia de costa a costa dos EUA; além disso, os membros mascarados do grupo de ódio realizavam atentados a bomba e assassinavam ativistas dos direitos civis no sul do país. Nos anos 70, conflitos internos e infiltrações do FBI enfraqueceram a Ku Klux Klan; mesmo assim, em 1979, membros da KKK mataram cinco manifestantes na Carolina do Norte.

Foi durante essa era que Ron Stallworth, o primeiro policial negro de Colorado Springs, se infiltrou na Ku Klux Klan local. Ele chegou às manchetes em 2006 quando tornou sua história pública: Stallworth explicou como tropeçou na Klan e conseguiu se tornar líder da facção local, fingindo sentimentos racistas pelo telefone e mandando um colega branco para as reuniões em vez dele. Ele acabou de lançar Black Klansman, um livro sobre essa experiência; então, achei que seria uma boa hora para conversar sobre como ele deu esse golpe saído do filme Banzé no Oeste (e que serviu de inspiração para o primeiro grande esquete do programa de TV de Dave Chappelle).

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VICE: Como você entrou para a força policial e quanto tempo você levou depois disso para perceber que trabalhar disfarçado era o que você queria fazer?
Ron Stallworth: Minha família se mudou de El Paso, Texas, para Colorado Springs no verão de 1972. Eu tinha um tio que era sargento do Exército em Fort Carson, [que fica] no Estado. Eu já tinha pensado em entrar para o departamento de polícia de El Paso, que tinha baixado a idade para se entrar na academia de polícia de 21 para 20 desde que você já tivesse 21 quando se formasse. Eu estava quase fazendo 20 anos, e foi aí que comecei a prestar atenção na carreira na força policial. Quando me tornei cadete, decidi imediatamente que queria ser um policial disfarçado, porque não gosto de uniformes. Você coloca o uniforme do mesmo jeito, marcha do mesmo jeito que os outros. Essa não é minha personalidade. Quando vi os policiais da [divisão de] narcóticos – caras de barba e cabelo comprido, parecendo hippies de São Francisco –, gostei da ideia de que aqueles caras eram policiais armados, com distintivos, na verdade. Achei a coisa mais legal: ser assim e ser um policial. Então, comecei a campanha para tentar ser um narc. Sempre que eu via o sargento da narcóticos, eu ficava perguntando sobre o trabalho que eles faziam, basicamente perguntando como me tornar um policial disfarçado. Logo, fiz campanha para ser um policial da narcóticos. Toda vez que o via, eu dizia: “Ei, Art, me deixa ser um narc!”. Essa se tornou minha rotina padrão. Isso virou uma piada interna entre nós. Quando eu o via no departamento, ele sempre ria e dizia: “Depois que você fizer 21 e usar uniforme por dois anos, me procure”.

Como você descreveria as relações de raça em Colorado Springs na época?
O programa de cadetes queria aumentar a contratação de minorias para o departamento, especialmente negros. Nesse sentido, o programa foi um fracasso – eles contrataram só dois negros, eu e uma mulher que se formou um ano depois de mim.

Eles me disseram diretamente que eu não seria bem recebido no departamento, porque ele era exclusivamente branco há muito tempo. Me falaram mais de uma vez na minha entrevista: “Você vai estar na mesma posição de Jackie Robinson. Você vai ser o único rosto negro no departamento. Vão te desafiar a cada oportunidade, e você vai estar num ambiente hostil. Seu desafio é se sair bem nesse ambiente sem contra-atacar”. Eles mencionaram Jackie Robinson duas ou três vezes. Eles me deram alguns cenários: “Como você se sentiria se um oficial chegasse e se referisse a você como crioulo? E se fosse um civil?”. Eles jogaram dois ou três cenários com “crioulo”, usando essa palavra. Era 1972. Esse era o ambiente em que eu estava para abrir caminho para as futuras gerações. Isso mudou alguma coisa, aliás? Posso te dizer que o gerente daquele departamento agora é negro, um amigo meu. Também temos uma tenente entre um total de 43 policiais negros.

Você conseguiu uma chance como policial disfarçado porque Stokley Carmichael, o líder dos Panteras Negras, estava vindo à cidade. O que você pode contar sobre esse episódio?
Eles estavam preocupados por causa da retórica bombástica dele: ele tinha a habilidade de levantar as massas usando palavras. Assim, me perguntaram se eu queria ir disfarçado ao clube noturno negro em que ele ia se apresentar. Eles sabiam que eu queria fazer trabalho disfarçado. Essa era minha oportunidade. Me deram essa missão especial, que eu aceitei na hora.

Isso é algo que todo mundo passa quando trabalha numa nova missão, especialmente quando você está tentando manter sua identidade em segredo. Isso foi muito natural para mim. Me vi pego em vários momentos pela retórica de Stokely – o que ele estava dizendo, como homem negro, fazia muito sentido para mim. Me vi pego pelo hype do que ele estava dizendo. Em vários momentos, quando todo mundo estava respondendo, gritando “É isso aí, irmão. Poder negro!”, me vi fisgado nisso também, gritando “Poder Negro!”. Mas então pensei: “Você devia estar trabalhando isso, idiota! Você está disfarçado”.

Mas você conseguiu entrar e sair sem ser descoberto?
Depois que Stokely terminou seu discurso, ele recebeu uma rodada de aplausos e uma fila se formou para cumprimentá-lo. Entrei na fila. Fazia uns sete anos que eu o tinha visto na TV, quando eu ainda estava no colégio. Ele era uma parte viva da história negra contemporânea, história americana para mim, e eu queria conhecê-lo. Então, entrei na fila e apertei a mão dele.

Perguntei a ele: “Irmão Stokely, você acha mesmo que vai acontecer uma guerra entre negros e brancos – e que pessoas vão morrer?” Ele se inclinou e falou: “Irmão, a guerra está vindo e vamos ter de matar gente branca”. Aí ele disse: “Obrigado, irmão”. E esse foi meu breve momento com um pedaço vivo da história negra.

Como você pegou a missão de vigiar a Ku Klux Klan no Colorado?
Fui designado para a seção de inteligência do meu departamento, e, na inteligência, você lida com uma variedade de questões: inteligência criminal, crime organizado, proteção VIP. Uma coisa que fazíamos diariamente era ler os jornais e ver se algo chamava nossa atenção. Vi um anúncio nos classificados que dizia Ku Klux Klan, com o número de uma caixa postal. Então, escrevi uma carta sob o disfarce de um racista branco: eu contei que odiava todos os crioulos, judeus, chicanos, chinas, carcamanos. Usei todos os termos derrogatórios para várias raças que eles costumavam usar. E eu disse que queria fazer algo sobre isso, que queria – para usar o termo da época – tomar o país de volta dessa gente. Mas cometi um erro crucial: assinei meu nome verdadeiro na carta. Para ser honesto com você, foi uma tremenda cagada. Assinei meu nome verdadeiro na carta em vez de algum nome de disfarce, mas aí coloquei o telefone de disfarce e a caixa postal que usávamos. Achei que a caixa postal do anúncio não era legítima, mas respondi só pra ter certeza. Achei que receberia um panfleto ou algo assim. Isso era o máximo que eu esperava.

O que aconteceu depois? Como eles te levaram para a organização?
Acho que, uma semana depois, recebi um telefonema na linha de disfarce no meu escritório. Atendi, e o cara do outro lado perguntou “Estou falando com Ron Stallworth?”. Sentei ali e pensei “Quem diabos está me ligando nessa linha?”. Aí ele explicou que era o organizador local da Ku Klux Klan. Foi assim que ele se chamou. Ele explicou que tinha recebido minha carta. E foi quando percebi: “Oh oh, você tem de pensar num plano rapidamente”.

Ele queria me conhecer e perguntou por que decidi me juntar à Klan. Eu falei de novo que odiava crioulos, judeus, cucarachas, chinas, carcamanos e chicanos, que eles estavam tomando o país e que eu queria tomá-lo de volta. A retórica que você tem hoje, eu estava usando naquela época. Aí acrescentei um detalhe picante: contei que minha irmã estava namorando um preto e que, toda vez que ele colocava suas mãos sujas no corpo branco dela, isso me deixava puto, e eu queria fazer algo para impedir isso no futuro. Ele respondeu dizendo “Você é exatamente o tipo de cara que estamos procurando!” e “Quando podemos nos encontrar?”.

E foi assim que essa investigação começou. Obviamente, eu não podia me encontrar com ele porque sou negro; logo, adiei nosso encontro por uma semana para me dar tempo de armar alguma coisa. Conversamos mais. Tentei fazê-lo me dizer qual era o tamanho do grupo deles. Ele não dizia, mas afirmou que eles eram relativamente pequenos. A maioria era de Fort Carson, Colorado. Ele me disse que tinha sido soldado em Fort Carson. Perguntei que atividades eles estavam planejando como grupo. Isso começou em 1978, essa conversa. Uma das coisas que eles estavam planejando era fazer um Natal para os pobres brancos, no qual eles entregariam mantimentos para famílias brancas pobres nas festas de final de ano. Ele falou que tudo que os negros faziam era tirar vantagem dos brancos enganando o sistema – previdência social e coisas assim. Que ninguém nunca pensava nos brancos pobres.

Ele te contou alguma atividade ilegal da Klan?
Tínhamos dois bares gays na cidade na época, e ele contou que queria “explodir os dois bares de bicha”. Isso ligou meu radar. Ele pediu minha descrição; assim, dei o perfil de um colega meu do escritório, um detetive da divisão de narcóticos que tinha mais ou menos minha altura e peso. Até descrevi como ele se vestia, porque eu sabia como ele vinha vestido trabalhar. Falei com o policial – no meu livro, me refiro a ele como Chuck ou Ron Stallworth branco. Esse foi o desafio que enfrentamos durante nossa conversa. Tudo que eu tinha dito no telefone, Chuck tinha de fingir que foi ele quem disse e levar isso para a fase seguinte. Por outro lado, eu tinha de fingir que era eu quem tinha estado na reunião cara a cara. Tínhamos que manter esse fluxo o tempo todo para que eles acreditassem que estavam falando com uma pessoa só. Essa foi a parte difícil porque a voz do Chuck era completamente diferente da minha.

Eles suspeitaram?
Só uma vez nos sete meses de investigação me perguntaram por que minha voz era diferente da do Chuck. Chuck tinha ido a uma reunião de planejamento, e, mais tarde naquele dia, pensei em algo que tinha sido dito na reunião. Então, peguei o telefone e liguei para o Ken, o organizador local. Comecei a falar com ele como se tivesse estado na reunião, mas ele afirmou: “Você parece diferente, qual o problema?”. Tossi algumas vezes e respondi que estava com sinusite. E ele disse: “Ah, tenho isso o tempo todo. Vou te dizer o que preciso que você faça”.

Você temeu pela sua segurança em algum momento?
A única vez que fiquei apreensivo em ser desmascarado foi em 10 de janeiro de 1979, quando David Duke (o grande mago) veio à cidade. Descrevo isso no meu livro como “o confronto da câmera”. Eu estava conversando com Duke pelo telefone periodicamente e estava conversando com um cavalheiro chamado Fred Wilkens: ele era o grande dragão do Colorado, o líder do Estado. Duke veio à cidade numa missão de recrutamento e falaria com a mídia impressa e a televisão. Na manhã da chegada dele, meu chefe da polícia me contatou e afirmou que queria que eu fosse o guarda-costas de David Duke em sua estadia na cidade. Ele estava recebendo ameaças de morte.

Seu comandante queria provocar Duke, por assim dizer, te designando para ser guarda-costas dele? Ou não era isso?
Não, eu era o único disponível na divisão de inteligência. Argumentei com meu chefe que tinha uma investigação em andamento e que me colocar em contato direto com David Duke e sua gente podia pôr tudo a perder, porque eles podiam reconhecer minha voz. Ele disse que estava disposto a correr esse risco, que não queria que nada acontecesse com Duke enquanto ele estivesse na cidade.

Assim, bati continência e fui à churrascaria onde Duke estava almoçando. Fred Wilkins e David Duke estavam lá, e havia um cavalheiro chamado Charles ou Chuck Howarth – ele era o chefe do grupo de extrema-direita Posse Comitatus. Eles eram uma grande pedra no sapato da polícia do Colorado. Ele foi o precursor do que se tornaria o movimento de milícia nos EUA. Me apresentei a David Duke, contei que era o detetive designado para ser seu guarda-costas por causa das ameaças feitas contra ele. Falei que não acreditava em sua filosofia e ideologia política, mas que era um profissional e faria todo o possível para que a estadia dele na cidade fosse segura. Ele me agradeceu muito cordialmente, muito graciosamente – apertou minha mão e até me deu o aperto de mão da Klan. Ele não sabia que eu tinha a informação de que aquele era o aperto de mão do grupo. Ele estava satisfeito, assim como o organizador local. Aí pedi uma foto com ele. Eu expliquei: “Sr. Duke, ninguém vai acreditar se eu disser que fui seu guarda-costas, você tiraria uma foto comigo?”. Ele respondeu “Claro!”, dei a câmera para o Chuck, o Ron Stallworth branco, e fiquei ao lado de David Duke e do grande dragão. Coloquei meu braço nos ombros deles e o grande dragão achou engraçado, mas David Duke se ofendeu. Ele empurrou meu braço e disse: “Desculpe, mas não posso ser visto numa foto com você assim”. Eu falei ao Chuck: “Quando você ouvir me dizer ‘três’, bata a foto”.

Eu contei “Um, dois, três” e coloquei minha mão de volta no ombro de David Duke, e Chuck tirou a foto. Nesse momento, David Duke correu e tentou agarrar a câmera da mão do Chuck. Eu fui um passo mais rápido que ele e, quando Duke tentou pegar a câmera da minha mão, olhei para ele e comentei: “Se você encostar em mim, prendo você por atacar um policial. Não faça isso”. Duke congelou e ficou me encarando. Toda a comitiva dele parou de sorrir e começou a me encarar. Pareceu uma eternidade, mas provavelmente foram só uns três ou cinco segundos. Mas, naquele momento, o grande mago da Ku Klux Klan soube o significado de um homem negro ter controle sobre ele. Eu era o pesadelo dele: um crioulo com um distintivo. Eu controlava o destino dele, e ele sabia disso.

Onde você acha que a Klan está hoje em dia?
A Ku Klux Klan nunca morreu nos EUA. Eles têm fluxos e refluxos, mas isso nunca morre realmente. Isso nunca mais foi forte como nos anos 20 – e nos anos 50 e 60, no auge do movimento pelos direitos civis. Acho que nunca será de novo – a sociedade mudou muito –, mas o simples fato de isso existir já devia ser uma preocupação para os EUA. Temos de estar sempre conscientes disso e prontos para combater isso em qualquer forma que eles tomarem.

Alguma vez você se viu simpatizando com algum dos klansmen com quem entrou em contato?
Não, eles eram todos cuzões. Não havia nenhuma simpatia. Meu único arrependimento é que nunca pude revelar quem eu era e o que estava fazendo para envergonhá-los e mostrar os idiotas que eles eram. Tive de manter o segredo. O prazer que tive foi que os fiz de trouxas e eles nunca souberam. Tenho uma satisfação nessa dualidade. Eles são um bando de racistas idiotas.

A reação ao seu livro te surpreendeu?
Me surpreendeu um pouco. Sei que a história fascina muita gente quando elas ouvem que eu, um cara negro, enganou o grande mago, a KKK e seus seguidores do jeito que fiz. Quando ouvi que isso estava se espalhando pelo mundo… fui entrevistado nesta manhã por uma rádio de Dublin, Irlanda. Tenho uma sobrinha-neta que é professora no Japão e ela disse que isso está em revistas e jornais em japonês. Isso é demais para mim.

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Tradução: Marina Schnoor