O que aprendi a publicar uma revista cultural online no País real

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O que aprendi a publicar uma revista cultural online no País real

Ascensão e queda da Preguiça Magazine. Aquela cena cultural feita durante quatro anos, à custa de um bando de intelectuais armados em espertos lá na província.

Ao escrever as legendas para o vídeo que se pode ver mais abaixo, vieram-me à memória vários episódios. Uma espécie de retalhos da vida de um freelancer no reino dos media. Oportunidades falhadas, quem as não tem? Pedras no caminho? Guardo todas, um dia faço uma instalação hipster numa tecelagem abandonada.

Esta coisa de ter vergonha de falhar, enerva. Assim como assim, prefiro o Beckett e falhar melhor. É tudo too big to fail, não é verdade? Mentira. No meio disto tudo houve um ovni que passou por Leiria, chamado Preguiça Magazine, que chegou, viu, venceu e morreu, sem problema nenhum. Depois de vários tiros no porta-aviões, afundou-se a si também. Mas a rir.

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A ideia inicial era, basicamente, fazer pirraça ao típico editor de jornal, naquele género de situação em que te dizem que a tua ideia não tem interesse nenhum, mas tu, no fundo, achas que tem. E provou-se que tinha. Ora toma lá, busca Tibi!, como se dizia há uns anos por aquelas bandas.

O primeiro impacto foi estrondoso, as pessoas em geral, jornais locais, entidades oficiais e oficiosas, associações culturais e outras igualmente criteriosas, acolheram o projecto com generosidade e de braços abertos.

Depois, com o andar das coisas, a malha foi-se apertando. Um actor isolado da comunidade jornaleira local deixou de achar piada, houve uma ou outra irritaçãozinha do poder local por posições públicas tomadas pela Preguiça, invejas e intrigas como nas novelas, um ou outro mal entendido via net e um desatino com a SPA. Ora, como todos sabemos, isso não é cadastro, é currículo.

Era a tempestade perfeita: de borla, num bom momento, com associações culturais a carburar, com uma linguagem simples e divertida, com lata, desbocados quando assim se justificava, com uma preocupação visual à séria, descentralizada, contemporânea, numa verdadeira alternativa geográfica e sempre na rambóia.

"Com que então a malta queria cultura? Mais ou menos. Desde o início que os números das visualizações não enganavam".

Na verdade, só se espantou quem não conhece o seu próprio País e pensa que opções estéticas, tipo "Somos Portugal" - que existem de facto e ainda bem - representam o resto do território. O que a Preguiça veio demonstrar é que há igualmente um outro País, fora dos grandes centros, que pulsa e que sempre foi contemporâneo, mesmo em ambientes mais adversos.

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Vai nisto, a realidade entra em acção e, logo no início, uma publicação sobre um museu que obteve um prémio importante internacional, gerou 70 visualizações, ao passo que a reportagem sobre um vinho rosé adamado de baixo custo, produziu quase 700 num só dia. Estava dado o mote e feito o aviso para o que aí vinha.

Com que então a malta queria cultura? Mais ou menos. Desde o início que os números das visualizações não enganavam e, internamente, sabia-se perfeitamente o que gerava tráfego e o que era um flop. Ainda assim, fazia-se o que a cada um dava na veneta, em perfeita anarquia. Tinha tudo para correr mal… e era tão bom.

A fama, as jóias, os carros, o álcool e a droga… é assim a vida de luxo dos editores de publicações online no País real. Foto por Rui Miguel Pedrosa

O slogan da Preguiça era: "Depois dizes que não há nada para fazer!". Aqui entre nós que ninguém nos ouve, essa era a versão oficial, pois a oficiosa sempre foi: "Não se passa nada, o caralho!". A intenção era chamar as pessoas a participarem mais nas actividades culturais. Dava-se uma mãozinha na divulgação e seríamos todos felizes para sempre. Deu merda, claro.

O impacto foi muito repentino. Como em todo o lado, há sempre aquela malta que diz a célebre frase do "Não se passa nada!". Pois bem, num fenómeno que deveria ser estudado por sociólogos (e primatólogos, quem sabe), em poucos meses, como se estivessem todos num filme do Harry Potter, essa frase passou à categoria de: a-dita-cuja-frase-que-não-deve-ser-pronunciada.

Isto é malta torcida, que tem um instinto de sobrevivência tramado e, passado pouco tempo, o mote já era: "Passa-se tudo ao mesmo tempo!". Assim mesmo, sem vergonha nem pudor absolutamente nenhuns, a malta reinventou-se e arranjou novas desculpas para não ir às cenas.

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Nunca foi crime trocar uma ida ao teatro, museu, concerto, por ficar enterrado numa poltrona fofinha, comprada em promoção na loja da JOM à beira da Estrada Nacional nº1 (true story). Mas esta nossa tradição Católica Apostólica Romana, do ai-meu-deus-o-que-é-que-as-pessoas-vão-pensar, não deixa que as coisas fiquem assim. Com jeitinho, a malta ainda acredita que mantém a face e que os outros pensam que isto é só gente culta.

"Não há dinheiro para usufruir de muita coisa, mas também é certo que há falta de interesse. Os casos de iliteracia são gritantes e a falta de exigência é tal que só por se ler um livro ou um jornal já se é quase considerado 'intelectual'".

Só que não. Uma pesquisa rápida pelos dados do Eurobarómetro, sobre a participação cultural em Portugal, indicava que, não sendo novidade, oficializou-se o declínio na maioria das práticas culturais. Por outras palavras, em termos genéricos e que englobam todas as artes, a malta não vai às cenas e a que vai é pouca.

Assim, cada vez que alguém diz que está tudo bem porque os festivais de música estão cheios, para além de um pinguim ficar com uma infecção urinária, já os podemos também mandar, com toda a legitimidade, à bardamerda!

Não há dinheiro para usufruir de muita coisa, mas também é certo que há falta de interesse. Os casos de iliteracia são gritantes e a falta de exigência é tal que, só por se ler um livro ou um jornal já se é quase considerado 'intelectual'. Credo. O problema da cultura em Portugal também é, portanto, cultural.

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Ao fim de pouco mais de um ano, a Preguiça Magazine ultrapassou um milhão de visualizações. Um número interessante para uns espevitadotes. Depois veio a fama, as jóias, os carros, a droga… não, esperem,  isto é de outro argumento. Na verdade houve malta do núcleo duro fundador que fez o segundo filho e até houve quem se casasse. Um horror, como podem imaginar.

O compromisso com o território e com as pessoas que nele habitam - como vem nos livros - foi cumprido à risca. Desde a mercearia do senhor Ferreira, mas que também vende instrumentos musicais e toca acordeão, (dias depois estava lá a TVI… coincidências…), até à aposta em bandas emergentes antes do resto do país as conhecerem, cabendo à Preguiça a sua quota parte de Júlio Isidro para algumas artes. E não só na música.

Toda a diversidade do projecto é indesmentível e a percepção não chega como argumento.  Daí resultou outro clássico do queixume: "Só promovem os amigos!". Foram 1410 artigos e outras incontáveis actividades extra-curriculares. Multipliquem lá isto, tendo em conta que tudo tinha gente dentro. Não podiam ser todos amigos, foram milhares de intervenientes, em mais de dois milhões e meio de visualizações só no site, entre mais de um milhão e 300 mil visitantes, fora o Facebook. É fazer as contas. Podem conferir, se quiserem, mas dá trabalho, não é?  É mais confortável mandar o bitaite habitual, mas fica aqui uma ajudinha.

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Festas na aldeia, corridas de carros de rolamentos, muitas tascas, o regresso aos mercados (mas aos dos legumes), permacultura, literatura, cinema, tecnologia, desporto, campanhas solidárias, moda, viagens, música, teatro, fotografia, design, pintura, artesanato, mecânica, afinadores de pianos, encadernadores, ilustração, artigos de opinião, parcerias diversas, organização de concertos punk hardcore, até a porra de uma Gala Literária a Preguiça apresentou na Marinha Grande…

Sim, houve muitas propostas, mas não se gostou de tudo (com direito a unlikes como consequência, outro clássico), ou então apenas ficaram perdidas nos milhares de mails, no meio da avalanche de sugestões, muitas delas publicidade mascarada de notícia (mais outro clássico intemporal). Já agora: também anda por aí muita coisa que não tem qualidade e estranho seria se assim não fosse.

Muitos que nas suas mais variadas profissões apregoam o mérito e a exigência, de repente, para a cultura querem que seja um saco de gatos, sem filtros, sem critério. Não pode ser. Já se disse que a questão da cultura é cultural e a maneira como se olha para estas questões é sintomática. Depois há o direito fundamental de não gostar… para ambas as partes.

A estupidez humana é uma coisa fascinante e houve momentos de um fascínio arrebatador. Uma pessoa estranha à casa veio-se queixar que a Preguiça era uma ideia dela (ainda não se lembrou da VICE, mas é aguardar), um leitor queixou-se após um artigo sobre uma praia, que a Preguiça lhe tinha descoberto o segredo e que assim não podia ser, um comerciante local achou que a Preguiça e outras associações tinham a obrigação de trabalhar de borla para lhe encher a casa… enfim…

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Apesar das honrosas excepções que fazem a regra, o interesse por coisas novas teve alguma resistência. Trocado por miúdos, ao invés da curiosidade, a validação dos seus próprios gostos mostrou ser mais eficaz, como um dicionário português / leiriense, ou o chamado "mercado da saudade", com estórias de bandas, bares ou lugares que já não existem, ou ainda aquele restaurante a que todos vão. As pessoas gostam de ler sobre coisas que já conhecem.

Com o tempo, também o Facebook mostrou ser uma faca de dois legumes, ou lá como se diz isso. A malta fazia like no face, mas depois não seguia para os artigos. Era o bota like e segue viagem, que isto é malta muito ocupada.  A certa altura era como ter um amor platónico, sem aquelo bafo quente na nuca.

"Aquilo dava uma trabalheira do caraças, as pessoas que o faziam tinham a sua vida. Faltava um pouco de  Libidium Fast no motor de arranque, como na publicidade do Futre".

Era giro, as pessoas gostavam, até ficaram com pena por aquilo acabar, mas, na verdade, o desinteresse foi sendo mútuo e sem direito a escandaleira, ou a uma coisa passiva-agressiva do género, "não és tu, sou eu". Ninguém acabou, acabou-se. E claro, era muito trabalho para pouco retorno. O mea culpa impõe-se: a qualidade desceu.

Como diz a outra: "Que fazer?" Aquilo dava uma trabalheira do caraças, as pessoas que o faziam tinham a sua vida. Faltava um pouco de Libidium Fast no motor de arranque, como na publicidade do Futre. Nada disto é novo. Jon Stewart (apesar deste ter tido qualidade até ao fim), nos últimos dias como apresentador do seu Daily Show, exorcizou no programa algo que já lhe deveria estar atravessado há muito tempo: "Entram à borla e fartam-se de criticar". "Já passaram 30 segundos, faz-me rir, rapaz-macaco!", exemplificou o apresentador. "Estão a borrifar-se para as nossas famílias, as nossas vidas. São cruéis. (…) "Isto parece o Coliseu", momento em que se levanta e abre os braços. "NÃO ESTÃO ENTRETIDOS?", grita. "Não querem saber. Querem-nos deixar sem sangue", diz com ironia.

Nisto, alguém do público grita: "We love you!". Jon Stewart, sempre bem disposto, responde: "Isso não é amor. Se fosse amor, traziam uma sopinha, perguntavam se estavas bem. Amor não é "faz mais programas! Entretém-me!", concluiu.

Assim, entre o Natal e a Passagem de Ano, numa reunião da Preguiça, a bicha morreu pacificamente e rodeada pelos seus entes queridos. A seguir a "preguiça magazine", o termo mais procurado de sempre no site foi "tatiana neves". Se não sabem quem é, procurem. Anda um gajo a fazer um magazine cultural para isto. Mas o que aprendi, isso ninguém me tira. Faria tudo outra vez… e em pior.