Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.
Rebeliões ultraviolentas no Norte do Brasil estão alimentando uma guerra entre facções num dos corredores de escoamento de cocaína mais lucrativos do mundo. O massacre de pelo menos 140 detentos este ano — muitos torturados, decapitados ou desmembrados por rivais — naturalmente virou notícia internacional. Mas como alguém que vem cobrindo a Amazônia durante seu último boom econômico, entendi que a carnificina dentro dos muros das prisões é consequência de uma crise mais insidiosa na maior floresta do mundo: a narcocorrupção que confunde os limites entre policiais e capangas, governadores e chefões do tráfico.
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A carnificina dentro dos muros das prisões é consequência da narcocorrupção que confunde os limites entre policiais e capangas, governadores e chefões do tráfico.
Há décadas, as prisões brasileiras são o centro nervoso do crime organizado, de onde os chefes das facções dirigem o tráfico, ordenam assassinatos e usam tortura e extorsão para dominar o sistema superlotado. No Dia de Ano Novo em Manaus, o grupo local Família do Norte (FDN) executou 56 detentos numa prisão privatizada. Os alvos da FDN eram membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), a organização criminosa mais poderosa do Brasil, com raízes em São Paulo. Quatro noites depois, numa prisão estadual de Roraima, membros do PCC mataram 31 detentos em represália. Tentando colocar a violência em quarentena, as autoridades de Manaus estão transferindo detentos de alto risco para outros presídios, mas quatro presos foram assassinados numa instalação alternativa dias depois, e rebeliões têm se espalhado por toda a região apesar da ofensiva de segurança.
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A turbulência carcerária recente é a mais violenta do Brasil desde que mais de 100 detentos foram mortos pela polícia militar no massacre do Carandiru em 1992, em São Paulo. Agora, fotos de celular tiradas dentro das prisões decrépitas dividem espaço no noticiário ao lado do escândalo da Lava Jato, que prendeu dezenas de políticos e empresários corruptos em instalações espaçosas e com ar-condicionado para criminosos de colarinho branco. Oficiais de segurança estão se reunindo em Brasília para tentar conter a tempestade, mas estão anos — provavelmente décadas — atrás da crise. No meio de 2016, enquanto o mundo assistia aos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, uma aliança frágil entre o PCC e o Comando Vermelho (CV) no Rio começou a desmoronar. No Norte, o Comando Vermelho formou sua própria aliança com a Família do Norte para extinguir a competição na Amazônia.
Cidade com dois milhões de habitantes e cercada por milhões de quilômetros quadrados de floresta tropical, Manaus é historicamente definida pelo isolamento, mas uma explosão de commodities na virada do século ajudou a financiar um desenvolvimento de bilhões na região. Em 2014, Manaus hospedou partidas da Copa do Mundo num centro urbano transformado por um influxo de capital. Ainda assim, os investimentos irregulares, visando atender o gosto de uma classe consumidora rarefeita, apenas aumentaram a desigualdade no local. Agora as elites se refestelam em condomínios fechados e restaurantes caros, enquanto milhares de trabalhadores vivem sem água encanada ou eletricidade nos igarapés da cidade.
Com um porto livre de impostos, Manaus é um famoso centro de fabricação de eletroeletrônicos, carros e motos, mas o Amazonas também é um canal lucrativo para a distribuição de narcóticos e armas de fogo para as maiores cidades do Brasil, além de se conectar com outros lugares graças as águas abertas para o Atlântico. A economia volátil torna as ruas propícias ao recrutamento por uma das facções que mais crescem no Brasil. Nos bairros pobres pela cidade, meninos ficam de guarda nas esquinas, com pochetes cheias de dinheiro e cocaína cortada e pesada em casas próximas. Nos bares chiques dos distritos ricos da cidade — a alguns a quarteirões das ruas mais pobres —, os clientes pedem por telefone, e a droga é entregue por carros que passam. Os homicídios estão além da capacidade de investigação da polícia e mesmo do espaço disponível em necrotérios da cidade, com corpos rotineiramente encontrados apodrecendo e ruas nos subúrbios, onde os postes de iluminação terminam na floresta.
E esse tráfico de drogas cobra seu preço. 34% dos detentos no sistema carcerário estadual estão presos por crimes relacionados a drogas. Muitos esperam por anos atrás das grades antes do julgamento. Em 2015 e 2016, visitei uma prisão para detentos aguardando julgamento, o Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT), uma das três instalações numa estrada ao norte dos limites da cidade, passando pelo recém-reformado aeroporto internacional, resorts de golf e terrenos onde urubus assistem à passagem de caminhões de madeira. Longe dos olhos, longe da mente — até que alguma coisa dê errado. O massacre do Ano Novo começou quando dezenas de detentos escaparam do IPAT para criar uma distração para camaradas condenados de outro complexo estrada acima.
O que vi durante minha visita ao IPAT foi uma instituição se agarrando à ilusão de segurança, uma equipe cansada seguindo uma rotina — verificação de identidade, revista, detectores de metal e raio-X — que todo mundo sabe que não é páreo para os chefes do crime ali dentro. Se os chefes querem uma arma, uma garota ou uma balança de precisão dentro da cela, eles dão um jeito de conseguir. Se querem alguém morto fora dos muros do presídio, basta fazer uma ligação.
Eu estava lá para investigar uma decapitação em julho de 2015 que desencadeou um surto de represálias em Manaus, no que ficaria conhecido como Final de Semana Sangrento. Mais de 38 homicídios em 72 horas, algumas vítimas baleadas por fações rivais, outras pela polícia em resposta à morte de um sargento. Para acabar com a violência, oficiais do governo visitaram uma das prisões estaduais para negociar a paz com líderes da FDN, oferecendo o domínio de blocos de celas em troca de um cessar-fogo nas ruas.
Negociações com o estado mostram a magnitude do poder da FDN, que controla o tráfico pelo Rio Solimões, que liga Manaus ao Peru e à Colômbia, dois dos maiores produtores de cocaína do mundo.
Em dezembro de 2015, fiz uma viagem de 36 horas de barco pelo Rio Solimões até Tabatinga, uma cidade calma na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. O que vi foi uma frente impossível da guerra às drogas — uma paisagem labiríntica de rios e culturas que torna difícil controlar a navegação na fronteira, além da própria pobreza e exploração dos trabalhadores que deformam as leis.
A fronteira entre Tabatinga e Leticia — capital da Amazônia Colombiana — é basicamente uma lombada na avenida, local onde um guarda observa o tráfego de motos, com um fuzil pendurado no ombro. Santa Rosa, no Peru, só é acessível de barco, um vilarejo do outro lado de um canal em que navios de cruzeiro europeus passam e turistas desembarcam para passeios na floresta. À luz do dia seria difícil imaginar, mas estimas-se que 300 toneladas de cocaína entram no Brasil por Tabatinga todo ano, segundo o agente da polícia federal que entrevistei ali em 2015.
Cocaína e matérias-primas usadas para processá-la cruzam a fronteira o ano todo, principalmente de barco. O tráfico aumenta durante a temporada de chuvas, quando os rios cheios abrem canais na floresta, permitindo que os traficantes contornem postos de controle no rio principal. Inspetores federais vistoriam barcos regularmente, mas como nas prisões da região, as buscas e apreensões no rio interceptam apenas uma pequena fração do contrabando. Grupos colombianos e peruanos são especialistas em disfarçar seus produtos de todas as formas imagináveis, de gel de cabelo até brinquedos de plástico e páginas de livros. Enquanto as grandes facções dominam a atenção das autoridades internacionais, pequenos traficantes tentam explorar o sistema soterrado. Na semana da minha visita, inspetores do aeroporto de Tabatinga — que tem um voo por dia — prenderam uma mulher usando um cinto de tijolos de cocaína embaixo da blusa. Parecia uma tentativa absurda de contrabando, mas se alguns tijolos não passam por esse caminho, não haveria por que tentar.
“O desenvolvimento de infraestrutura em Manaus ajudou a Família do Norte tanto quanto beneficiou corporações internacionais, ajudando negócios legais e ilícitos a encontrar a demanda no crescente mercado doméstico brasileiro para bens duráveis, narcóticos e armas de fogo.”
O flagelo do narcotráfico devastou as comunidades indígenas do Alto Solimões, que sofrem com taxas desproporcionais de vício, violência doméstica e suicídio. Facções extorquem indígenas para passarem seus carregamentos; as autoridades recrutam agentes indígenas para agir disfarçados; em Tabatinga e Leticia, indígenas que vivem no meio urbano perambulam pelos becos à noite, bebendo e comendo manteiga de cacau.
“As facções constroem casas em cima da fronteira”, me disse um oficial da Polícia Nacional Colombiana em abril de 2016, em Leticia. “Se invadimos a casa, eles simplesmente fogem pelo outro lado. Não podemos dar um tiro sem ter forças brasileiras ou peruanas conosco.” Cooperação internacional tem seus limites quando soberania é a prioridade — e quando o comércio de drogas complica as políticas regionais. Segundo a promotoria federal brasileira, a FDN é apoiada pelas FARC da Colômbia, que vende à facção drogas, fuzis, granadas e outras ferramentas do negócio.
Uma investigação internacional de 2015 sobre a FDN descobriu que as operações do grupo estão se tornando mais sofisticadas. Equipes jurídicas. Transferências bancárias internacionais. Esforços financeiros para influenciar políticos na capital, onde o dinheiro de verdade está. Enquanto isso, o desenvolvimento de infraestrutura em Manaus ajudou a Família do Norte tanto quanto beneficiou corporações internacionais, ajudando negócios legais e ilícitos a encontrar a demanda no crescente mercado doméstico brasileiro para bens duráveis, narcóticos e armas de fogo.
Muitos dos moradores de Manaus passaram de ter esporadicamente acesso à eletricidade a membros de Instagram em menos de uma década. Brayan Mota, um dos fugitivos do IPAT, postou uma selfie no Dia de Ano Novo que mostrava o detento fugitivo e amigos na floresta. Em questão de horas, eles se tornaram heróis da internet, photoshopados num cartaz de Um Sonho de Liberdade. Uma semana depois, o garoto era o herói de um joguinho de celular. Durante o massacre, detentos usaram fotos e vídeos de celular, que circularam depois nas redes sociais e na mídia do mundo todo, para fazer o que alguns analistas descreveram como uma campanha de propaganda não muito diferente das táticas do ISIS para espalhar medo e intimidação.
Dias depois da carnificina em Manaus, membros do PCC pareciam condenar o ataque: “Nosso objetivo sempre foi lutar contra o Estado e não contra nossos irmãos, mesmo de outras organizações”, escreveu um suposto membro Alto Conselho do PCC na região do Norte, pedindo doações a organizações parceiras para as famílias das vítimas. “Saibam que vocês declararam guerra não só ao PCC, mas a todos que lutam contra o Estado corrupto do Brasil.”
Autoridades brasileiras responderam com suas próprias condenações. “Não havia nenhum santo ali”, disse o governador do Amazonas José Melo sobre as vítimas da FDN. “[Os mortos] eram assassinos e estupradores.”
Mas a mesma investigação federal que revelou que o governo do Amazonas estava negociando a paz nas prisões, também revelou que políticos do estado trocaram favores por votos. Uma gravação teria capturado o subsecretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Major Carliomar Barros Brandão, assegurando proteção jurídica a uma das facções em troca de votos: “Ninguém vai tocar em vocês”, ele teria dito ao líder da FDN Roberto Fernandes Barbosa.
Foi uma chance para a FDN exercitar seu novo músculo político: “Ele vai ter mais de 100 mil votos”, disse Barbosa, se gabando do domínio de certos bairros da cidade. “Imagine cada detento que tem família aqui: se dermos uma ordem, eles vão obedecer.”
Chris Feliciano Arnold é o autor de “ The Third Bank of the River: Blood, Power and Survival in the Twenty-First Century Amazon “, que será lançado em breve pela Picador USA.
Tradução: Marina Schnoor.