O que trabalhar numa revista vendida por moradores de rua me ensinou sobre jornalismo

Matéria original da VICE Reino Unido .

Este ano, a Big Issue comemorou seu 25º aniversário – um feito e tanto para uma revista que nasceu em 1991 como uma publicação mensal feita às pressas, com a ideia peculiar de ser vendida somente por moradores de rua.

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Desde que foi concebida pelo ex-sem-teto Sir John Bird, que admite que provavelmente é o primeiro ladrão de loja e carros a sentar na Câmara dos Lordes, a revista ajudou centenas de vendedores a saírem das ruas e conseguir uma vida melhor.

Na era atual do jornalismo fábrica de salsicha, e da dominância do mercado dos jornais impressos por tabloides perniciosos de direita e seus cães de caça de notícias sensacionalistas, a história dessa publicação incrível precisa ser contada. O conto de como, no auge, com um orçamento apertado, a revista se tornou uma janela para a alma britânica ensina uma lição importante sobre a mídia estropiada de hoje.

Admito que não sou um observador imparcial. Dois anos depois de trabalhar para jornais locais no lado mais sujo do noroeste de Londres, entrei para a equipe de notícias da Big Issue em 1997 e fiquei até 2002. Meu trabalho era desenterrar notícias que seriam notadas pelos jornais nacionais e conseguir boa publicidade para a revista no processo.

Éramos azarões jornalísticos. No auge, tínhamos 12 jornalistas, quando um jornal nacional geralmente tem centenas. Nosso orçamento era mínimo, e o salário não era grande coisa. Quem via de fora achava que também éramos moradores de rua e que trabalhávamos de graça. Ou talvez fosse por causa de como a gente se vestia na época.

Mas desde de seu nascimento, a publicação é uma aula para a grande mídia, na época e agora, sobre como fazer jornalismo com uma agenda juntando pessoas apaixonadas pela profissão com financiamento mínimo. Nos primórdios, a revista era feita principalmente com uma máquina de fax e uma linha de telefone fixo, já que e-mails só entraram na redação da Big Issue em 2000.

A revista era um diamante bruto que, com apoio incondicional do editor de longa data Mattew Collin, expôs o New Labor britânico como nenhuma outra publicação. Nossos jornalistas saíam do caminho mais trilhado para ouvir o som das ruas – para dar voz a quem não tinha, e lutar por aqueles para quem os outros jornais não davam a mínima.

Não era muito difícil sentir uma ligação com os desprivilegiados. Acho que não existiram muitas revistas com um primeiro andar cheio de vendedores sem-teto, comendo pão com ovo e buscando revistas novas para vender.

Além disso, infelizmente para alguns dos nossos vendedores que estavam tentando escapar dos vícios, nosso escritório ficava no meio da via mais movimentada de venda de crack e heroína da Inglaterra, em King Cross. O lugar também era um distrito da luz vermelha. Buscar um café de manhã significava cruzar com uma variedade de traficantes oferecendo “do marrom”, “do branco”, e trabalhadores sexuais oferecendo “boquete por 1 libra” – tudo antes das 10 da manhã. As entranhas do belo novo projeto do New Labor se esfregavam na nossa cara todos os dias.

Para nós era fácil se envolver no antigo ritual jornalístico de falar cara a cara com pessoas reais, em vez de ficar mofando numa cadeira vagabunda de escritório. Toda semana, por exemplo, para a coluna Diário da Rua, eu entrevistava um vendedor diferente da Big Issue sobre sua vida. O que mais me surpreendia era que cada um deles, por trás do stress e do caos, era uma pessoa simpática com uma história fascinante e geralmente trágica para contar. Pessoalmente, trabalhar nisso e nas matérias sobre crimes e drogas em que me especializei meu deu uma visão ampla de um mundo escondido e da melhor maneira de conseguir informação – direto da sarjeta.

Esse não era um jornalismo da torre de marfim, e era sempre divertido ouvir repórteres dos grandes jornais falarem sobre comprar drogas “disfarçados”, enquanto os traficantes e trabalhadores sexuais zoavam com eles porque conseguiam identificar esses caras a um quilômetro de distância.

Logo depois de me juntar à revista, dormi ao lado dos sem-teto durante uma série de ataques em que alguém estava colocando fogo em moradores de rua, para saber como eles estavam tentando se proteger. Aconteceu que acabei levando um soco na cabeça, mas foi porque um cara sem-teto achou que eu estava conversando com a namorada dele, o que eu não estava fazendo.

A capa da primeira edição.

Quando o movimento antiglobalização surgiu sobre a Inglaterra no final dos anos 90, causando caos e mostrando que estávamos sendo enrolados pelas grandes corporações, a Big Issue estava no meio da zona. Nossos jornalistas estavam incorporados ao movimento que desencadeou as maiores revoltas da era moderna contra o governo da cidade. Conseguimos entrar numa das reuniões mais secretas da elite, o grupo Bildergerg. E sabíamos onde o Banksy ia fazer um novo trabalho porque ele nos contava. A Big Issue foi a primeira a escrever sobre plantações geneticamente modificadas.

“Íamos muito além da nossa liga quando se tratava de expor grandes companhias e organizações que destratavam as pessoas”, diz Jane Cassidy, ex-editora de notícias da Big Issue. “Ganhamos nossa reputação assumindo investigações que a grande mídia não tinha coragem de publicar. Isso significava que informantes sempre entravam em contato conosco trazendo furos, que depois eram abordados pela mídia nacional.”

O furo mais famoso da Big Issue talvez tenha sido quando o comandante da polícia de Lamberth, Brian Paddick, declarou sua afeição pelo anarquismo para nós. Claro, não levou muito tempo para a imprensa de direita abordar a questão, mas esse gesto corajoso abriu a porta para que outros membros da força policial se expressassem mais honestamente.

Nossas investigações e campanhas ganharam prêmios, mudaram políticas do governo e expuseram abortos da justiça, do esquema humilhante dos vouches para requerentes de asilo até as alas psiquiátricas mistas de hospitais locais e sepulturas de indigentes. “Do Berço ao Túmulo”, uma matéria em seis partes, teve jornalistas viajando por toda a Inglaterra para investigar por que tantas pessoas ficavam presas na pobreza do primeiro até o último suspiro.

“A Big Issue tinha uma equipe de notícias com liberdade e tempo para investigar histórias abaixo do radar dos jornalistas enfurnados no Canary Wharf”, diz Gibby Zobel, ex-editor de notícias da Big Issue. “Provamos que não era preciso grandes investimentos para conseguir matérias de interesse nacional.”

“Enquanto o mainstream vinha correndo quando ouvia tiros, revirávamos a vasta área que eles negligenciavam. Não confiávamos nos comunicados de imprensa ou mesmo na internet. Era jornalismo honesto com consciência, fazer o trabalho de soldado raso para minerar fontes para matérias. Hoje há pouquíssimos soldados rasos, então a imprensa se tornou uma câmera de eco online de si mesma.”

Hoje, a revista continua produzindo conteúdo original. Mas desde 2002, quando perdeu grande parte dos seus jornalistas por razões econômicas, ela não tem conseguido colocar tanto empenho nas histórias investigativas que fizeram seu nome. Mas o mesmo pode ser dito da maioria dos jornais.

A diáspora da Big Issue está por toda parte, ainda farejando, cavando e lutando. Seus jornalistas geralmente continuaram no mesmo caminho, revirando pedras que de outra forma não seriam reviradas, e se tornando nomes conhecidos da área.

Tragicamente, o mais talentoso ex-membro da Big Issue não está mais entre nós. Tim Hetherington, que trabalhou na publicação no final dos anos 90, antes de se tornar um renomado fotógrafo de guerra, morreu numa explosão de morteiro na Líbia em 2011. Isso foi dois meses depois que ele participou do Oscar, onde seu filme Restrepo, sobre a vida de um esquadrão nas linhas de frente do Afeganistão, foi indicado ao prêmio de Melhor Documentário.

Mas o DNA da Big Issue continua circulando, em espírito e pessoalmente. A publicação com certeza influenciou a VICE, para quem escrevo hoje. Não é coincidência, por exemplo, que o copresidente da VICE Andrew Creighton tenha trabalhado vendendo espaço de publicidade na Big Issue no meio dos anos 90. Ele teve um papel importante em transformar a VICE de uma revista de skate canadense numa organização de mídia gigante com consciência social.

Agora, na Inglaterra do Brexit, onde o fosso entre ricos e pobres está se alargando numa taxa letal, precisamos cada vez mais de jornalismo independente que não tenha medo de ficar do lado das subclasses e bodes expiatórios. E não tem muita gente fazendo isso.

John Bird aproveitou o aniversário da revista para prometer que vai usar sua cadeira na Câmara dos Lordes para lutar contra a negligência infantil – que ele vê como um dos principais motores da crise de pobreza na Grã-Bretanha. Mas o aniversário também deve ser um lembrete de que sem um jornalismo que faça as grandes corporações e o governo prestarem contas, aqueles na Inglaterra que mais precisam de ajuda estarão gritando no escuro.

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Tradução: Marina Schnoor 

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