O Ricardo Lísias Quer Enganar Você

– Você escreveu aquele romance, seu filho da puta, canalha!

A recepção à publicação de Divórcio, último romance do paulistano Ricardo Lísias, nem sempre foi cordial. O insulto no começo do texto, conta o autor, foi proferido aos berros por um corredor que passou pelo escritor no parque Ibirapuera em 2013, um mês depois de lançado o livro.

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Divórcio incomodou demais os establishments todos, mas teve uma recepção crítica muito boa”, diz Lísias, que foi muitas vezes hostilizado depois da publicação do romance. Proposital, a confusão entre o real e a ficção continua sendo uma marca da sua escrita. Para ele, inclusive, é tudo verdade. “As pessoas precisam dar uma chance para a arte. É impressionante, elas acreditam em tudo”, diz o escritor.

Com a proposta de desafiar o leitor, Lísias lançou os fascículos de Delegado Tobias, além dos textos de Concentração e Outros Contos. E agora, nesta terça (7) — data que também marca o aniversário de 40 anos do autor —, será distribuído gratuitamente Fisiologia da Idade, um conto lançado pela editora virtual E-Galáxia.

Você pode baixar o conto aqui.

No texto, o personagem principal mais uma vez se chama Ricardo Lísias e o autor se propõe narrar o que teria sido sua juventude. Numa narrativa circular, marcada por referências a histórias em quadrinho e na qual faltam (propositalmente) palavras, o autor confunde o leitor com as questões que levanta no texto: a qualidade da literatura contemporânea brasileira, as manifestações que se espalharam pelo país e a influência de Proust em seu texto são algumas delas. Em busca de respostas, reproduzi na entrevista abaixo algumas das questões que achei mais emblemáticas em Fisiologia da Idade. Acompanhe.


Fotos por Felipe Larozza

VICE: Li em uma entrevista antiga que você imaginava que Fisiologia da Idade viraria seu próximo romance. É isso mesmo?
Ricardo Lísias:
Não, não. Eu falei…? Não, a Fisiologia da Idade está encerrada. Vou começar a escrever um novo romance em agosto, mas é [sobre] outra coisa.

No próprio conto você antecipa a ideia de que deseja escrever outro conto neste ano sob a ótica homossexual. Dá pra antecipar o que você pretende fazer?
Mas eu não sei se pretendo. Aquilo faz parte do texto. Achei uma ideia engraçada. Pode ser que eu faça. Como pretendo fazer um romance, mas às vezes no meio do processo cansa, então paro para fazer um conto pra ter um respiro, então talvez eu faça esse, acho interessante a ideia.

Qual a ideia?
Há uns anos, fui convidado por uma revista gay — pra falar a verdade, nem sei se ela existe ainda — que me fez uma proposta na qual eu deveria ir a um lugar assim, que acontece de tudo lá dentro. Quer dizer, se você não quiser não acontece nada. Pelo que [foi assim que] eu entendi: só vão homens, mas pelo que entendi se você ficar encostado, pode ficar só olhando. Era a ótica de um heterossexual sobre aquele mundo. Me ofereceram um valor acima da média do que se paga, mas eu recusei, achei que não tinha nada a ver. Mas eu fiquei com isso na cabeça, e a minha ideia era fazer um guia das saunas gays de São Paulo para turista. Mas ainda não sei. Arrumei informantes que podem me descrever todo o processo. Mas eu vou fazer sob outra ótica. Inventando que participei, construindo minhas experiências. Depende do cansaço do romance.

Agora parece que está claro [que eu incomodo]. Eu faço de propósito. Não fazia de propósito antes, mas agora faço.

Gostaria de fazer uma pergunta que você faz ao leitor em Fisiologia da Idade: “Como o Brasil chegou a um número tão grande de romances que não incomodam ninguém?”
É uma pergunta boa, eu também não sei. [risos] Eu não releio muito [o texto] para não ficar incomodando os outros pedindo para mudar. É preciso enxergar que há várias exceções. No momento atual, tirando estas exceções, a literatura brasileira não parece resistir ao que é o Brasil. O Brasil não parece gostar de conflitos, eles acontecem, mas rapidamente são neutralizados. Me parece que a literatura não está resistindo a isso [aos conflitos] neste momento. Já resistiu durante muito tempo, é possível que retorne. A literatura brasileira não está em choque com o Brasil atualmente. Temos pessoas de resistência, mas não é um movimento. A literatura brasileira parece ser a favor.

Mas há coisas que o cara escreve no texto que nem mesmo ele acredita — muito embora, nessa eu acredite.

Mas quem são esses nomes que incomodam na literatura brasileira? Você me parece ser um deles?
Agora parece que está claro [que eu incomodo]. Eu faço de propósito. Não fazia de propósito antes, mas agora faço. Não imaginava que podia incomodar tanto. Tem uma escritora chamada Elvira Vigna, que é uma escritora muito efetiva, incômoda, uma escritora muito potente. O Nuno Ramos… Existem pessoas de resistência. Existem lugares que resistem, não existe um conjunto. Talvez seja o momento atual do Brasil. O Sérgio Santana é um desses escritores, havia a Hilda Hilst. Mas como movimento geral, [o que se vê] é um movimento de celebração, aceitação do Brasil. É o que me parece.

A literatura contemporânea brasileira é acomodada? Por quê?
Como um conjunto, é — me parece que sim. Há várias explicações diferentes possíveis, uma delas é a questão de mercado. A profissionalização está chegando, isso faz com que os aspectos do marketing, num primeiro momento, sejam muito fortes. A nova profissionalização, o mercado crescendo, isso faz que as pessoas recusem os conflitos, o incômodo, e escrevam coisas mais ou menos neutras.

Você diria que esses autores não se posicionam?
[Há uma tendência em] neutralizar as coisas. Há um momento no texto em [é dito que] que o movimento negro arrumou um conflito com uma peça. E é uma coisa tão espantosa. Depois dessa enorme confusão, me parece que as pessoas do movimento negro estavam falando coisas muito razoáveis, difíceis de contestar. E agora vão trazer uma peça para o Brasil que eu descobri que em Londres e Paris foi rechaçada. É uma peça que reduz os negros a uma indignidade. E mesmo depois do que aconteceu aqui, eles resolveram trazer a peça para o Brasil. Quer dizer, eles não aprendem? Aquela enorme confusão não foi digerida e vão trazer outra pior ainda?

Acusaram de censura, mas quem tirou a peça de cartaz foi o próprio diretor, então não é censura.

Mas o que você quer dizer?
O que estou querendo dizer é que a pressão chegou à arte — porque os movimentos militantes pressionam o que quer que seja — e o meio artístico agiu de maneira histérica. A gritaria da censura é totalmente descabida, porque censura é quando a pessoa é obrigada. E quando a própria pessoa retira [a peça de cartaz], ela mesma está assumindo [a culpa]. Todo o movimento que o meio artístico fez parece mostrar realmente essa coisa desse meio ser fechado e qualquer incômodo se transforma num meio auto protetor. O meio artístico parece impermeável de poucas pessoas. Como disseram, [fazem parte desse meio] poucas mulheres, poucos negros, é um meio que reproduz a elite brasileira.

A partir do momento que a arte parar de reproduzir e entrar em choque de novo, a literatura vai produzir um momento potente. Os maiores momentos da literatura brasileira são os momentos que ela entrou em choque, como o Graciliano, o Guimarães Rosa…

A partir do momento que a arte parar de reproduzir e entrar em choque de novo, a literatura vai produzir um momento potente.

Em Fisiologia da Idade você diz que, na sua literatura, procura ‘expor a exposição’. Isso começou a acontecer em Divórcio, né? Por quê?
O que acontece é o seguinte: em parte, os livros que eu escrevi — como eu falo na última entrevista que dei pra VICE — são textos, em geral, de denúncia. O Céu dos Suicidas não é um texto de denúncia. O que aconteceu depois da Disneylândia do Divórcio (Disneylândia é a melhor palavra para descrever tudo que ocorreu) me pareceu evidente a dificuldade de constituição da literatura como um objeto literário. Uma parte da reação eu esperava, mas outra, da confusão inteira que se fez em cima do Divórcio foi desapropriando do que fosse literário. Nesse texto [Fisiologia da Idade] eu denunciei a exposição da exposição, como eu já tinha feito com Delegado Tobias.

Você já chegou a dizer que acredita que o leitor se sinta mais atraído por elementos biográficos do autor no texto. Esse é um teste que você aplica ao leitor dos seus livros?
O Divórcio faz, ainda hoje, muito sucesso. Costumo receber no mínimo umas quatro ou cinco mensagens sobre o livro diariamente. O livro faz muito sucesso. Evidentemente que eu sei as consequências de escrever dessa maneira. Não foi uma atitude ingênua. Mas o que eu não esperava é que determinadas questões do livro seriam manipuladas. Várias pessoas simplesmente tentaram diminuir a denúncia do romance ou neutralizar a denúncia simplesmente falando a seguinte frase: ‘O romance Divórcio é um livro sobre adultério, sobre um marido traído’. Não é verdade. O Divórcio é um livro sobre adultério cometido durante o festival de Cannes com um dos jurados do júri principal para saber quem seria o ganhador em nome do furo jornalístico. Isso é uma coisa clara. É um romance de denúncia, as pessoas que queriam neutralizar a denúncia costumam parar a frase em ‘Divórcio é um livro sobre adultério’. Isso também demonstra a quantidade tão grande de leituras que podem ser feitas do livro, me parece uma espécie de força do livro. Como as pessoas querem neutralizar a denúncia, não se menciona que o livro é sobre um determinado tipo de jornalismo. Outra coisa engraçada vinda de pessoas que queriam neutralizar a mensagem, é que foi dito que eu destruía todo o jornalismo. Mas isso é impossível, existem muitos tipos de jornalismo diferente. Qual a ligação do veículo de vocês com o Estado de São Paulo, por exemplo? Imagino que nenhuma.

É desagradável a leitura apolítica. Mas há o fato também que a minha reação [em relação a repercussão de Divórcio] foram muito ruins. Eu não estava acostumado com o tipo de assédio que aconteceu naquele momento. Eu não sabia muito bem como reagir. Dei entrevistas muito ruins, tive reações muito incoerentes umas com as outras. As pessoas me ligavam pra dizer que o livro tinha sido proibido. Eu tenho 12 pedidos de entrevista para comentar a proibição do livro. Mas ele nunca foi proibido.

Mas como rolou o boato?
Me lembro da primeira vez. Eu estava na rua e um jornalista desses grandes jornais me liga perguntando se posso fazer um comentário sobre como estava me sentindo sobre a proibição do livro. Levei um susto e pedi pra ele ligar novamente dali a meia hora. Foi então que liguei para minha editora falando que tinham me falado que o livro tinha sido proibido. A editora falou que não estava sabendo de nada. Eu liguei para minha mulher, que é advogada, e ela falou que ou eu ou a editora teríamos que ser notificados — a menos que a notificação estivesse a caminho. Como eu estava fora de casa, pensei que podia ter algo na portaria. Liguei para o prédio e me falaram que também não havia chegado nada. O editor também checou e nada. Então o jornalista ligou novamente pedindo uma declaração quando perguntei: “De onde você tirou que o livro foi proibido?”. O jornalista informou que uma colega de trabalho da redação tinha ido à livraria procurar o meu livro, quando não achou e perguntou para o vendedor que falou: “Ah, não tem, mas tá todo mundo falando que esse livro vai ser proibido”.

Na verdade, [o livro] tinha acabado. Esse é o nível do cidadão na hora de fazer uma checagem. A primeira edição do livro esgotou muito rápido, em três dias. Depois desse, ainda vieram 11 boatos.

Você até parece já conseguir rir disso.
Agora sim. Mas foi muito desagradável.

Seguindo algumas provocações lançadas no conto, você escreve que o retorno aos seus 20 anos seria uma influência de Proust — e que ninguém apontou a influência do autor francês na sua obra. Quando leio seus livros, sempre me pergunto se você está dando pistas verdadeiras ou falsas ao leitor. Onde você quer chegar?
A ideia é fazer você, leitor, ter essas questões. É simplesmente levantar [essas questões]. Causar um embaraço, um incômodo. Não é uma literatura de pontos fechados, não é uma literatura que as coisas se fecham no final. Pelo menos não é esse o projeto desses textos. As consequências disso é que causa muita raiva, muito ódio. As pessoas ficam iradas muitas vezes. Mas a ideia é um pouco levar para o leitor um trabalho. É problema seu, resolva, os pontos estão todos abertos. Não tenho constrangimento nem em explicar. Quem sabe alguém vai tentar pagar o boleto. Você vai descobrir se é verdade ou não só no caixa.

Você viu o lance da proibição do Delegado Tobias?

Vi no seu Facebook.
Ali era uma resposta muito clara, o momento em que eu ia me livrar de toda a confusão do Divórcio. Porque todo mundo disse que o Divórcio tinha sido proibido, então eu resolvi proibir o Delegado Tobias. A gente fez um documento da Justiça — minha esposa ajudou com o texto e o pessoal da editora fez o layout. É igualzinho a um processo, com uma exceção: eu apaguei o número do processo de propósito. Eu queria que as pessoas fossem enganadas e que ficasse bem claro de que elas estavam sendo enganadas. Mas tem gente até hoje que acha que o livro foi sim proibido. Tem gente que viu o delegado na rua, inclusive.

As pessoas precisam dar uma chance para a arte. É impressionante, elas acreditam em tudo. As pessoas sempre irão ficar fazendo a conta de quanto daquilo que foi escrito é verdade. Por isso que eu continuo dizendo que é tudo verdade. A pergunta não se coloca. Está tudo escrito, a arte tem a sua própria verdade.

Se eu [re]lesse [meus textos], não confiaria em mim. Não confio nos autores, não confio no texto.

“Se não for para descobrir minha própria personalidade, não vejo outro sentido na literatura”. Mesmo nos dizendo isso em seu texto, você dedicou O Céu dos Suicidas ao seu analista, não é?
O que eu não acho possível é você encontrar respostas que estão fora de você, leitora. Essas perguntas que você coloca são questões diante de um objeto, mas as respostas encontradas também serão suas. Isso não quer dizer que o escritor não está escrevendo coisas com significados em si mesmas. O que não me parece é que eu não posso agir de maneira tão autoritária deixando para o leitor as perguntas e também as respostas. Quem constrói o sentido do texto é o leitor. Eu mesmo não confiaria em mim. Quando eu leio, eu não confio no autor.

Como assim?
Por exemplo, eu não releio meus textos. Mas se eu lesse, não confiaria em mim. Não confio nos autores, não confio no texto. Prefiro construir as minhas hipóteses, as minhas questões.

Você também nos diz que seu vício é literatura, que quando não escreve, não se sente bem. Como isso funciona para você, qual a sua intenção ao fazer literatura?
Escrevo todos os dias. Se não escrever, eu não me sinto bem. Mas no meu caso tem um pouco de crise de abstinência. Há vários anos já, eu escrevo todos os dias com raras exceções. Isso deve dar mais de dez anos. Em todos esses anos, eu conto dez dias sem escrever, talvez um pouquinho mais. Mas isso indica realmente uma questão de vício, sobretudo [a falta da escrita] me faz sentir mal. É uma crise de abstinência que se manifesta inclusive fisicamente. Mesmo quando eu viajo eu levo uma espécie de kit, um lápis, uma pasta…

Você escreve à mão?
A primeira versão é à mão, depois eu digito. Quando eu sei que a viagem vai durar dois dias, digito na chegada, mas escrevo sobretudo porque se não, eu me sinto mal. É semelhante à do uso de drogas, que causa depois que você para. Depois da cocaína, por exemplo, pode causar taquicardia e ansiedade, [ficar sem escrever] é o mesmo princípio para mim.

Se você pudesse, acabaria com o quê no mundo? Os bancos estão nessa lista?
Seguramente. Seria uma das primeiras coisas com que eu acabaria. [Eu acabaria] com o sistema financeiro. [risos] Você acabando com os bancos cria-se um lastro. O sistema financeiro em geral poderia ser substituído e muita coisa dali em diante cairia junto. Como as dívidas, por exemplo.