O RP Boo ajudou a inventar o footwork. Agora ele está indo além

​RP Boo no Rio. Foto: Bruno Machado/I Hate Flash

“Sabe, às vezes você precisa tirar um tempo do seu dia para ir à rua e ouvir o som do vento batendo nas árvores, observar a praia… Essa é a primeira música do planeta”, me diz RP Boo, pensativo, enquanto abre o seu maço de cigarros. Pode parecer um papo tilelê de produtor de ambient music, mas na verdade o comentário vem da boca de um dos DJs responsáveis pela criação de uma das vertentes mais neuróticas e alucinadas da música de pista em décadas: o footwork.

Com beats acelerados (na casa do 160 BPM) e ritmos sincopados, o footwork tomou força por volta de 2010 com a coletânea Bangs & Works, que apresentou ao mundo o novo som dos produtores de Chicago. Entre eles estava Kavain Space, o RP Boo, considerado pioneiro do gênero — embora seu primeiro álbum solo, Legacy, só tenha saído mais tarde em 2013.

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A trajetória de RP é longa. Nos anos 1990, foi dançarino e DJ da crew House-O-Matics, misturando o house mais convencional com temperos locais do ghetto e booty house. Embora seja o pai do footwork, as suas músicas, curiosamente, parecem ter pouco a ver com as fórmulas e ortodoxias do gênero. RP Boo é uma espécie de arquiteto sônico que constrói uma zona misteriosa de difícil classificação — e faz questão de deixar o som guiá-lo rumo à direções imprevistas. Abriu set do festival Novas Frequências em dezembro do ano passado com Screamin’ Jay Hawkins cantando “I Put a Spell On You” e em determinado momento chegou a mixar quatro músicas de uma vez. I’ll Tell You What, seu novo álbum, radicaliza extrapola os limites da dance music. “Eu me vejo como um criador um experimental”, ele define. “A pista de dança é meu laboratório.”

Em meio à sua passagem pelo Rio de Janeiro para o festival Novas Frequências, RP Boo fez dois sets (um mais intimista na Comuna, outro na festa do festival), deu uma passadinha num pagode e foi presenteado com o clássico LP do Lincoln Olivetti e Robson Jorge. Mas também nos recebeu para falar sobre os seus experimentos, o passado, o presente e o futuro do footwork.

Noisey: Você é DJ há mais de 20 anos e, embora tenha um monte de faixas produzidas, tem poucos álbuns lançados — I’ll Tell You What é somente o terceiro. Quando você monta um álbum, pensa num tema ou num conceito que une as músicas todas?
RP Boo: Bem, eu tive a oportunidade de fazer um álbum solo quando fizemos Bangs & Works. Me ofereceram a proposta um álbum e eu não quis porque achava que aquela não era a hora, eu tinha que fazer mais pesquisas e esperar. Depois que o volume dois de Bangs & Works (2011) foi concluído, eu fiz uma faixa chamada “Area 72”. Mostrei pro DJ Rashad e ele a tocou enquanto estava em tour em 2012, dizendo que a faixa estava indo muito bem nos sets. Ele a tocou em Londres e o Mike Paradinas, dono do selo Planet Mu, ficou empolgado e estava: “Podemos ter um álbum disso?” Então olhei para o tempo [de Bangs & Works até então] e pensei: “Sim, podemos fazer um álbum”. Então eu lhe dei “Area 72” e reunimos mais coisas do arquivo, assim formamos Legacy (2013). E Fingers, Bank Pads & Shoe Prints (2015) também foi feito com coisas dos arquivos. Mas I’ll Tell You What! não é dos arquivos. É o primeiro projeto em que eu disse: deixe-me fazer algo novo, algo que eu realmente quero fazer agora. E funcionou tão bem! Foi o primeiro álbum que eu falei: eu quero ser capaz de ser quem eu quero ser. Mas é como eu sempre digo: você tem que estar apto a explorar suas opções e ser o melhor no que você puder fazer, mas ter um relacionamento com os selos. É muito diferente quando você faz sozinho e quando tem gente que investe em você — não por você, mas com você, como um membro da família.

Mas quando você seleciona as faixas e as une num disco, tem em mente um conceito, uma narrativa tema? Afinal, como você disse, I’ll Tell You What! é seu primeiro álbum composto só por faixas inéditas.
Bem, eu criava uma nova faixa e mandava para eles [a Planet Mu, selo que editou os álbuns de RP], até o ponto em que disseram: esse álbum vai ser épico. Eu sabia que estava fazendo algumas mudanças no meu som e quando você faz algo que ainda não foi visto, se for feito do jeito certo, vai deixar as pessoas mesmerizadas, perguntando-se de onde isso vem. Era esse tipo de reação que eu esperava, e ela aconteceu! Então eu pensei que devia estar fazendo algo certo. E com a Planet Mu havia uma discussão em que eu estava pensando sobre o futuro. Só que eu digo às pessoas: você não pode prever o futuro, mas, contanto que você saiba que quer ser parte do futuro, crie o que está lá. E seja capaz de deixá-lo prosperar para os corações, as vidas e corações das pessoas. Muitas pessoas estão lidando com o que eles pensam que podem ver, mas não se trata do que você pode ver ou do que você pode ouvir. Só deixe o som guiar.

Eu gostaria que você falasse um pouco sobre as relações entre house, juke e footwoork. O footwork acelerou as batidas do house, todos percebem e falam disso, mas as pessoas não falam muito é da síncope, essa quebra do beat música eletrônica que o footwork inseriu na tradição do ritmo 4/4 do house e techno. Como a síncope apareceu nessas produções do footwork?
Na verdade, a base do 4/4 ainda está lá. Muita gente não percebe, mas o 4/4 é o que cria aquilo que chamam de metrônomo — aquele “click, click” das músicas eletrônicas. Isso ainda está lá, mas tem a ver com entendê-lo e tirar seus elementos. O que faz a diferença não é o beat em si, mas o sample utilizado. Então o 4/4 ainda controla tudo.

Mas ouvindo temos uma sensação de quebra no ritmo. De onde veio isso?
Foi muito um experimento. Nick Cornell, um cara com quem eu dançava no House-O-Matic, me dizia: “Por que você não faz uma música que não tenha o ‘bass kick’, o grave?” Ele dizia para fazer essa música e ver qual seria a reação da pista. Quando eu fiz e toquei, as pessoas não esperavam, um som em que o beat não entrava no tempo 1 e sim no 2. Mas ele estava dançando! Ele havia se colocado dentro do beat e estava dançando ao som de qualquer que fosse o som que ele ouvia naquele espaço. Tudo ficou mais aberto. Tão aberto ao ponto de que as pessoas se perguntavam como ele conseguia dançar ao som daquilo. E eu fiquei, tipo, apenas estamos mostrando o que é possível fazer no espaço entre duas notas. Isso acabou ficou conhecido como, como dizem, o “future sound of footwork” por toda a relação com o espaço vazio, sendo que isso é um aspecto do passado que vai até o jazz.

Além dos beats, acho que o uso dos samples e das vozes como elementos rítmicos é uma das coisas mais ricas do footwork. Como em “At War”, em que você fica repetindo só um fonema da frase “we’re at war in the streets”.
Bem, quanto à voz, as pessoas pensam que footwork e hip hop não tem conexão, mas quero dizer que a voz no footwork é como a levada do rap, é hip hop, a conexão é clara. E quanto aos samples, essa é a parte divertida. Em “Off Da Hook”, enquanto eu estou dizendo “off the hook” com minha voz, o som continua e se expande até revelar o sample da trilha sonora de “Star Wars”. Fiz “At War” da mesma forma, mas usei minha voz [como sample principal]. Então a técnica é fazer um padrão rítmico, encurtá-lo e depois alongar até surpreender os ouvintes.

Sobre isso de surpreender os ouvintes e os dançarinos, tem uma frase sua que acho muito interessante: “a pista de dança é o laboratório de ciências de tudo”. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Para mim é simples. O que eu fiz — e ninguém me disse como fazer isso — é que fui um dos primeiros a realmente olhar para o público na pista. Enquanto olho para o público, sinto sua energia. Primeiro, isso foi enquanto DJ, mas depois eu pude começar a produzir e a olhar como eles reagiam às minhas músicas. E passei a receber uns comentários tipo “adorei essa faixa, de quem é?!” ou “eu não sabia que você produzia!” A energia que eles davam às minhas músicas é que me fazia voltar e criar mais. Então continuei com isso e percebi a energia que existe entre os dançarinos e a música. Comecei a ver tudo como um só, porque uma eu já fui o dançarino antes. Uma coisa que digo a quem lida com dança, seja no Rio de Janeiro ou em Chicago, é: preste atenção nos dançarinos. É de lá que você aprende. E complemente o seu talento com eles! Não olhe para si como “ah, sou apenas um produtor”. Dance ao som da sua música!

De um modo geral, você está dentro da “eletronic dance music” mas você também experimenta muito. Nas faixas no YouTube, é comum ver gente dizendo “não dá para dançar isso”. Faixas recentes, como “Wicked’Bu” ou mesmo “At War” são bem experimentais, estranhas às vezes. Então, você se considera um produtor de electronic dance music producer ou um criador experimental?
Eu me vejo como um experimentador.

Por quê?
Porque eu penso que eu posso me ver como “este é quem eu sou”, mas quem eu sou está sempre mudando para o desconhecido e eu sou capaz de entender que se há algo que eu quero expressar, não é preciso ter medo de explorar. Quando as pessoas me dizem: “nós podemos entender, mas não é o que nós pensamos, este não é o RP Boo que nós esperamos e que conhecemos”, bem, essa é a terminologia para dizer que ninguém fez isso antes. Isso é ser experimental. Isso é o não-identificável. então é com isto que eu estou feliz, é onde estou e é o que quero manter.

Nesse caso você fala da sua música, especificamente. Mas o footwork de modo geral circulou em festivais de música experimental como o Counterflows, o Novas Frequências, Jlin acaba de retornar ao Unsound… Você vê o footwork como uma música experimental também?
Sim! A Jlin, cara, eu sou viciado nela há muitos anos. Quando eu a ouvi pela primeira vez eu vi que ela era boa. E eu falei: isso é diferente, eu identifiquei muito rapidamente. Eu disse a ela: esteja sempre aberta. Às vezes você consegue identificar padrões, assinaturas e coisas do tipo, mas quando você fica bom, tudo se torna tão desconhecido e isso se torna um elemento crescente na vida dos ouvintes. Muita gente não é capaz de crescer porque são tantas distrações. O segredo é não se distrair e não ficar fechado a apenas um gênero musical. Todos os gêneros possuem relação entre si.

Por falar nisso, o novo álbum do Burial e Kode9 tem uma música sua.
Isso! “Wicked’Bu”, é a última faixa do álbum!

Você acha que sua música dialoga com o som do Burial e Kode9? De que forma?
O que eu tenho a dizer é que para mim isso foi uma honra! Eu não sabia de nada. Antes de I’ll Tell You What sair, o Kode9 tuitou: “There is no you”. E eu fiquei maluco: “Ele gostou da música!”. É uma honra para mim ser reconhecido por um cara que fez grandes coisas pelo gênero e montou um selo importante [Hyperdub]. Se ele gostou e quer usar minha música, eu não tenho problema (risos).

Muitas resenhas estão falando do I’ll Tell You What e dos álbuns da Jlin como um desenvolvimento do footwork, uma reconfiguração com novos elementos. De fato, isso é bem perceptível, não é o mesmo som de 2011. Mas, ao mesmo tempo, eu não consigo dizer exatamente o que é que rola de diferente.
E eu fico muito feliz que você não consiga dizer, porque significa que você é o tipo de pessa que desfruta o que o som é. Você pode reconhecer que o que estamos fazendo é irreconhecível, embora estejamos enquadrados num gênero específico. Mas quando as pessoas reconhecerem o que estamos fazendo de fato será anos depois. Por isso eu digo que a pista de dança é o meu laboratório.

Este ano você tocou no festival Counterflows com dois improvisadores de jazz, Seymour Wright e Paull Abbott. Como foi isso?
Os curadores fizeram o convite e eu aceitei, não pensei sobre como iria soar. Eu pensei no momento, dei meu melhor e ficou melhor do que eu pensava. Eu digo que quando tiver a oportunidade, é preciso pintar o quadro. Assim que terminar, deixa o quadro se expor por si só. Só então você realmente poderá crescer a partir da obra. Toquei sons da minha biblioteca, como sopros e alguns elementos percussivos. Aprendi a não tocar faixas que já estão completas e fechadas, porque se você tem um baterista tocando ao vivo você quer que ele seja ouvido. Então às vezes eu tirava tudo que tinha a ver com percussão.

Você vê uma conexão entre sua música e as práticas de improvisação?
Sim, sempre houve uma relação. Era só uma questão de identificar e cumprir o objetivo — e pronto. Não é nada novo, é só estar com gente que te apresenta a oportunidade para preencher o gap. É um obstáculo que os jornalistas e os blogs precisam vencer. Eles dizem: “Ah, isso é totalmente diferente”. Eu digo: “Esteja aberto ao que está acontecendo, pare de ser tão previsível e pare de trabalhar por um mero cheque de pagamento achando que você sabe o que o som é”. Antes dos humanos pisarem na terra, havia o vento e o ar. Essa é a primeira música e será a última música. Você tem que criar música como a vida, como o ar que respiramos.

E você pretende gravar alguma coisa com instrumentistas?
Sim! Para mim é devolver, voltar ao início — e não retroceder — porque instrumentistas foram negligenciados pelo som eletrônico. E foram essas pessoas que Deus criou com a habilidade de tocar instrumentos que originaram os eletrônicos. A música expressa por instrumentos ainda é uma das músicas mais puras e emocionais. Guitarras, baixos, percussões, metais… Esse tipo de som é feito por pessoas que mostram genuíno e verdadeiro amor.

E você quer mesmo colaborar com essas pessoas?
Sim, como o meu pai, que é baixista e é um dos primeiros com quem eu gostaria de tocar. Faremos um álbum com participações dele, em que eu digo obrigado, pai e obrigado Deus pelo meu pai. Quero complementar o que era o som antes do eletrônico, antes de identificarmos o metrônomo e os BPMs.

Bem, agora eu tenho que te perguntar: se você acha que a música acústica e os instrumentistas são tão genuínos e verdadeiros, qual a beleza do som eletrônico? Por que você faz música eletrônica?
Porque você ainda pode exibir seu trabalho artístico por ele e ter alma nele. A beleza dessa relação entre almas possui o maior poder do mundo. E muita gente ainda se identifica nos eletrônicos. Eu sou um desses caras. E se você encontrar algo diferente no RP, é porque ele não se encaixa ou não se encaixa no que supomos que seja o padrão. E isso é um bom sinal porque você precisa ter alma para ser diferente.

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