Em 1962, o geólogo francês Michel Siffre desceu numa caverna de mais de 120 metros de profundidade e ficou lá por dois meses. Ele deixou seu relógio, e qualquer medidor de tempo, na superfície para experimentar como a vida seria “além do tempo”.
Ele descobriu que sem nenhuma dica de tempo externa, ele começou a perder a noção dos minutos, horas e dias. Ele entrou na caverna em 16 de julho, e tinha planejado sair em 14 de setembro. A equipe dele avisou quando o dia chegou, mas segundo as estimativas dele, era só 20 de agosto. “Achei que ainda tinha mais um mês pra passar na caverna. Meu tempo psicológico foi comprimido por um fator de dois”, ele disse numa entrevista em 2008.
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Atualmente não estamos na escuridão – numa caverna sem luz natural – nem estamos sem nossos celulares e relógios. Mas muitas pessoas estão sentindo, com o distanciamento social e o mundo quase parando, que o tempo também está começando a perder o sentido. Segunda, sábado, quarta; 10h, 16h, meia-noite – quem sabe que dia ou hora estamos? Semana passada, Stephen Colbert tuitou: “As duas últimas semanas têm sido dez anos estranhos”. Um canal de notícias até lançou um seguimento chamado “Que dia é hoje?”, anunciando animadamente um terça dessas: “Se você disse terça-feira, acertou”.
É como se, como Siffre disse numa entrevista em 2018: “O cérebro não entende o tempo porque não existe tempo. A menos que escreva o que está acontecendo, você o esquece imediatamente”.
Primeiro, um lembrete de que se você está preso em casa, começando a ficar insensível à passagem de tempo, é um privilégio se sentir assim – muitos trabalhadores essenciais ainda estão colados no relógio, e profissionais de saúde estão sentindo um tipo diferente de insignificância do tempo enquanto trabalham longos turnos em hospitais sobrecarregados, cheios de pacientes com covid-19. Mas para o resto das pessoas, algo estranho está mesmo acontecendo com nossa noção de tempo.
Por causa da enxurrada de notícias, ansiedade e stress, além de uma falta de mudança nos nossos ambientes e atividades, o tempo pode se esticar ou distorcer para parecer muito mais longo do que normalmente. Há muita incerteza sobre quando isso tudo vai acabar e como será o futuro; com as datas do fim do isolamento social continuamente sendo adiadas, o que nos deixa presos num presente sem fim.
Esses fatores se misturam para quem está acostumado com uma vida no horário comercial geralmente subserviente ao relógio, e agora estamos sendo desafiados a considerar uma estrutura dos dias de maneiras que eles pareçam válidos. Isso rende piadas e memes, mas muito disso tem implicações maiores: pesquisas sugerem que o jeito como você pensa e percebe o tempo também afeta nossas tomadas de decisão e perspectivas para o futuro. Em vez de deixar o tempo perder todo o significado, tem jeito de trazer de volta um senso de normalidade – e talvez até lembrar como a gente se sentia quando era sexta-feira.
Nosso relacionamento com o tempo é governado por nosso estilo de vida e perspectivas culturais. Como J.T. Fraser, fundador da International Society for the Study of Time, escreveu uma vez: “Me diga o que você pensa do tempo, e vou saber o que pensar de você”.
Baseado no que pensamos sobre o tempo agora, podemos concluir que estamos nos sentindo perdidos e confusos.
Isso é causado por várias mudanças no nosso cotidiano que influenciam como experimentamos o tempo, disse Hal Hershfield, psicólogo da UCLA que estuda como as percepções de tempo se relacionam com as escolhas que as pessoas fazem. Uma delas é que estamos prestando mais atenção nisso do que fazemos normalmente. Duas semanas parecem incrivelmente longas porque estamos recebendo muita informação nova do Twitter, das notícias ou da televisão.
“Costumamos usar o número de coisas que acontecem num devido período para nos dizer quanto tempo passou”, disse Hershfield. “Quando muitas coisas estão acontecendo num período padrão de tempo, isso nos faz sentir que aquele período foi mais longo do que realmente foi.”
Além disso tudo, coisas que são incomuns geralmente são vistas como durando mais tempo, o chamado “efeito oddball”. Quando o psicólogo de Dartmouth Peter Ulric Tse e seus colegas mostraram para pessoas as mesmas imagens piscando, quando uma diferente aparecia, elas diziam que ela durava mais tempo na tela que as outras – mesmo a tendo visto pela mesma quantidade de tempo.
Nossas emoções, como o medo, também têm um papel em como sentimos a passagem do tempo. Em 2011, um estudou mostrou para estudantes diferentes cenas de filmes que evocavam medo, tristeza ou emoções neutras. Quando estavam assustados, os estudantes achavam que as durações dos vídeos eram mais longas. Em 2010, David Eagleman, um neurocientista da Universidade de Stanford, fez os participantes da pesquisa andarem num brinquedo de parque de diversões que despencava de 15 andares de repente. Quando perguntavam quanto tempo a queda tinha durado, as pessoas tendiam a superestimar a duração.
Enquanto somos bombardeados com notícias e novos medos, esticando o tempo, outras partes da nossa vida se tornaram menos diversas. Eagleman também fez uma pesquisa mostrando que novidade é um ingrediente importante para fazer o tempo parecer mais longo, e sugeriu que é por isso que a infância parece mais longa e o tempo parece correr mais rápido enquanto vamos envelhecendo – porque experimentamos menos novidades como adultos em nossa rotina.
Essa contradição pode explicar por que estamos tendo um efeito sanfona no tempo. Às vezes, os dias parecem longos, enquanto estamos presos em ciclos de notícias e novos medos surgem. Mas o tempo pode passar sem percebermos, ou horas e dias podem acabar se misturando, na ausência de vermos novas pessoas ou fazer coisas novas.
Numa pesquisa anterior, feita com pessoas que não estavam passando por uma pandemia, Hershfield descobriu que pessoas pensavam que o presente durava períodos mais longos de tempo quando não estavam motivadas para planejar o futuro.
“A implicação pode ser que se o tempo perde o sentido, e como estamos nesse presente perpétuo, pode ser mais difícil fazer as coisas de longo prazo”, disse Hershfield. “Não tenho certeza se o tempo em si realmente perde sentido. Mas temo que as pessoas estão perdendo a noção dentro desses períodos de tempo porque não sabemos o que fazer com nós mesmos.”
Em seu livro Geography of Time, o psicólogo social Robert Levine descobriu que há uma relação entre o relacionamento de uma cidade com o tempo e muitos fatores, como economia, clima, população, e se a cultura é voltada para individualismo ou coletivismo.
Pessoas do ocidente vivem a vida segundo o relógio – significando que usamos o tempo para marcar o começo e fim de atividades. Isso é comparado com “tempo de evento”, onde os eventos começam e terminam segundo outros parâmetros. “Eventos começam e terminam quando, por consenso mútuo, os participantes ‘sentem’ que é a hora certa”, escreveu Levine.
Ocidentais, além disso, sofrem com algo chamado “urgência de tempo”, ou “a luta para fazer o máximo possível num período cada vez mais curto de tempo”. “Às vezes parece que a vida é construída com o objetivo principal de evitar constrangimento e às vezes no horror de não ter o que fazer”, escreveu Levine.
Muitos desses fatores de repente mudaram para nós, disse Marc Wittmann, pesquisador do Instituto de Áreas de Fronteira da Psicologia e Saúde Mental na Alemanha. E como nossos “ritmos” estavam enraizados no nosso cotidiano anterior, essa mudança pode ser especialmente perturbadora.
De uma cultura tão enraizada na produtividade e urgência de tempo, uma mudança repentina para tempo de evento é desconfortável. Estamos começando a experimentar com encontros com os amigos por videochamadas – que não terminam porque as pessoas têm algum lugar pra ir ou voltar pra casa, só por quê… acabam quando os amigos já conversaram o suficiente.
“Essa perspectiva era como você regulava”, disse Wittmann. “Sabe, agora são 9h e tenho uma reunião às 10h. Mas agora, você perdeu sua programação normal e suas referências de tempo do cotidiano. Os dias simplesmente passam.”
Anne-Laure Sellier, professora de marketing da Escola de Negócio de Paris HEC, tem feito pesquisas sobre tempo de relógio e tempo de evento. Ela descobriu que pessoas que vivem com tempo de evento se sentem mais no controle de suas vidas, enquanto pessoas de tempo de relógio sentem que o mundo é um lugar mais desconectado e caótico, porque eventos não estão relacionados uns com os outros ou são controlados pela ação ou vontade humana, mas pelo tempo deles, e podem ser mudados ou reagendados sem levar os outros em conta.
Meus dias costumavam parecer muito com como Sellier descreveu tempo de relógio num artigo do The Conversation: “Um despertador às 7h, café da manhã às 7h30, chegar no trabalho às 9h, trabalhar até o meio-dia, uma hora de almoço, trabalhar até 18h, voltar pra casa às 19 para jantar com a família e ir pra cama às 23h, só para dormir oito horas”.
Mas a vida parece mais com tempo de evento agora: “Começa com acordar naturalmente, tomar café até sentir que está pronto para começar a trabalhar. Trabalhamos até ter fome. Almoçamos até sentir que estamos prontos para voltar ao trabalho. E continuamos até decidir que é ‘hora de parar, amanhã é outro dia’”.
Pode ter um benefício em perder as amarras do relógio e introduziu um pouco mais de flexibilidade na nossa programação, mas abandonar completamente estruturas de tempo pode resultar em deixar pra trás elementos que são bons para a saúde mental – como o final de semana.
Richard Ryan, professor de psicologia da Universidade Católica Australiana, já fez pesquisas que revelaram um “efeito fim de semana” – pessoas tinha um humor melhor, mais energia e menos reclamações físicas nos sábados e domingos.
“A questão é que para muitas pessoas, quando elas estão trabalhando, elas sente menos autonomia e conexão com outras pessoas”, disse Ryan. “Tempo livre dá a elas uma chance de se conectar com as pessoas que amam, e compartilhar experiências positivas com elas.”
Pessoas tendem a ter níveis maiores de bem-estar quando conseguem atender necessidades psicológicas básicas, como autonomia, competência, familiarização, além de ter tempo para fazer as coisas que você valoriza e tem interesse. Durante o distanciamento social, os finais de semana perderam essas vantagens. “Não importa se é sexta, sábado ou terça”, disse Ryan. “Não podemos sair e encontrar os amigos que gostamos.”
Como podemos reclamar os efeitos positivos dos dias da semana, nossos finais de semana e do tempo em geral? Como muita gente está descobrindo agora, os dias da semana, rotina e estrutura são importantes pra todos no final das contas. “Em teoria poderíamos dizer, tipo, ‘Bom não há estrutura, não há limites, não há barreiras. Posso tomar sorvete às 9 da manhã e beber uísque às 10. Posso fazer o que eu quiser’. Mas acho que a novidade disso vai passar rápido”, disse Hershfield.
Durante o isolamento, como não podemos sair – ir pro cinema, para restaurantes, jogos de futebol, museus; um jeito de fazer o tempo parecer cheio e significativo é o povoar com várias atividades diversas para seguimentar o tempo.
Hershfield também sugere seguir uma rotina – e pra fazer isso, pode ajudar demarcar o tempo criando pequenos rituais. Os pesquisadores Francesca Gino e Mike Norton da Universidade de Harvard estudaram como rituais podem ajudar as pessoas a separar seu trabalho de sua identidade em casa – descobrindo, por exemplo, que enfermeiras podem sentir que têm um equilíbrio melhor entre trabalho/casa se fazem um ritual de trocar o uniforme por roupas diferentes no fim do expediente.
Introduzir rituais pode ajudar a separar o tempo, assim podemos nos focar em partes diferentes da nossa identidade. Isso pode ser terapêutico se você se perde nos dias da semana, ou não consegue diferenciar entre dias úteis e finais de semana. “O que você faz é criar uma dica cognitiva saliente que agora é hora de trocar de marcha”, disse Hershfield.
Experimentei criar meu próprio ritual na semana passada. Na noite de sexta fechei meu notebook do trabalho e troquei pelo meu note pessoal. (Eles são MacBook Airs iguais.) E comecei a usar um anel na mão enquanto trabalho e o tirar por volta das 17h30 ou 18h para marcar o fim do expediente. Planejo bolar outros rituais divertidos para os finais de semana para indicar pra mim mesma que é hora de descansar, talvez colocar um “chapéu de final de semana”, ou ter uma dancinha de final de semana para começar o dia. Gino e Norton descobriram que esses rituais podem ser benéficos mesmo para pessoas que não acham que eles vão funcionar.
Enquanto o tempo se arrasta, essas estratégias podem nos ajudar a lidar com um mundo que de repente começou a mudar ao nosso redor, e ser um lembrete de como ele costumava ser. “No final das contas, importa se é 17h da sexta ou 9h da terça?”, disse Hershfield. “Mas esse tipo de pensamento pode significar a perda de significado. Conseguir manter nosso ritmo, nossa rotina, pode nos ajudar a pelo menos nos manter conectados com como a vida era antes disso.”
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