Olhos enfaixados se tornaram um símbolo da resistência no Chile

Natalia Aravena, activista chilena

Numa sexta-feira deste mês, um estudante de psicologia de 21 anos chamado Gustavo Gatica decidiu tirar fotos de um grande protesto na Plaza Italia – historicamente um epicentro de manifestações em Santiago, Chile. Desde que os protestos começaram lá com um milhão de pessoas em outubro, milhares de pessoas têm ido para a Plaza todo dia para protestar contra a extrema desigualdade econômica que assola o país.

A participação de Gatica naquela sexta mudaria o curso de sua vida. Lá, ele foi atacado pelas forças policiais que, sem serem provocadas ou hostilizadas, atiraram diretamente no rosto dele – projéteis de chumbo . Naquele dia, uma foto de Gatica sangrando dos dois olhos mutilados foi postada nas redes sociais e rapidamente rodou o país. A gravidade do caso dele se tornou um emblema da violência policial descontrolada no Chile.

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Gatica é um dos 294 manifestantes no Chile que sofreram trauma grave nos olhos, de projéteis de chumbo e bombas de gás lacrimogêneo disparados pela polícia, desde que os protestos começaram em 18 de outubro. Tantos casos de trauma ocular, agora considerados uma emergência sem precedentes na história chilena, sugerem que a polícia está violando protocolos ao atirar diretamente no rosto das pessoas. Semana passada, o diretor nacional da polícia, Mario Rozas, anunciou que eles restringiriam o uso de projéteis de chumbo porque um estudo mostrou que eles contêm, bom, chumbo, entre outros metais pesados. Mesmo assim, pelo menos 10 novos casos de trauma ocular foram registrados desde então. Os chilenos começaram a ir para os protestos usando tapa-olhos em solidariedade.

A história de Gatica ecoa testemunhos de outros manifestantes da violência policial na impressa local. Eles dizem que a polícia, aparentemente exausta e enraivecida, atacou as multidões várias vezes sem aviso, atirando indiscriminadamente. Foram 369 queixas de tortura, 79 acusações de abuso sexual e 26 mortes, pelo menos seis diretamente ligada a policiais, segundo o último relatório do Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH).

“Eles não tinham intenção de ajudar, mesmo quando Gustavo estava ferido no chão”, disse Enrique Gatica, irmão mais velho de Gustavo. “As pessoas o tiraram da praça usando escudos improvisados, porque a polícia ainda estava atirando neles.”

No começo do mês, a Anistia Internacional divulgou um relatório detalhado denunciando as violações de direitos humanos no Chile. O governo rejeitou o documento categoricamente. “Digamos que isso é um câncer, você tem que tratar com quimioterapia e enquanto isso, você mata células boas e ruins”, disse o chefe do Departamento de Polícia de Santiago, Enrique Bassaletti, numa entrevista coletiva. Esta semana, a Human Rights Watch interveio, recomendando reformar as práticas da polícia chilena.

Na quarta passada, Gatica passou por uma segunda cirurgia que finalmente conseguiu tirar os projéteis de chumbo alojados nas cavidades oculares. Ele teve alta do hospital dia 26. Os médicos confirmaram que ele está permanentemente cego dos dois olhos. Seu irmão, Enrique, disse que Gatica está “estranhamente otimista, porque ele tem certeza que estava lutando por algo justo”.

A VICE falou com outros quatro manifestantes que, como Gatica, perderam olhos pelas mãos da polícia. Abaixo você lê as histórias deles:

Diego Foppiano, 22 anos

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Moro com minha família em Puente Alto, um bairro no sul de Santiago. Em 19 de outubro, durante o segundo dia de protestos no país, as ruas estavam lotadas. Tinha um grande protesto planejado na praça do meu bairro, Plaza Puente Alto, então encontrei um amigo às 18 horas e começamos a caminhar pra lá. O protesto tinha se espalhado por toda a avenida e tinha uma longa fila de pessoas andando para o local.

Quando cheguei, a polícia já estava lá. Eles estavam parados, só olhando pra gente. Percebi que havia só alguns deles e não estava com medo, não achei que algo poderia acontecer.

Parei na frente deles e olhei para os policiais diretamente, e um deles só saiu da fileira e atirou no meu rosto. Não teve uma razão pra isso. Eu nem estava usando um moletom com capuz. Meu rosto estava descoberto. Ficamos chocados. Já tínhamos ido para protestos antes e nunca vimos a polícia usar suas armas. Como era o segundo dia de manifestações, o meu caso foi um dos primeiros de trauma ocular. Não sabíamos que eles iam atirar assim, e eles não deram nenhum aviso.

Caí, perdi a consciência e as pessoas me cercaram. Enquanto elas estavam tentando me ajudar, a polícia continuou atirando, e muita gente que me ajudou acabou com projéteis nos braços e pernas. Comecei a andar sozinho com ajuda do meu amigo para posto de saúde mais próximo, que não tinha recursos suficientes, então eles me mandaram para outro hospital. Os hospitais estavam tão lotados nos primeiros dias que não havia ambulâncias; fomos pra lá na caminhonete do meu tio. Naquele dia, eles declararam estado de emergência.

Os médicos que me trataram disseram que minha cirurgia foi uma das mais longas e complicadas que eles já viram. Eles só conseguiram tirar o projétil do meu olho depois de um mês, na terceira cirurgia, que foi semana passada. Agora tenho uma dor de cabeça constante, então passo a maior parte do dia dormindo, tentando me recuperar. Tentei voltar pra escola imediatamente, mas não consegui ficar. Eu me sentia fraco e não conseguia enxergar direito. Não estou acostumado com isso ainda.

Dei algumas entrevistas pra TV. Estou sendo trolado nas redes sócias; dizem coisas horríveis, que estou fingindo ou mereço isso. Como não posso mais ir aos protestos, tento responder essas pessoas, mas acho que é inútil. Meus amigos estão nas ruas agora, eles dizem que estão fazendo isso por mim. Aprecio o que eles estão fazendo, mas tenho medo por eles.

Natalia Aravena, 25 anos

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Ouvi o barulho e imediatamente senti o impacto. Eles jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo direto no meu rosto. Foi intencional – sei porque eles estavam a uns 5 metros de distância.

Dizem que o Chile é o país mais estável da América Latina. Eles mostram ótimos indicadores econômicos, mas as pessoas precisam usar o cartão de crédito para comprar comida e ficam endividadas por 20 anos para pagar a faculdade.

Eu estava indo encontrar um amigo em Paseo Bulnes no centro, mas nunca cheguei lá. Quando saí do metrô, vi um grupo de pessoas protestando com faixas e comecei a caminhar na direção delas. Elas começaram a correr porque a polícia estava se aproximando rapidamente, e usando um canhão d’água. Comecei a correr também e entrei num beco, achando que a polícia ficaria na avenida. Era muito difícil se mover; tinha muitos carros e pessoas ali. Olhei para trás e vi que eles ainda estavam vindo, foi quando senti o impacto.

Um paramédico que estava ajudando as pessoas nas ruas me encontrou no meio de uma nuvem de gás. Eu estava tentando escapar mas fiquei em choque, então ele me levou para uma loja que eles estavam usando como base de saúde, lá eles limparam meu olho e fui para a emergência no Posta Central.

Quando fui olhar no espelho, meu olho era só um pequeno ponto vermelho. Ser enfermeira me ajuda muito agora, para não ficar tão obcecada comigo mesma, para não perder a paciência. Depois, na Clínica Indisa, um hospital particular que só tive acesso porque tenho plano de saúde, eles fizeram um exame com luz em mim. Eu não conseguia ver nada. Era um mau sinal. Se você não consegue enxergar nenhuma luz, tem pouca chance de ver de novo. Passei pela cirurgia. Eles suturaram meu olho e minha pálpebra, e esperamos uma semana para ver se o globo ocular podia ser salvo, mas não podia.

Sou a mais nova e a única mulher da minha família com quatro irmãos, sempre fui superprotegida. Minha família se sente culpada por algo que nunca poderia prever. Sou uma pacifista. Muitos anos atrás, me tornei vegetariana. Tento reciclar, não consumir muito quando não preciso. Não é muita coisa, mas é minha tentativa pessoal de tornar minha existência nesse mundo a mais inofensiva possível. Não quero destruir nem ferir ninguém. Fui pras ruas pedir igualdade, em troca, eles mutilaram meu olho.

Alejandro Muñoz, 36 anos

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Na quarta-feira, 23 de outubro, fui para o centro da cidade com a minha banda, como fiz várias vezes desde que os protestos começaram. Era meio dia, e estávamos em Santa Lucia, a uns dez minutos da Plaza Italia, quando as ruas começaram a ficar violentas. Tinha um canhão d’água lá, e a polícia estava jogando gás lacrimogêneo para dispersar as pessoas.

Antes de nos separarmos, nos abraçamos e desejamos boa sorte. Aí cada um foi pro seu lado. Eu estava desativando as bombas de gás as pegando e colocando num pote plástico com água – como muitas pessoas fazem esses dias, enquanto o resto da multidão continuava marchando sem perigo. Eu não estava usando um escudo nem jogando pedras.

Um dessas bombas de gás lacrimogêneo rasgou meu olho. O médico disse que só sobrevivi porque estava usando óculos de proteção. Se não estivesse, a bomba teria entrado direto pelo olho. Enquanto uns garotos me arrastavam até o outro lado da rua para um lugar com árvores, a polícia continuou atirando. Na verdade, eles nos seguiram até as portas do Hospital da Universidade Católica no bairro, onde eles me deixaram.

Fiquei internado por cinco dias. Tive sorte de estar numa clínica particular onde em vez de esvaziar meu olho, um cirurgião plástico salvou meu globo ocular com um pouco de silicone. Perdi completamente a visão.

Tenho uma banda chamada Anarkía Tropical. Sou o mascote da banda, o que significa que uso uma máscara e fantasia como crítica social. É tipo uma fantasia de palhaço no estilo do carnaval chileno. É uma homenagem a um garoto anarquista que morreu 11 anos atrás. Tenho que descansar por um ano agora, e a banda tem me ajudado muito. Continuamos tocando nas ruas.

Pra mim, todo dia é algo novo. Estou começando a descobrir como é viver com apenas um olho. Eu era uma pessoa muito ativa. Estou realmente feliz que os protestos continuaram. Mas também quero que todo mundo saiba o que está acontecendo aqui, que as pessoas estão sendo torturadas, as mulheres estão sendo estupradas nas delegacias, pessoas estão sendo assassinadas nas ruas.

Carlos Puebla, 46 anos

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“Não vou mentir pra você”, a Dra. Torres me disse na Unidade de Trauma Ocular do Hospital Público El Salvador, “vou ter que esvaziar seu olho”. Então ela removeu o projétil de dentro da cavidade ocular. Ela teve que tirar meu olho direito completamente. Eles estouraram meu globo ocular. Ela não podia salvá-lo.

Na quinta-feira, 24 de outubro, uma semana depois que os protestos começaram, saí do trabalho às 16 horas. Trabalho numa construção e decidi me juntar à marcha. Senti que era meu direito.

As ruas estavam cheias. Tinha famílias e crianças na Plaza Italia e todo mundo estava pulando, cantando e gritando. Lembro de me sentir tão feliz, tão cheio de esperança. Quinze minutos depois e sem provocação, as forças especiais vieram da Vicuña Mackenna, num dos cantos da praça. Eles começaram a dispersar as pessoas de maneira violenta, com gás lacrimogêneo e canhões d’água.

Casos de estupro e tortura pela polícia vieram a público na mesma semana. Tem vários vídeos horríveis na internet. As pessoas estavam furiosas, e a situação se tornou caótica imediatamente.

Enquanto o canhão d’água se aproximava de nós, vi muitos policiais pelo canto do olho. Eles estavam se escondendo atrás de uma banca de jornal a uns 15 metros de distância. Um deles me viu e colocou a arma no ombro, mirando meu rosto. Senti o impacto imediatamente. Senti meu olho inchar e começar a sangrar. Meu rosto ficou quente. Corri uns 5 metros e caí no chão.

Algumas pessoas me arrastaram até os voluntários da Cruz Vermelha, um dos muitos grupos de estudantes e médicos que se organizaram independentemente para ajudar pessoas feridas durante os protestos. Eu não conseguia respirar. Estava com medo. Eu tentava ver aquelas pessoas mas não conseguia abrir os olhos. Enquanto eu estava lá, cada vez mais feridos chegavam. Um dos paramédicos gritou que eles precisavam de uma ambulância pra mim. Aí eu soube que era sério.

Estou esperando por uma prótese agora, que é tipo uma lente de contato que vai deixar a pele do olho firme. Não sou a mesma pessoa, claro. Tenho pesadelos e perdi a noção de espaço. Vou ter que arranjar um trabalho mais seguro que pague menos. Mas me recuso a parar de participar dos protestos. Meus filhos vão sempre comigo. Isso não pode acabar assim.

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Tradução do inglês por Marina Schnoor.