A vida numa cidade só para brancos na África do Sul

Matéria publicada originalmente na VICE UK .

A história nacional oficial da África do Sul desde 1994 é a de uma “Nação Arco-Íris”. Em teoria, então, os africânderes — descendentes dos primeiros colonos europeus na África do Sul — se encaixam tanto quanto qualquer outro grupo num país com 11 línguas oficiais, onde africanos negros podem se identificar também com sua língua e cultura mães (Mandela era xhosa; o atual presidente, Jacob Zuma, é orgulhosamente zulu).

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Mas os mitos fundadores e a história dessa “tribo branca” colocam o grupo, até mais que os brancos falantes de inglês, numa posição desconfortável com o resto do país. A identidade africânder tem seu coração na zona rural, sua cabeça na Bíblia e as mãos numa arma. Essa tensão foi evocada por escritores como Rian Malan e Antjie Krog, e músicos como Koos Kombuis, que durante a última década do Apartheid escreveu “Boer in Beton” (Fazendeiro [na Selva de] Concreto), uma música com a seguinte letra: “ Todo ancestral é um pioneiro / e eu não pertenço a este lugar/ Me sento em bares tarde da noite / mas não consigo mais lembrar o cheiro da terra“.

Para uma pequena parcela dos africânderes, a resposta para essa tensão tem sido recuar para o isolamento. No meio dos anos 80 ficou óbvio para todo mundo, menos os racistas brancos mais iludidos, que um governo da maioria estava chegando à África do Sul. Um pequeno grupo centrado ao redor do acadêmico de direita Carel Boshoff, genro do ex-primeiro-ministro Hendrik Verwoerd, concluiu que para que a língua e a cultura africânderes sobrevivessem, seu povo precisava viver isolado. Seu objetivo de longo prazo era a criação de um volkstaat, uma “pátria” separada africânder dentro do território presente da África do Sul.

Em 1990, Boshoff e outros compraram um pedaço de terra às margens do Orange River, junto com um punhado de casas construídas pelo Departamento de Água para os trabalhadores que estavam cavando canais de irrigação. Eles batizaram a cidadezinha de Orania, e se mudaram para lá no ano seguinte. Esse protótipo de pátria hoje tem uma população de um pouco mais de mil pessoas. (A população branca falante de africânder na África do Sul em 2011 era de 2.710.461 pessoas.)

Quando se mudou para a África do Sul em 2011 para trabalhar como jornalista, a escritora sueca Kajsa Norman ficou intrigada com Orania. Mas, como ela diz, seus amigos africânderes de Joanesburgo relutavam em falar sobre o assunto.

“Muitos africânderes evitam isso”, me disse ela quando nos encontramos em Londres para discutir seu novo livro, Bridge Over Blood River: The Afrikaners’ Fight for Survival. “Quando comecei a perguntar sobre a cidade para as pessoas, elas não queriam realmente reconhecer sua existência e tinham visões exageradas do que acontecia lá. As pessoas diziam ‘Eles promovem trabalho infantil’, ou ‘Eles são um bando de racistas’, o que provavelmente é verdade para alguns, mas a maioria das pessoas que têm opiniões muito fortes nunca estiveram lá e não sabem muito sobre a cidade.” Então Kajsa resolveu fazer uma visita, e acabou escrevendo um livro sobre a África do Sul no qual a história de Orania é um tema recorrente.

Mas o que uma cidade com mil nostálgicos do Apartheid diz sobre a África do Sul contemporânea? Norman questiona essa descrição, para começar. “Se essa fosse apenas uma comunidade racista, eles não seriam interessantes, e acho que eu não teria passado tanto tempo descrevendo o lugar”, ela disse. “Porque, sabe, racistas estão em toda parte.” Especialmente na África do Sul? “Com certeza.”

Então, apesar de não defender Orania, Norman tenta colocar a cidade num contexto sul-africano. Na África do Sul a segregação é a norma, ela apontou. Em certo sentido, Orania é mais um gueto branco do que as comunidades fechadas que podem ser encontradas nos subúrbios ricos das cidades sul-africanas. A diferença é que esses lugares selecionam pessoas pela riqueza, e apesar de o dinheiro não ver cor em teoria, na prática não é assim. “O problema não é Orania nesse sentido”, argumenta Kajsa, “o problema é a sociedade branca no geral”.

Moradores numa reencenação em Blood River.

De um modo mais perverso, ela argumenta, Orania tem algo valioso a ensinar aos sul-africanos brancos. Por causa do comprometimento de viver em isolamento, todo o trabalho em Orania é feito pelos moradores. Faxineiros, jardineiros, garis, frentistas, trabalhadores rurais: todos são brancos.

“Esse conceito de k*fferwerk [trabalho feito por negros], de ter outra pessoa para fazer o trabalho para você, é totalmente errado”, disse o diretor de Relações Públicas de Orania para Kajsa quando eles se conheceram. Kajsa sugere, meio seriamente, que os moradores urbanos brancos se beneficiariam colocando essa lição de Orania em prática. Como um estágio? Ela ri.

É uma vergonha que as pessoas de Orania só consigam realizar sua visão de selfwerksaamheid (autossuficiência) numa cidade-estado conservadora só de brancos onde sexo fora do casamento é proibido. No final das contas, Orania é uma rua sem saída, como o tabloide africânder Beeld concluiu em 2010. Brancos sul-africanos que são pessimistas quanto à situação do país e querem viver num estado racista de maioria branca geralmente se mudam para a Austrália, ou Inglaterra, não para Orania.

Por razões românticas com que é fácil simpatizar, Norman espera que a língua e a cultura africânderes sobrevivam, e cita o historiador Hermann Giliomee lamentando que seus netos preferiam falar inglês em casa. A ironia é que precisamente o isolamento de Orania significa que a língua nunca será salva pelos métodos deles. Ela vai sobreviver, mas talvez não na boca deles. A maioria dos falantes da língua na África do Sul são “de cor”, um rótulo aplicado (sem o mesmo estigma que tem nos EUA) para quem tem ancestrais mistos, predominantemente descendentes do povo khoisan e escravos da primeira colônia. Na verdade, os primeiros documentos em africânder foram produzidos por escravos e pessoas libertas na Cidade do Cabo no começo do século 19. Eles copiavam versos transliterados do Corão, usando escrita árabe. Se a língua tem um futuro, ele está em seu passado.

@HarryStopes

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