O sangue desce da cabeça de Kailane Campos, 11, manchando seu rosto e sua roupa branca. Voltando com a família de uma festa de candomblé no Rio de Janeiro, ela, naquele momento, pensou que morreria. Foi acudida pela avó e mãe de santo Katia Marinho. Do outro lado da rua, dois homens gritavam palavras de ordem empunhando uma Bíblia. O caso ocorrido no dia 14 de junho ganhou as manchetes nacionais, evidenciando o preconceito sofrido no Brasil pelas religiões de matriz africana, principalmente candomblé e umbanda.
Nos meios de comunicação, o ódio ao diferente não fica apenas na sessão de comentários do Facebook, das páginas de notícias e dos blogs. Em maio deste ano, as emissoras de televisão Rede Record e Rede Mulher foram condenadas a produzir e transmitir quatro programas como direito de resposta das religiões com origem na África por ofensas transmitidas em sua programação. Cada emissora terá de produzir material com duração mínima de uma hora e deverá empregar seus espaços físicos, equipamentos e profissionais para desenvolvê-lo após decisão do juiz Djalma Moreira Gomes, da 25º Vara Federal Cível de São Paulo/SP. Para o babalorixá Kazi Kaòbátìná, especialista em Antropologia da Religião pela Universidade de Sorbonne, a decisão da Justiça é um avanço. Kazi espera que o sistema siga trabalhando para fazer justiça ao povo negro, tanto em suas origens quanto em sua cultura, para enfim reparar os danos causados pelo período escravocrata.
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“Penso que a decisão judicial afeta negativamente a imagem das emissoras. É sempre problemática a possibilidade de um veículo de comunicação ser associado a uma postura preconceituosa, principalmente quando envolve questões religiosas e étnicas. As emissoras já possuem problemas devido ao vínculo com uma denominação neopentecostal. A decisão judicial agrava essa situação”, avalia o sociólogo Cláudio Novaes (Cásper Líbero).
Recentemente, o ator Eduardo Sterblitch surgiu na tela do Pânico fazendo black face – quando um ator/atriz se pinta de negro – ao interpretar o personagem “Africano”, que ridicularizava africanos e afrodescendentes por meio de gestos e falas; além disso, ele “recebia entidades”, formando, assim, um conjunto pejorativo em relação às heranças culturais, sociais e religiosas dos negros. O humorista publicou no dia 10 de agosto em seu Facebook um pedido de desculpas. O programa Pânico na Band afirmou: “O Pânico em nenhum momento quis ofender ninguém, tanto que no quadro em que o personagem foi ao ar, o Pânico’s Chef, tem diversos outros personagens de diferentes etnias, japonês, nordestino, por exemplo, que preparam pratos típicos das regiões [em] que moram, enfim, nenhum deles foi criado para ofender”. Em nota, a emissora mantém a mesma posição: “O Africano, interpretado pelo humorista Eduardo Sterblitch, é uma das caracterizações presentes no quadro Pânico’s Chef, sátira do programa de culinária MasterChef. Nesse quadro, há (…) mexicanos, chineses, árabes”. A Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, entidade ligada à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), encaminhou uma denúncia à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão do governo federal.
No Rio de Janeiro, traficantes convertidos a religiões de matriz evangélica expulsam praticantes de candomblédos morros e proíbem uso de guias – que são colares religiosos – e roupas brancas. Um estudo da PUC-Rio e do governo estadual aponta a existência de 847 terreiros no Estado; desses, 430 já sofreram ações discriminatórias e 132 foram atacados por evangélicos. A Secretaria de Direitos Humanos, órgão do governo federal, iniciou em 2011 o trabalho do Disque 100 para receber denúncias. Até 2014, foram realizadas 504 denúncias, tendo 597 pessoas como vítimas de preconceito – uma mesma denúncia pode ter mais de uma vítima. Das 345 vítimas que declararam sua cor, 210 são negras ou pardas, um total de 60,8% do grupo que declarou sua cor de pele e 35,2% daqueles que foram vitimados. Os evangélicos aparecem em segundo lugar no ranking, com 27% das denúncias; entretanto, as religiões de origem africana, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), são praticadas por apenas 0,3% da população.
Conforme a lei 7.716/89, o crime de intolerância religiosa não prescreve e é punido com pena de um a três anos de detenção, enquanto a Lei 12.288/2010 prevê: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
Preconceito enraizado
As religiões afro-brasileiras vieram com a diáspora africana na América Latina e começaram a ser difundidas nos navios negreiros. O culto aos orixás no Brasil tem diferenças em relação ao seu continente de origem. Nas últimas décadas do século XVIII, nasceram as primeiras grandes casas de candomblé em Salvador, como a Casa Branca e suas “descendentes” Gantois e Afonjá, enquanto a umbanda surgiu no início do século XX na região sudeste, se expandindo para o país em uma união de médiuns de candomblé e kardecismo. Para o babalorixá Kazi Kaòbátìná, “o preconceito está inserido em um contexto de racismo velado”, indo além da questão de intolerância religiosa por estar baseado no ódio racial. O líder religioso aponta que, enquanto seus membros sofrem hostilidades, “não se vê hodiernamente casos de agressões” a budistas e judeus. Compartilha o mesmo pensamento o rapper Emicida, que, no dia 21 de junho, na Virada Cultural de São Paulo, subiu ao palco com João Donato e Martinho da Vila (também acompanhado do grupo religioso As Águas de São Paulo) e fez um manifesto em relação às questões sociais envolvendo os excluídos, principalmente o povo do candomblé: “Não vemos serem incendiados templos budistas, sinagogas ou outros tipos de templo que abriguem alguma fé que seja diferente do cristianismo. Não são crianças que acreditam em Vishnu que recebem pedradas por colocar sua fé em suas vestimentas”. O cantor reforça que o racismo no Brasil é uma “construção secular”, o que leva a sociedade a demonizar o negro de forma recorrente e imperceptível para muitos brancos e alguns negros. Dos artistas da nova geração, o rapper é um dos poucos que tem se manifestado sobre esse assunto ou sobre os dilemas brasileiros de uma forma geral; logo, ele crê que isso se deve ao clima de “muita ignorância e agressividade” associado a “pouca gente disposta ao diálogo”, restando posições extremistas e superficiais. “Os meios de comunicação têm uma culpa gigantesca nesse processo. Então, eu, embora discorde, compreendo o fato de meus colegas silenciarem muitas vezes. Cada vez que [alguém] se manifesta em prol de pluralidade de opiniões, vem uma onda de ódio – em geral, virtual, com a qual nem todos sabem lidar.”
A lei 10639/03 determina a obrigatoriedade do ensino de História Africana nas escolas brasileiras, porém o historiador Ivan Poli (USP), autor de Antropologia dos Orixás, afirma que “o tema em si é invisível em nosso universo escolar e acadêmico” brasileiro, denotando mentalidade colonizada defensora da existência de heróis apenas na história europeia. O etnomusicólogo francês Xavier Vatin, pupilo do fotografo francês Pierre Verger, afirmou em entrevista à VICE: “O que atrai pesquisadores do mundo inteiro há mais de um século para o Brasil é a cultura negra. Então, como estamos num contexto de discriminação e racismo ligado à intolerância religiosa e num período em que o candomblé ainda sofre tanto preconceito, é importante mostrar o quanto essa cultura negra, por mais que às vezes seja estigmatizada aqui no Brasil, é valorizada no exterior”. A esse quadro, Novaes agrega os valores do processo de globalização baseados em conceitos norte-americanos exportados por intermédio de filmes, músicas e seriados, havendo pouco espaço para a produção cultural local, já que as emissoras privadas se preocupam “com lucro, e não questões culturais”, atitude diferente das públicas, que mostram suas contribuições para a construção da identidade brasileira.
Para o babalorixá Kazi Kaòbátìná, a atitude da imprensa quanto às religiões afro é a de um “mercado de notícia, sem posicionamento sério”, devido a uma busca desenfreada por audiência baseada em senso comum e desprovida de imparcialidade. Emicida diz que a imprensa brasileira possui uma visão única quanto a estereótipos, usando jogos de palavras, “como no caso do maluco lá (EUA) que entrou atirando na igreja: os jornais de lá chamando de massacre, e no Brasil chamam de ‘confronto’.”. O autor da saga Deuses de Dois Mundos, PJ Pereira, vê grupos dentro da imprensa nacional: um pequeno, que defende as questões afro; um menor, ligado a veículos neopentecostais, que as critica; e uma grande maioria, “que ignora, não sei se por falta de interesse ou por medo da confusão, porque o povo que tem raiva é muito barulhento”.
Para Ivan Poli, as tradições de matriz africana trouxeram valores civilizatórios presentes em diversos patrimônios da cultura brasileira, independentemente de religião. O próprio Emicida defende que sua música “parte do ritmo e da poesia, que é algo que a diáspora africana espalhou pelo mundo e influenciou tantas culturas”. O artista ainda ressalta que o Brasil “deve [não só] à cultura afro-brasileira, mas à cultura indígena também”, passando por tópicos desde fé até gastronomia, além de frisar que “a ausência do tambor já nos deixaria perdidos”. PJ Pereira destaca que houve um período no qual se viam traços fortes da mitologia afro em trabalhos culturais, “especialmente por conta do trabalho do Jorge Amado”. No entanto, “a coisa esfriou, e veio a explosão das seitas neopentecostais e seu discurso de medo. A africanidade virou símbolo de danação”.
A relação com outras religiões
São poucos os casos de conhecimento público de grupos evangélicos abertos ao diálogo com religiões afro. O pastor Ed René Kivitz, da Igreja Batista de Água Branca (IBAB), é favorável: para ele, “hoje, no Brasil, os segmentos religiosos disputam entre si não apenas um lugar ao sol no mercado da fé, como também a hegemonia de representatividade”, colocando religião contra religião e até mesmo grupos semelhantes em disputas de poder e fiéis. Segundo o pastor, essa postura se distancia dos ensinamentos do cristianismo, levando alguns de seus fiéis a atos violentos que produzem vítimas e ferem dogmas, ritos e códigos morais afrontados por aqueles que se afastarem de sua matriz religiosa. “A experiência espiritual deveria cooperar para a construção de uma sociedade justa e pacífica, pois todas as tradições religiosas afirmam a solidariedade, o respeito à dignidade humana e a generosidade – e todas afirmam o amor como a mais elevada virtude”, defende.
O babalorixá Kazi Kaòbátìná partilha da mesma visão: de acordo com ele, se as lideranças neopentecostais se colocassem contra os movimentos de intolerância, haveria menos problemas com os seguidores, porque, mesmo quando não são o foco da incitação ao ódio, as religiões afro sofrem com uma postura “conivente e omissa”. Além disso, a falta de diálogo e também de conhecimento profundo sobre outras religiões propagariam visões errôneas, tanto que o babalorixá atesta que muitas religiões colocam o orixá Exu em sincretismo com o diabo cristão e os praticantes de candomblé como feiticeiros e macumbeiros.
Décadas atrás, as relações eram mais cordiais, como na vez em que Dom Lucas Moreira Neves foi fotografado servindo café para o rei da nação Ketu, ramo do candomblé da África Ocidental ligado à cultura yorubá. Kazi Kaòbátìná crê que o diálogo com lideranças católicas esteja mais desenvolvido, não havendo agressões vindas de católicos. Kazi conta que eles se sentem até mesmo “acolhidos” por meio de campanhas da fraternidade e cultos ecumênicos, ressaltando nomes como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Frei Betto e Frei Carlos Mesters. No entanto, o candomblecista não encontra eco em lideranças neopentecostais.
O padre Júlio Lancellotti também vê relações respeitosas, embora não negue a existência de conflitos baseados em intolerância. Ele realça haver uma necessidade da sociedade de se manter alerta para as minorias não serem subjugadas pelo fundamentalismo – que, para ele, há em todas as religiões e se trata de um grande mal para a sociedade. “Os homens matam em nome de Iavé, o Deus judeu; [de] Alá, o Deus islâmico; e também [d]o Deus cristão. Como disse (José) Saramago, quem mata não é Deus, é ‘o fator Deus’; isso é, o Deus deturpado pelo ser humano”.
Estado Laico e liberdade religiosa
Em resposta à VICE, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) alega coordenar o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e atua em conjunto com órgãos do governo federal desde 2013, com ações de segurança alimentar e tombamento de terreiros. Entre as ações feitas pelas diferentes pastas, está a participação no Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa: desenvolvido pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH), ele é responsável por promover reconhecimento e respeito à diversidade religiosa e defender o direito ao livre exercício das diversas práticas religiosas. O órgão também afirma estar em contato para desenvolver trabalhos junto ao Ministério da Cultura.
Entretanto, não há representantes de religiões afro em cargos eletivos – diferentemente das igrejas neopentecostais, cujos membros do mundo político compõem até a chamada Bancada Evangélica no Congresso. Inclusive, o líder da casa, Eduardo Cunha (PMDB), já realizou um culto evangélico na Câmara dos Deputados. O proselitismo, para Kazi Kaòbátìná, é um dos grandes entraves para a liberdade religiosa, tanto no poder executivo quanto legislativo.
Tal posição coloca em cheque a laicidade do Estado Brasileiro determinado pelo Artigo 5º da Constituição. Segundo o Pastor Kivitz, a nação brasileira é em sua maioria cristã, mas a “religião não é algo a respeito do que o Estado legisla. O Estado não pode impor uma religião ao cidadão, tampouco pode tolher o cidadão de praticar a sua crença. O governo deve garantir essa isonomia e punir nos termos da lei todo e qualquer abuso e desrespeito”.
O historiador Ivan Poli (USP) aponta que “esse é um dos piores momentos para as religiões afro e [suas] tradições. O apedrejamento da menina no Rio de Janeiro representa, antes de tudo, o apedrejamento de nossos valores civilizatórios de matriz afro, e vai muito além do que se entende por intolerância religiosa, e se dá de fato por razões de imposição de outros valores civilizatórios alheios a nossa tradição cultural nacional”.
“O que chamamos de ‘liberdade religiosa’? O povo tem liberdade para viver? Há liberdade e condições de vida para que as pessoas não sejam oprimidas. Às vezes, a discussão de liberdade religiosa fica um pouco elitizada. Então, antes de termos liberdade religiosa, precisamos de liberdade humana para viver com dignidade”, completa o padre Júlio Lancellotti. Recentemente a prefeitura de Salvador reconheceu os direitos jurídicos e administrativos dos terreiros de candomblé da cidade.