Os Endurecidos Pelo Frio em Kiev

Anatoly e outros guerreiros da EuroMaidan. Todas as fotos por Giles Clarke.

O acampamento da EuroMaidan é uma cidade de barracas espalhada pelo centro de Kiev, que vai da Rua Khreschatyk até a Praça da Independência e alcança a antiga entrada do estádio Dynamo Kiev. Há semanas, na entrada queimada do estádio, a violência entre os manifestantes antigoverno e as forças de segurança nacionais tem sido a mais intensa – e mortal. Os enfrentamentos de quinta-feira em frente ao parlamento ucraniano pontuaram as longas semanas de impasse entre os manifestantes e as forças de segurança. Pelo menos três pessoas foram mortas pela polícia e alguns relatos indicam sete mortos, alguns atacados por capangas pagos pelo governo. Neste momento, testemunhas dizem que a EuroMaidan está sob ataque – a polícia está tentando desocupar o acampamento com franco-atiradores e granadas. Kiev está em chamas agora.

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As manifestações voláteis na capital começaram na noite de 21 de novembro de 2013, depois que o governo ucraniano sinalizou que não ia assinar um Acordo de Associação e um Acordo de Livre Comércio com a União Europeia. Em vez disso, a liderança política do país quis estreitar os laços econômicos com a Rússia. Naquela noite, uma enorme multidão se reuniu na Praça da Independência e tomou prédios do governo que estão ocupados desde então. Os ocupantes criaram uma elaborada rede de comunicação e estabeleceram vários grupos responsáveis pelas tarefas diárias dentro da ocupação.

Dez semanas depois, pessoas têm chegado de todas as partes do país e erguido fileiras de barracas militares grandes, muitas contando com cinco fogões e cozinha. Essa parte fechada da cidade, que abriga um exército de homens e mulheres que oferecem apoio e número, agora é globalmente conhecida como EuroMaidan.

Estive em Kiev no começo de fevereiro, semanas depois que a atenção do mundo tinha se desviado dos protestos da Ucrânia para as eleições na Tailândia e depois para as Olimpíadas de Sochi. Quando caminhei da praça lotada para a linha de frente pela primeira vez, fui recebido por uma paisagem de destruição. Manifestante vêm enfrentando a fileira estática da polícia aqui por mais de dois meses, nesse campo de batalha de escombros congelados, exigindo a renúncia do presidente Yanukovych e a criação de laços econômicos com a União Europeia. Apesar de os manifestantes terem ganhado publicidade por sua tomada muito bem calculada de prédios do governo, no começo de janeiro, a linha de frente que testemunhei – endurecida pelo implacável inverno ucraniano – foi a resistência ao poder autoritário mais visualmente impressionante que vi em anos.

Era uma visão brutal e assustadora – numa temperatura de menos quatro gaus, o lugar mais parecia uma versão moderna e em miniatura da Batalha de Stalingrado, o confronto da Segunda Guerra Mundial entre forças soviéticas e do Eixo que durou mais de cinco meses. Enquanto eu caminhava por esse campo de batalha ainda fumegante, avistei de longe os soldados civis (chamados de “guerreiros” pelos outros manifestantes da EuroMaidan), todos sujos de fuligem e vestidos com diversas armaduras improvisadas. Muitos estavam amontoados e sussurrando entre si enquanto tomavam chá, ou permaneciam parados em frente à parede de pneus encarando o inimigo. Cerca de 68 metros à frente, a linha da polícia esperava vestida com equipamentos da tropa de choque, segurando escudos e cassetetes entre a fumaça. Atrás deles, estava a Berkut – as forças especiais da polícia ucraniana – os lendários canalhas que já tinham matado quatro manifestantes e ferido centenas desde o começo do levante.

Enquanto eu observava esses guerreiros da linha de frente naquele final de tarde gelado, fiquei embasbacado com tudo o que vi. Estamos em 2014, mas mais parece uma outra era.

Quando os manifestantes construíram as barricadas de quatro metros de altura, toscas, porém, efetivas, eles encheram sacos de areia com neve e os empilharam em carros batidos e ônibus queimados, juntamente com outros escombros, para formar as linhas de resistência.

Muitos dos homens na linha de frente são de várias partes de Kiev e não recebem nada para estar aqui. Outros vêm de cidades ucranianas sufocadas e esquecidas por décadas de governos corruptos.

“Não vamos sair daqui até que o presidente saia de lá – e vamos lutar com nossas vidas caso eles ataquem de novo”, disse um homem chamado Anatoly, que nasceu em Kiev, mas morou na Lituânia nos últimos dez anos. “Saí daqui dez anos atrás para ser um marinheiro comercial – não aguentei ficar, mas agora quero voltar e viver aqui com minha família. É por isso que estou lutando neste lugar. Vou morrer aqui se for preciso.”

Esses homens têm um olhar de aço. Alguns dias antes, franco-atiradores da polícia especial derrubaram dois deles. A tensão é grande no ponto final da resistência.

Enquanto isso, para não deixar os policiais entediados, os manifestantes colocaram uma TV grande e de tela plana no topo da barrica e exibem desenhos animados e programas de notícia independentes.

Enquanto eu estava parado entre os muros de barricadas, naquele acampamento num ferro-velho enfumaçado, pensei nos outros locais de protesto que visitei nos últimos anos e percebi que nunca tinha visto nada parecido com o que vi aqui. Isso é, realmente, uma zona de guerra. Fiquei desconfortável ao me dar conta de que, a qualquer momento, as coisas podiam piorar muito.

Numa noite, conversei com um homem alto chamado Roman. Ele era o comandante do Splina, um grupo de segurança que estava numa barraca do lado de fora das barricadas. Entre chá quente e barrinhas energéticas, ele falou sobre o papel e a presença do Splina. Ele me disse que seus guardas tomavam conta da resistência da EuroMaidan com uma força voluntária de três mil homens mobilizados dentro e fora de Kiev. São muitos os rumores sobre sua origem e ligações políticas, mas, por enquanto, eles só mostraram ter uma coisa em mente.

O comandante foi franco ao explicar sua missão: “Estamos aqui para proteger as pessoas das forças do governo. A Bertuk é a responsável pelas mortes dos nossos na semana passada – e eles vão tentar de novo, eles vão pagar. Sim, estamos armados. Sim, estamos em grande número. E, sim, estamos preparados para morrer”. Perguntei a ele sobre os relatos de ataques a outros manifestantes. “São mentiras criadas e espalhadas pela imprensa do nosso governo corrupto.”

“Só estamos interessados em lutar contra a Bertuk e os números dela são quatro mil aqui em Kiev e mais mil espalhados pelas áreas periféricas. A polícia civil não é um problema para nós, e é a Berkut que será nosso alvo se formos mobilizados.”

A Bertuk pode liderar a repressão oficial à EuroMaidan, mas os capangas pagos pelo governo conhecidos como titushkis foram os primeiros a atacar os manifestantes no começo da ocupação. Os titushkis são pagos por escala. Para simplesmente aparecer num protesto pró-governo eles recebem cerca de dez dólares, no entanto, para encenar e tomar parte na violência, eles recebem supostamente cerca de $90 por dia. Mas Roman praticamente os desconsiderou. “Alguns são perigosos, mas acreditamos que eles estão acabando – o governo não consegue sustentar as horas extras da polícia e da Berkut além de financiar um grande exército civil”, disse o líder do Splina.

Também perguntei sobre os oligarcas, que estariam considerando ajudar a financiar uma oposição contra os manifestantes. Ele respondeu: “Os grande homens de negócio estão começando a entender que esse governo não pode durar muito e eles não vão apostar no cavalo perdedor. Quanto mais tempo isso continuar, mais difícil será para os negócios crescerem”.

O sistema financeiro ucraniano já começou a sentir os efeitos da turbulência e da incerteza política. Na primeira semana de fevereiro, a moeda do país, a grívnia, despencou para o ponto mais baixo contra o dólar em cinco anos, e a agência de crédito Fitch rebaixou o merecimento de crédito do país em razão do “enfraquecimento da confiança”.

Anatoly, meu novo amigo da linha de frente, não acha que a simples pressão econômica pode colocar o futuro da Ucrânia a favor dos manifestantes. “Depende do que os Estados Unidos e Rússia decidirem agora”, ele disse. “Não é mais sobre a Ucrânia, mas sim, uma luta entre superpotências. Somos só peões no jogo.”

No caminho para o aeroporto em meu último dia em Kiev, o táxi passou por 15 ônibus cheios, estacionados à beira da rodovia na periferia da cidade. O taxista apontou para os homens dentro dos ônibus e disse, com fatalismo: “Titushikis”.

Se eles estavam indo, voltando ou apenas esperando, era impossível saber de dentro do táxi. Pensei em Roman, seu grupo Splina e no resto dos manifestantes que conheci. Grande parte da EuroMaidan é uma questão de esperar no frio congelante. Será que o degelo da primavera trará concessões do governo ou ainda mais violência?

Eu não estarei mais por perto para descobrir.