No último mês, o Governo Federal admitiu o que médicos têm sugerido há tempos: o Brasil vive uma epidemia de sífilis. Assim como os números do desemprego no país, a taxa de infectados, disseram, não para de crescer. Entre as gestantes, um dos grupos de maior risco, ela subiu 202% desde 2010.
O Ministério da Saúde então resolveu agir. Iniciou há alguns dias uma campanha para avisar a população dos perigos da doença. O alerta, afirmam os responsáveis, é importante porque é preciso acabar com a desinformação e avisar os jovens brasileiros que não está dando muito certo esse negócio de não usar a camisinha.
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Os dados mostram que os casos de sífilis vêm aumentando em todas as faixas da população brasileira ao longo dos últimos anos, mas explodiu entre 2014 e 2015. Entre os adultos, ela cresceu 32,7% nesse período, chegando a 65.878 casos no ano passado. Os casos de sífilis em gestantes subiram 20,9%, e a sífilis congênita, em bebês, cresceu 19%, chegando a 19.228 casos em 2015. Assim, de cada 1.000 nascidos vivos, 6,5 portavam a bactéria.
O Brasil não é o único que anda sofrendo com a doença, mas é, sem dúvida, um dos principais afetados. “Essa epidemia acontece no mundo todo. A humanidade está passando por um aumento na transmissão de sífilis”, diz Ricardo Vasconcelos, infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Mas no Brasil esse aumento é explosivo e atinge todos os grupos populacionais. Vemos isso no dia a dia nos nossos laboratórios.”
A sífilis é causada pela bactéria Treponema pallidum, que pode ser transmitida tanto por meio da relação sexual quanto da mãe para o filho durante a gestação. A longo prazo, pode provocar lesões ósseas, neurológicas e cardíacas, levando à cegueira, paraplegia, demência e morte. O pior acontece com os recém-nascidos contaminados durante a gravidez, que podem ter danos semelhantes aos do Zika. Sofrem com má-formação, surdez, deficiência mental. Muitas vezes a mãe pode até sofrer aborto espontâneo.
“A penicilina é uma droga muito usada, mas que custa muito pouco, na faixa de centavos. Por isso os laboratórios não se interessam em produzir”
Segundo os cientistas, o principal motivo para a epidemia é que, nos últimos anos, os jovens deixaram de usar camisinha em suas relações sexuais. “Não é só a sífilis, mas todas as DSTs têm aumentado, como clamídia e gonorreia”, diz o infectologista. “Até mesmo o HIV, que parecia estacionado, voltou a crescer nos últimos três anos. Como a sífilis tem transmissão mais fácil, sua taxa explodiu.”
Nas últimas décadas, dizem os especialistas, o antigo preconceito contra a Aids começou a ser demolido. Ela já não é mais sinônimo de morte e os novos tratamentos permitem que os pacientes soropositivos vivam muitos anos portando o vírus. “Na década de 90, os jovens tinham pavor de pegar HIV. Aos seis anos de idade, já ganhavam o primeiro pacote de camisinha da mãe”, diz Vasconcelos. “Naquela época, era comum conhecer alguém que morreu com a doença. Essa geração perdeu até mesmo ídolos, como Freddie Mercury e Cazuza, por causa do vírus.” O que é uma ótima notícia se tornou um problema conforme as novas gerações foram deixando a camisinha de lado. “É justamente entre os meninos de 15 a 19 anos que hoje aumenta o número de HIV e outras DSTs”, afirma o infectologista.
O agravante, segundo os médicos, é que a geração que deixou de se proteger passou a ter uma facilidade inédita para fazer sexo sem compromisso. Se antes um jovem em busca de uma rapidinha precisava ir atrás de prostitutas ou até uma sauna, lugares mais ou menos controlados, hoje ele consegue isso do sofá de casa, pelo computador ou celular. “Essa tendência teve início nos anos 2000, com o bate-papo do UOL, mas se tornou mais forte com os aplicativos que existem hoje, como Tinder e Grindr”, diz Vasconcelos. “Não é que os aplicativos promovam o sexo sem camisinha. Mas um jovem que já não costuma se proteger tem uma facilidade muito maior de fazer sexo, e de se expor à doença.”
Para complicar ainda mais a situação, a sífilis é uma DST que pode ser transmitida pelo sexo oral. “Ou seja, mesmo quando a pessoa pensa estar fazendo sexo seguro, ela pode estar em risco se tirar a camisinha na hora do oral”, diz a infectologista Eliana Bicudo, da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Em meu consultório, recebo pacientes que estavam sendo tratados contra sapinho, mas descobriram que era sífilis. Toda vez que eles faziam sexo oral sem proteção, podiam estar transmitindo a bactéria.”
Outro fator que aumenta a transmissão da sífilis é que a infecção é quase silenciosa em seus primeiros momentos. Ela geralmente aparece como uma pequena ferida no pênis, na vagina ou no ânus, que não dói e não coça. “Muitas vezes a ferida surge e o paciente resolve procurar o médico. Mas ela começa a sumir e ele pensa que está se curando sozinho”, diz a infectologista. “Mas, na verdade, continua carregando a bactéria e, se não se tratar, pode estar infectando outras pessoas.”
Meses depois, começam a aparecer os sintomas secundários, que são manchas no corpo, principalmente, nas palmas das mãos e plantas dos pés. É nessa fase que os médicos costumam fazer a maioria dos diagnósticos. Mesmo assim, alguns pacientes confundem com alergias e não procuram o tratamento. Apenas anos depois é que os sintomas mais sérios aparecem. “Hoje em dia, temos visto um número cada vez maior de pacientes chegando aos consultórios nesse estágio, com lesões oculares ou em estado demencial”, diz Bicudo. “Até esses sintomas aparecerem, o indivíduo ficou anos transmitindo a doença.”
A solução, dizem os médicos, é que os próprios indivíduos assumam a responsabilidade pelo seu comportamento e passem a gerenciar sua vulnerabilidade à doença. “O ideal é que usem camisinha nas relações sexuais. Mas, se não usarem, mesmo no sexo oral, precisam fazer o teste”, diz Ricardo Vasconcelos. “A pessoa tem que aprender a avaliar seu próprio risco e, se perceber que está vulnerável à doença, deve fazer o teste periodicamente.”
A detecção da sífilis é feita por meio de testes rápidos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as gestantes, os testes têm de ser feitos durante o pré-natal. “Muitas pessoas não querem fazer o exame, com medo de que dê positivo. Essas são as que mais precisam fazer o teste”, diz Vasconcelos.
Prateleiras vazias
Depois do diagnóstico da doença, é a hora de começar o tratamento. Mas — para piorar uma situação que já seria alarmante —, o principal remédio contra a sífilis é a penicilina, que está em falta nas prateleiras desde 2014. Segundo os especialistas, isso acontece por causa do preço do remédio. Não porque ele esteja caro demais, mas justamente por ser muito barato. “A penicilina é uma droga muito usada, mas que custa muito pouco, na faixa de centavos. Por isso, os laboratórios não se interessam em produzir”, diz a infectologista Eliana Bicudo. “As indústrias vinham avisando que ia faltar o remédio, mas o governo não fez nada.”
A falta de penicilina aconteceu num momento grave, justamente quando o número de novos casos de sífilis disparava. “A outra opção de tratamento é um comprimido que precisa ser administrado ao longo de semanas, duas vezes por dia”, diz Bicudo. “Quando temos uma doença benigna em seu estágio inicial, com intervenção complicada, sabemos que o índice de tratamento cai. E os pacientes continuam transmitindo a bactéria.”
A falta do remédio é ainda mais grave para os bebês que adquiriram a doença durante a gestação. Nesse caso, o único tratamento recomendado é com a penicilina cristalina, que tem de ser aplicada de 4 em 4 horas e também está em falta.
Agora, com o reconhecimento da epidemia pelo governo, a situação deve começar a melhorar. “O Ministério assumiu o compromisso de erradicar a sífilis congênita, e não tem como fazer isso se não tiver penicilina. Ele já se comprometeu a importar o medicamento”, diz Bicudo. Isso, somado às campanhas de prevenção, que lembrem os jovens da importância de usarem camisinha, pode ajudar a diminuir o índice nos próximos anos.