Drogas

Os médicos que acabaram viciados em suas próprias drogas

Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.

Em 2015, Julien Warshafsky foi encontrado desmaiado depois de injetar o poderoso opiáceo fentanil. Mas ele não era um usuário de heroína ou um psiconauta da dark web. Médico residente, Warshafsky tinha tido uma overdose no trabalho, cinco minutos depois de atender um paciente no Medway Hospital em Kent.

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No final de junho, um inquérito revelou que o médico, que sofria de depressão, injetava regularmente sobras de fentanil há quatro anos enquanto fazia residência em anestesiologia em dois hospitais entre 2012 e 2015. Apesar de ter sido pego duas vezes roubando drogas e duas vezes tendo overdose no trabalho – ele também desmaiou depois de injetar fentanil no Royal Surrey County Hospital em Guildford – Warshafsky conseguiu convencer os chefes de que seu uso de drogas não era um problema. Em 2016, ele morreu aos 31 anos de uma overdose fatal enquanto estava de licença médica, sem nunca ter recebido tratamento para seu vício.

Jovens médicos são conhecidos por pegar pesados com drogas. Mas embaixo do jaleco branco de respeitabilidade, a coisa é mais sombria; parece que há um fardo que vem de ter nas mãos a chave para o armário de medicação da nação. Com um acesso tão privilegiado para uma variedade de drogas potentes, há todo um histórico de médicos se viciando nas ferramentas de seu trabalho, apesar desse continuar sendo um assunto tabu.

Em seu artigo de 2013 “Dr. Junkie”, a psiquiatra Victoria Tischler dizia que “fatores históricos, culturais e profissionais contribuem para o estigma e segredo quando se trata de vício na profissão médica”. Ela dizia que o relato mais honesto sobre vício na medicina é um conto do escritor russo Mikhail Bulgakov, um ex-médico, chamado Morfina, onde ele documenta o declínio de um médico viciado.

Em 1909, não muito depois que a venda de preparados de opiáceos, como o láudano, foi proibida na Inglaterra, o médico Oscar Jennings afirmava que vício em morfina era responsável por um quinto de todas as mortes na profissão médica. Em 1924, o médico alemão Louis Lewin sugeriu que não só 40% dos médicos, mas também 10% de suas esposas, eram viciados em morfina.

Em 1935, estatísticas oficiais do governo estimavam que havia 700 “viciados” em morfina na Inglaterra; disso, um sexto eram profissionais de saúde, os guardiões dos narcóticos. Meu avô, Pat Daly, era um desses médicos viciados. Um clínico geral trabalhando em Midlands e no norte da Inglaterra entre os anos 1930 e 1950, Pat foi proibido de prescrever, ter e fornecer drogas controladas sob o Dangerous Drugs Act de 1937, depois que parte de seu suprimento sumiu. Pat e a esposa, Betty, eram viciados em cocaína e morfina, e ela foi uma das primeiras pessoas a ser tratada com metadona na Grã-Bretanha.

E não era só o médico comum chapando com seu próprio suprimento. No meio dos anos 90, foi descoberto que enquanto trabalhava como consultor sênior da reforma da saúde pública do governo de Margaret Thatcher, o Dr. Clive Froggatt forjou centenas de receitas de diamorfina (a heroína farmacêutica) para sustentar seu hábito secreto.

Apesar do monitoramento bem mais cuidadoso de drogas controladas desde a condenação do clínico geral Harold Shipman, que estocava diamorfina que usou para matar pelo menos 250 pacientes usando receitas falsas, médicos ainda roubam drogas. Nos últimos quatro anos, o Conselho Geral de Medicina britânico investigou 89 médicos por ofensas envolvendo drogas, incluindo roubo e desvio.

Os hospitais também estão sangrando drogas. Em seu relatório mais recente sobre gerenciamento de drogas controladas no sistema de saúde, a Care Quality Commission apontou que o feedback de sua rede de inteligência de drogas tinha desenterrado “um aumento nos incidentes envolvendo funcionários de saúde desviando drogas controladas para uso pessoal”. Cinco relatórios de hospitais públicos revelaram que, entre 2013 e 2017, eles tinham investigado um total de 428 incidentes envolvendo opiáceos perdidos ou roubados, como heroína farmacêutica e fentanil. Pelo menos 85 funcionários de hospitais público na Inglaterra foram suspensos por supostamente roubar drogas em 2013 e 2014.

Poucos desses casos acabam públicos. Mas alguns geram manchetes. Em maio, a enfermeira Amie Heller foi demitida depois de ser pega roubando grandes quantidade de opiáceos do Royal Blackburn Hospital. Ela vendia as drogas roubadas para amigos para financiar seu próprio vício em cocaína. Em março, Kimberley Cooper recebeu uma sentença de prisão por roubar morfina em 40 ocasiões, enquanto trabalhava como enfermeira na ala de ginecologia do Lincoln County Hospital. O tribunal ouviu que Cooper usou morfina para tratar seus próprios problemas médicos, acabou viciada, e começou a roubar a droga um mês depois de começar no trabalho.

Nos EUA, o podcast “Dirty John” do LA Times destacou como, quando enfermeiro de anestesiologia, o golpista John Meehan roubou grandes quantidade de opiáceos enquanto trabalhava em hospitais de quatro estados americanos no começo dos anos 2000. Enquanto isso, o ex-técnico médico David Kwiatkowski pegou 39 anos de prisão em 2013 depois de roubar seringas do anestésico fentanil, injetar em si mesmo, e substituir a droga com solução salina. Em vez de fentanil, os pacientes recebiam uma dose de mistura salina e do sangue contaminado com hepatite C de Kwiatkowski, o que causou um surto do vírus em New Hampshire.

Da esquerda para a direita: Dr. Clive Froggatt (screenshot via BBC); Amie Heller (foto da polícia); David Kwiatkowski (Promotoria dos EUA).

Quase todo dia por dois anos, Tony* roubou drogas enquanto trabalhava como enfermeiro em hospitais de Midlands. Entrando no trabalho no meio dos anos 2000 já viciado em heroína de rua e crack, ele me disse que estar cercado de narcóticos era parte do plano.

“Subconscientemente eu sabia que estaria cercado de drogas antes de embarcar na carreira de enfermeiro”, diz Tony, agora com 50 e poucos anos. “Quando comecei a trabalhar no hospital, havia drogas que eu sabia que podiam me ajudar quando senti que a heroína estava fazendo mal. Então comecei a tomar valium e DF118s [dihidrocodeína] discretamente na minha ala.

“Meu vício foi facilitado porque eu era enfermeiro. Eu tinha acesso fácil a outras drogas para suplementar meu hábito. Mais tarde, no meu pensamento nebuloso, decidi usar drogas do hospital para tentar me desintoxicar de heroína em casa. Então comecei a roubar diazepam intravenoso, tramadol e agulhas para cinco dias de tratamento. Tentei isso algumas vezes, mas acabava usando tudo de uma vez. Raramente as drogas duravam mais de 48 horas. Era muito contraprodutivo.”

Na época, Tony trabalhava numa ala de cardiologia, onde morfina era usada para casos de ataque cardíaco. “Os médicos receitavam regularmente doses de 10mgs de morfina, mas só injetavam 5mgs. O resto ficava na seringa para ser jogado fora, então eu pegava para mim”, ele diz. “A morfina em si não é tão forte, então eu precisava fazer isso mais que uma vez.”

Era exatamente assim que a especialista em cirurgia plástica Samia Naz Niddiqui roubou morfina em 200 ocasiões enquanto trabalhava no York District Hospital, em 2014. Ela pegava morfina que sobrava e injetava em si mesma no final de seu turno, até ser pega por seguranças e receber uma sentença de prisão.

Tony não foi pego. “Era fácil demais”, ele diz. “Se minha ala ficava sem drogas, eu simplesmente ia para outra ala e pedia mais. Facilitei ainda mais as coisas me voluntariando para ser o chefe de estoque da minha ala, então acabei pegando direto da farmácia do hospital, sem ninguém fazer nenhuma pergunta. Mas meu trabalho foi sendo prejudicado. Senti sono quando estava cuidando de um paciente com uma stent. Ele apertou o botão de emergência próximo da cama quando me viu dormindo, e acordei com a equipe de emergência entrando correndo no quarto do paciente. Foi meu último dia como enfermeiro. Meu chefe disse algo tipo ‘Sei que alguma coisa está acontecendo; não volte aqui enquanto não estiver melhor’, então fiquei de licença por um longo tempo, depois me demiti enquanto minha vida saía do controle.”

Pesquisas mostram que médicos não têm mais chances de se viciarem que o resto da população, mesmo tendo um dos trabalhos mais estressantes. Mas há fatores de risco como depressão e acesso fácil a drogas que, quando combinados, representam mais chances desses médicos acabarem presos numa ciclo de roubo e vício.

Não é coincidência que os médicos com mais chances de roubar drogas e se viciarem sejam aqueles que trabalham mais próximos delas. Anestesistas – aqueles médicos calmos que fazem piada sobre te nocautear para você não sentir nada quando te cortarem – têm quase três vezes mais chance de se viciarem, acabarem na reabilitação e morrerem prematuramente do que outros profissionais de saúde. Nos últimos dois anos, a Associação de Anestesiologistas britânica vem se preocupando cada vez mais com o número de casos de suicídio entre anestesistas, e começou uma iniciativa para abordar a questão. É uma profissão altamente estressante, onde um pequeno erro pode causar uma morte, mas a principal razão para esses profissionais serem mais vulneráveis a problemas com drogas que outros médicos é porque as principais ferramentas de seu trabalho são opiáceos potentes.

Para anestesistas, fentanil é o equivalente a uma chave de boca para um encanador, e eles têm acesso sem precedentes a essas drogas, mais que qualquer outro profissional de saúde. Eles testemunham os efeitos dessas drogas nos pacientes diariamente, e é nessas drogas que alguns deles acabam viciados. Anestesistas vivem e literalmente respiram opiáceos poderosos. Alguns pesquisadores chegaram a uma “teoria de exposição”, que sugere que traços de opiáceos no ar exalados pelos pacientes na sala de operação podem lentamente sensibilizar anestesistas e os levar ao vício. Mas a teoria mais provável é que o vício venha mesmo do coquetel de estresse e acesso.

A Associação dos Anestesiologistas, que representa 11 mil anestesistas no Reino Unido, aceita que há um problema com abuso de drogas entre esses especialistas. “Anestesiologistas têm mais chances que outros médicos de abusar de narcóticos como droga preferida, de abusar de drogas intravenosas e de se viciar em mais de uma droga”, eles escreveram num relatório de 2011. “O fato de anestesiologistas terem acesso fácil a uma ampla variedade de drogas psicoativas pode influenciar na probabilidade de experimentá-las. Depois de se tornarem dependentes, continuar trabalhando ajuda os médicos viciados a manter seu suprimento de drogas.”

Contos sobre roubo de drogas e vício são parte da paisagem da anestesiologia há tempos; e provavelmente não ajuda que, até os anos 1980, era costume entre anestesistas cheirar as drogas antes de usar nos pacientes. Um anestesiologista agora aposentado me disse que esteve envolvido profissionalmente em quatro casos de “mau comportamento” durante sua carreira.

“A extensão do meu envolvimento no primeiro caso foi apenas que a morte de outro médico criou uma vaga para que eu entrasse na especialidade de anestesiologia”, ele diz. “Ele usava o aquecedor do carro para vaporizar halotano, então um novo agente anestésico em gás. Ele foi encontrado morto em seu carro, provavelmente por uma overdose acidental.”

No meio dos anos 90, uma anestesista residente foi pega roubando morfina. “Depois que ela foi pega, notei que ela tinha vários pontos de injeção e ela admitiu que vinha injetando há alguns meses”, diz o anestesiologista aposentado. A anestesista concordou em fazer o tratamento e foi eventualmente transferida para uma instalação onde não havia acesso a drogas potentes. “Tinha duas coisas interessantes nesse caso: o marido dela aparentemente não notou, e independente do clima, ela sempre usava uma jaleco comprido de operação que cobria as marcas das injeções”, diz o ex-anestesiologista. “Agora nossos colegas são alertados sobre o uso inapropriado de jalecos longos de operação.”

O terceiro caso envolvia um anestesista residente que não apareceu uma manhã para seu turno. “Alguém foi procurá-lo e o encontrou inconsciente com evidências de ter injetado propofol [um anestésico injetável]. Ele também foi aconselhado a deixar a instalação e encontrar um trabalho onde não houvesse acesso a drogas poderosas, o que ele aceitou.

“O último caso envolvia um profissional que foi indicado como consultor temporário num hospital universitário em Londres. Enquanto trabalhava num hospital particular em Londres, uma enfermeira notou que ele espirrava petidina [um opiáceo sintético] sob a língua. A enfermeira relatou o acontecido e parece que o médico usava muito mais petidina por caso do que o esperado, e ele fugiu do país. A enfermeira ficou preocupada com a própria carreira por ter dado o aviso. Mas isso aconteceu 15 anos atrás, então acredito que as pessoas que denunciam esse tipo de coisa não precisam mais se preocupar com isso.”


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Parte do problema com profissionais de saúde se tornando viciados, especialmente médicos, é que eles têm uma posição de autoridade e respeito. As pessoas confiam neles e podem se sentir intimidadas. Equipes e colegas não querem desafiá-los, com medo de prejudicar a própria carreira. Então, em muitos casos, os viciados contam com a vista grossa dos colegas, e assim as consequências desse vício podem acabar caindo sobre os indivíduos e seus pacientes.

Foi isso que aconteceu com Warshafsky, diz seu pai, Robin Warshafsky, um clínico geral do Canadá. Robin acredita que seu filho morreu porque seus colegas estavam dispostos a engolir o lado de Warshafsky da história.

“Julien era altamente funcional, então os colegas, tentando preservar a carreira dele, davam sempre outra chance, o que acabou matando meu filho”, diz Robin. “Todo mundo fica estressado e tem tormentos existenciais, mas o que há de diferentes em médicos é o acesso especial que eles têm a drogas. Eles não precisam ir para as ruas, não precisam pagar, e são bons em proteger seu acesso, então trabalham o melhor que podem para proteger isso.”

Alguns médicos nem precisavam manter a fachada. Um caso em Devon em 2012 revelou como o anestesista Dr. Matthew Cornish conseguiu roubar e usar drogas de hospitais em que trabalhava por 15 anos. O comportamento de Cornish era descrito como “desesperado”, “fora de controle” e “caótico”. Muitas vezes ele injetava diamorfina e fentanil no estacionamento do hospital antes de entrar na sala de cirurgia. Quando ele foi pego usando drogas, seu armário e casa estavam cheios de parafernálias de drogas, e seu jaleco branco tinha várias manchas de sangue das seringas usadas.

Médicos viciados não são apenas bons em convencer colegas a os deixarem em paz. Eles também são especialistas em enganar a si mesmos, diz Robin. “Eles se acham todo-poderosos e que têm mais controle das drogas que seus pacientes porque conhecem os fatos. Depois que eles roubam, usam drogas e conseguem enganar as pessoas, eles acham que estão no controle. Eles podem dar todas as respostas certas se forem investigados.”

Para médicos e enfermeiros que, por qualquer razão, sentem a necessidade de escapar para um estado induzido por drogas, o armário de remédios está sempre ao alcance. E é quase como se os colegas não estivessem procurando sinais de uso inapropriado. Como o anestesiologista aposentado me disse: “Considerando o grande número de enfermeiros e médicos com acesso fácil a opiáceos e outras drogas no trabalho, o surpreendente é que pouquíssimos casos surgem. Então eu diria que profissionais de saúde se comportam de maneira bastante responsável”.

Com a questão de médicos roubando drogas mais discutida hoje, os sistemas estão se fechando para evitar o abuso. Estoques de drogas não são mais tão acessíveis como uma década atrás. O Dr. Liam Brennan, presidente do Royal College of Anaesthetists, me disse que sua organização está consciente do impacto na saúde mental sentido por muitos anestesistas residentes, incluindo Warshafsky. Como resultado, o RCA agora realiza consultas, aborda a questão do vício em palestra para estudantes e residentes, e que médicos mais experientes buscam identificar colegas vulneráveis.

Mas para aqueles que acham um jeito de colocar as mãos em suprimentos quase ilimitados de drogas, a ajuda precisa ser fornecida também. Como Clare Gerada, chefe do Practitioner Health Programme para médicos com problemas de saúde mental, alertou: “Devemos permitir que médicos se tornem pacientes sem medo de sanções ou vergonha, e dar a eles a mesma compaixão que eles devem demonstrar com os próprios pacientes”.

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