Em coluna, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem vindo ao Guia Historicamente Correto do Brasil .
Quando pensamos em grupos supremacistas é muito habitual olharmos diretamente para o confronto racial que existe nos EUA: a luta pelos direitos civis de negros, protagonizada por líderes como Martin Luther King e a perseguição promovida pela Ku Klux Klan. Esse grupo violento que ateava fogo em cruzes, promovia linchamentos e estava infiltrado nas instituições públicas como a polícia e vários governos americanos.
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Enquanto a Klan se mobilizou ao longo das décadas de 1920-60, na tentativa de instaurar algum regime que mantivesse a segregação ou resgatasse alguma dinâmica escravista, o Brasil construiu e vendeu internacionalmente a imagem de um “paraíso racial” – um lugar onde a miscigenação teria resolvido os conflitos raciais entre pretos e brancos. Essa imagem não passava de uma cortina que escondia um plano para exterminar os negros do país, uma solução final, arquitetada por supremacistas brasileiros que se alastraram em todas as principais instituições e até a década de 40 tinham mais poder do que a primeira fundação da Klan poderia sonhar.
A primeira fundação da Ku Klux Klan era basicamente de brancos pobres, ex-escravocratas que perderam a guerra, quebraram e viram alguns negros conquistando espaço na sociedade. Eles não tinham nenhum poder, além do ódio e das próprias mãos para buscar sua vingança. Usaram assassinatos e ameaças de violência para impedir a atuação de negros na política, causaram renúncias de vários. Já no Brasil, os escravocratas não quebraram, pelo contrário. Lançando mão de manobras políticas, conseguiram evitar indenizações a qualquer negro liberto, mantiveram suas propriedades e principalmente sua reputação na sociedade. No racismo científico eles encontraram a chance de manutenção do establishment de sociedade escravagista.
Essa história, porém, começa antes mesmo da abolição, com Sylvio Romero, um dos intelectuais fundadores da Academia Brasileira de Letras. Na época, as discussões raciais eram incipientes. Não estavam organizados em um ou mais campos de estudo. Porém sempre um ou outro membro da elite intelectual evocava o “problema do negro” para tratar da configuração sociedade. Aqui, o comportamento assumido pelos colonizadores havia gerado uma característica muito distinta de outros países: a miscigenação. Enquanto ela era repudiada pelos supremacistas de outros países, no Brasil não se conseguiu controlar, começou com estupros e violência contra índios e negros escravizados e colocou o Brasil do século XIX contra a parede quando percebeu-se que a configuração étnica da maioria da população fugia ao padrão Europeu.
Foi então que as primeiras mentes começaram pensar em como girar a chave da miscigenação para, ao invés de tornar o país mais negro, deixá-lo mais branco. Sylvio Romero, um polímata dos mais influentes na época enxergava a possibilidade de hegemonia branca, constituindo uma raça que poderia se equiparar com a dos europeus
“Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a imigração européia.” – Estudos sobre a poesia popular do Brasil – 1879 – 1880
A gente discute frequentemente sobre como as comunidades acadêmicas e científicas Brasileiras promoveram um tipo de genocídio da pessoa preta, mas esquecemos de deixar claro que o real propósito desse movimento era a criação de uma “etnia branca nacionalista”, uma raça de brancos legitimamente brasileira e não o branco como é o caucasiano ou o ariano em outros países.
Para isso, eles precisavam convencer a sociedade das qualidades do branco e das deficiências do negro. É desse período um dos nomes que causou danos, até agora, irreversíveis. Raimundo Nina Rodrigues conferiu ao racismo uma vasta fundamentação teórica que conecta o africano e seus descendentes a comportamentos repulsivos.
“O critério científico da inferioridade da Raça Negra nada tem em comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses escravistas dos Norte-Americanos. Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas diversas divisões e seções” – Os Africanos no Brasil, Raymundo Nina Rodrigues (publicado em 1932)
Nina Rodrigues é um dos fundadores da antropologia criminal e, como psiquiatra, tem suas obras racistas e deploráveis estudadas e consideradas até hoje por profissionais que nem se deram conta ou são insensíveis às palavras que ele estava escrevendo. Em Mestiçagem, Degenerescência e Crime ele argumenta constantemente que o mestiço de negro e o próprio negro são delinquentes naturais. Como sugeri no início do texto, os primeiros membros do movimento mais racista americano não conseguiram metade do destaque que os nossos racistas brasileiros, Nina Rodrigues se tornou um dos maiores nomes na medicina e na psiquiatria nacional, é uma das fontes clássicas desses estudos até os dias de hoje e dá nome ao Instituto Médico Legal de Salvador e a um Hospital no Maranhão.
Em 1911,João Batista de Lacerda, antropólogo e médico diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi enviado como representante oficial do governo ao oficialmente Congresso Universal das Raças (Londres). Vários países se reuniram para discutir questões como “O problema da raça negra nos EUA”, “A posição mundial do negro e do negróide”, “O destino da raça judaica”… sim, o Brasil estava conectado com o racismo mundial. Ao contrário do que algumas correntes atuais de políticos, ditos, conservadores, quem importou questões raciais para nossas fronteiras foi a elite branca que queria dar um jeito no “Problema do negro” aqui. Lacerda previu que em cerca de 100 anos a composição étnica do nosso país seria branca:
“Graças a este procedimento de redução étnica, é lógico supor que, no espaço de um novo século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós.” – “Sur le métis au Brésil” (Premier Congrès Universel des Races: 26-29 juillet 1911, Paris, Devouge, 1911). In: SCHWARCZ, 2011
Lacerda expressava a supremacia branca, mas não a racial. Esse paradoxo é reflete as duas vertentes que se dividiram o movimento eugenista por aqui. Para ele a inferioridade da raça negra não era biológica, mas cultural e os negros vinham dos povos extremamente atrasados em várias dimensões como física e intelectual:
“Nem a raça, nem a cor, nem o aspecto físico, estabelecem preferências e cream sua superioridade absoluta no reino humano […] e que no mundo só existem raças adiantadas e atrasadas, devendo ser atribuídas essas diferenças às condições do meio físico e social em que o homem evoluiu”
Tempos depois, no sudeste do país nasceu o Movimento Eugênico Brasileiro. A idéia da Eugenia foi construída por Francis Galton, antropólogo e primo de Darwin. Ele acreditou que a teoria de seleção natural também se aplicaria em humanos. Assim várias características físicas, comportamentos sociais e psicológicas como o intelecto era hereditário. Na concepção dessa pseudo-ciência, as características mais doentias de uma sociedade estavam conectadas ao sangue de raças inferiores, que no Brasil eram especificamente as raças de negros, índios e seus descendentes.
Seu maior expoente era Renato Ferraz Kehl, farmacêutico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1915 constituiu a Sociedade Eugênica de São Paulo com outros médicos: Arnaldo Vieira de Carvalho, Afrânio Peixoto, Artur Neiva, Vital Brazil, Belisário Penna, Juliano Moreira. É importante ressaltar que eles ganharam muito espaço se vinculando aos movimentos higienistas, de saúde pública, em uma forte simbiose que ainda vai demorar algumas décadas para ser dizimada.
Khel e seus aliados mais próximos se tornaram defensores da vertente mais obscura da eugenia, chamada de “negativa” pois pretendia a criação de barreiras raciais, leis que impediam a miscigenação e esterilização. Entre suas obras mais racistas estão “Lições de Eugenia” de 1929 e “Sexo e civilização – aparas eugênicas” de 1933. Se tornou colaborador do jornal “A Gazeta” em 1945 e ficou por mais de duas décadas, recebeu em 1967, da Academia Nacional de Medicina um pergaminho Honorífico, onde ocupa até hoje a cadeira número 93 da instituição.
Sobre as diferenças entre as questões raciais entre Brasil e EUA ele afirmou em entrevista à Gazeta do Povo (1921):
“Ninguém poderá negar, tal evidência dos fatos, que no correr dos anos vem desaparecendo os negros, os índios das plagas e com eles os produtos provenientes desta mestiçagem. Com o contínuo processar desta mestiçagem é de se esperar que o Brasil se
realize, de acordo com a opinião de Rooselvelt, quando esteve entre nós, de que estamos resolvendo, pela fusão de sangues, o problema das raças negra e índia, de um modo simples e eficaz, enquanto que nos Estados Unidos, com a segregação dessas raças, o problema está se tornando dia a dia mais sério, dada a multiplicação dos seus representantes em sua pureza de origem.”
Outra diferença que fez o racismo brasileiro trilhar um caminho diferente do racismo descarado americano é a superioridade numérica, que já colocava medo nos escravagistas desde antes da abolição. Em várias cidades do interior do país, poderia existir mais pessoas nas senzalas do que civis livres. A abolição libertou um exército de negros, nenhum grupo se organizaria e teria coragem de dizer abertamente “nós não gostamos de pretos” procurando um confronto direto, como lembrou Nina Rodrigues “Nunca tivemos, como nos Estados Unidos, um excedente respeitável de população branca”. A crença na superioridade é a ideologia que manteriam essa minoria no poder, assim, a eugenia brasileira foi constituída por médicos de todas as especialidades, higienistas, antropólogos, jornalistas, educadores e políticos que discutiam abertamente suas práticas, ao contrário do “Governo invisível”, como foi chamada a Klan.
Os supremacistas brasileiros estavam no poder e usaram ele para manter a hierarquia social que a escravidão constituiu. A “eugenia negativa” não vingou pois, afinal, uma boa parte dos intelectuais brasileiros eram mestiços também, era muito melhor acreditar em uma versão que poderia embranquecer através do contato cultural do que acreditar que a inferioridade era irreversível. Sendo assim trabalharam para dar suporte à entrada de povos brancos em nosso país e abraçaram o discurso de democracia racial. Várias leis em prol da eugenia foram defendidas e aprovadas nos primeiros governos da República Brasileira, a educação eugênica criou as garras desse pensamento higienista e determinou uma mancha macabra no imaginário coletivo popular, fazendo até hoje pessoas buscarem um branqueamento consciente. Como disse nosso Vice Presidente Mourão “o branqueamento da raça”. São os vestígios dessa educação que levam a população a manter a chave do branqueamento ligado, sem ela, os medos de Nina Rodrigues voltam à tona: “A mestiçagem não faz mais do que retardar a eliminação do sangue branco”.
Parece distante imaginar que esse medo ronda a nossa sociedade ainda, mas quem dera se o Brasil se assumisse político e culturalmente uma sociedade afro-brasileira, as estatísticas ainda mostram que os ideais dos eugenistas foram praticamente alcançados… menos um: nós ainda estamos aqui e somos a maioria, cada vez mais.
Volto a falar disso em breve.
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