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Bragantino com sua icônica camisa da Dellerba em 1991. Foto: Reprodução

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A família que criou os uniformes mais maravilhosamente esquisitos do futebol

Nos anos 90, a Dellerba confeccionou camisas com estampas que se tornaram símbolo de uma época de ouro do esporte no Brasil.

O começo dos anos 90 viu as peitas mais malucas e arrojadas da história do futebol. Estampas fora de controle, cores grotescas e golas gigantescas como essas usadas pelo Manchester United são alguns dos elementos inesquecíveis daquele período.

Apesar da caretice do futebol nacional, a gente também não passou imune. Foi de olho no que estava rolando na Europa que Ricardo Dellerba, dono da marca que carregava o sobrenome da família, inaugurou as pirações têxteis do futebol brasileiro.

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Lembra do Bragantino vice-campeão brasileiro de 91 com aquela peita de formas geométricas em preto, branco e prateado? Foi o Ricardo que criou. Assim como outros panos inesquecíveis de Portuguesa, Guarani, Santos, Paraná, Vitória, Atlético-MG, Noroeste, União São João, América-SP e outros.

Embora atribua suas criações a uma “inconsequência da juventude”, Dellerba sabe que as estampas malucas foram uma sacada de marketing importante para a época. Pode parecer óbvio, mas os Dellerba queriam vender camisas de futebol. Só que isso não estava no radar das grandes marcas esportivas atuantes no Brasil. Isso permitiu que a Dellerba e outras marcas brasileiras esportivas ocupassem um mercado praticamente virgem.

CALÇÃO DAS COPAS?

Essa história começa numa época mais bem comportada do futebol: a década de 1950. Foi quando Sérgio Dellerba, pai de Ricardo, abriu a Casa Dellerba de Esportes, uma tradicional loja de artigos esportivos na Lapa, em São Paulo.

Só que o homem percebeu que valia a pena não apenas vender produtos esportivos, mas também confeccioná-los. A inspiração vinha de casa: o pai de Sérgio, Vito Dellerba, era alfaiate. A Casa de Esportes passou a fabricar camisas, shorts e meiões.

Pouco tempo depois, a lojinha já estava fornecendo material para grandes clubes de futebol. “Apesar de ser corintiano, meu pai tinha uma ligação muito forte com Palmeiras e São Paulo, que eram grandes clientes da loja”. Sim, na década de 1960, os clubes não recebiam grana de patrocinador de camisas. Eles tinham que comprar os próprios uniformes.

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Camisa do Noroeste de Bauru usada em 1991. Foto: Reprodução/ Mercado Livre

De acordo com Ricardo, esse conhecimento levou a confecção para a Copa do Mundo. “Meu pai contava uma história de que a gente fez os calções da seleção brasileira entre as Copas de 1954 e 1974”, diz o filho. A lenda familiar conta que a fábrica da Dellerba fazia calções para a marca Athleta, fornecedora oficial do Brasil no período.

Entramos em contato com Antônio Bulgarelli, neto do fundador da Athleta. Ele confirmou que a Dellerba confeccionava alguns calções para a marca, mas não confirmou a participação dela nas Copas.

De qualquer maneira, a Dellerba vinha acumulando títulos importantes no Brasil. O São Paulo, por exemplo, estava fardado com o pano da confecção em seu primeiro Brasileirão, em 1977.

VIROU MARCA

No fim da década de 1970, a Dellerba fechou contrato com a São Paulo Alpargatas, que cuidava de duas marcas: a Rainha e a Topper. Era naquele esquema: eles seriam a fábrica por trás da marca. Foi assim que a Dellerba teria produzido as camisas da Topper para as Copa de 1982, 1986 e 1990. (A Topper, que não pertence mais às Alpargatas, diz ser incapaz de confirmar a informação.)

Além disso, outros clubes que levavam Topper no peito estavam, na verdade, vestindo o pano da Dellerba. É comum, por exemplo, encontrar camisas do Corinthians da época da democracia que têm etiquetas internas da Dellerba.

“O lance dessas marcas era vender calçados esportivos. A venda de camisas não era o foco delas. Elas achavam o futebol brasileiro pobre para apostar nisso”, conta Ricardo. Começava a crescer dentro da Dellerba a vontade de virar marca e ocupar um território ignorado por nomes nacionais e estrangeiros. A essa altura, os filhos de Sérgio já estavam trampando na empresa da família.

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Camisa da Lusa usada em 1991 e 1992. Foto: Reprodução/ Mercado Livre

Veio então a primeira tentativa de estampar Dellerba no peito. No fim da década de 1980, o campeonato italiano era febre no país, e Ricardo viu ali a chance de experimentar. Ele começou a fazer réplicas dos clubes de lá: Napoli de Maradona, Milan dos holandeses etc. Como vendas de peitas de times gringos era algo impensável por aqui na época, a Dellerba se deu bem.

Tão bem que até hoje tem gente que acha que a marca era um patrocinador verdadeiro de alguns dos clubes de lá. Durante a apuração desta reportagem, ouvimos de uma pessoa ligada a uma grande marca esportiva: “A Dellerba era italiana, né?”.

Na real, ela era muito brasileira. Os designs das camisas italianas eram copiados na raça. Ricardo lembra que comprava a revista “Guerin Sportivo” e tentava desenhar na mão as estampas gringas.

“Naquela época não existia o conceito de pirataria. Todos faziam camisas de todos”, rebate rapidamente Ricardo antes que você possa pensar algo ruim da prática.

A BELEZA DOS ANOS 90

A aquela altura, a Dellerba já tinha maquinário para produzir camisas em poliamida e dominava a técnica de sublimação, que permitia a criação de estampas sofisticadas. O sucesso das falsetas italianas tinha mostrado um caminho importante. Havia demanda e espaço por camisas de futebol.

Em 1988, a Dellerba chegava oficialmente ao primeiro clube brasileiro, o Central Brasileira. Ele era um pequeno clube de empresários no interior de São Paulo que teve vida curta, mas que abrigou craques em fim de carreira como Luis Pereira, Wladimir e Enéas. Na sequência, o América-RJ também passou a estampar Dellerba no peito.

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Em 1990, a Dellerba papou seu primeiro caneco oficialmente no peito do Bragantino, que levou o Paulistão de 1990. “Essa camisa já tinha uma tricotagem legal, que imitava a que a Umbro fazia para a Inglaterra”, lembra Ricardo.

No ano seguinte, veio a consagração. O time do interior paulista chegou à final do Brasileirão com uma peita que era muito style, com combinações geométricas loucas. A inspiração para a estampa veio da camisa de treinos da seleção da Escócia entre 1988 e 1989. E ela já tinha decolado também entre os clubes europeus, como o Ajax.

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Camisa do Botafogo de RIbeirão no começo dos anos 90. Foto: Reprodução/ Mercado Livre

“Tudo é uma combinação de fatores. Se o Bragantino não tivesse um time bom, talvez ninguém desse bola para a camisa deles”. Não foi o que aconteceu. O time do interior formou grandes nomes, como Mauro Silva, e catapultou Carlos Alberto Parreira para o comando da seleção.

A partir daí, Ricardo pirou nas estampas. “É aquela história: você fala algo e percebe que agradou, a confiança cresce”, diz. Ele continuava olhando para os panos da Europa, mas também foi beneficiado pelo fato de que a sua fábrica também tinha um pé na moda. A confecção da Dellerba produzia peças para marcas descoladas, tipo a Zoomp.

Estava garantida a década mais louca das camisas de futebol no Brasil que fez outras marcas nacionais também se deram bem, como Finta, Penalty, Rhumell e CCS.

APOGEU E DECADÊNCIA

A lógica da Dellerba para soltar cada vez mais camisas diferentes não era apenas estética. Ela descobriu um grande mercado. Ao contrário das marcas da década anterior, a empresa não vendia calçados, um pilar fundamental para quem se arrisca na área. A companhia precisava vender camisas.

E não estamos falando apenas das peças oficiais dos clubes. As peças, sem os logos e patrocinadores, também eram vendidas para times de várzea, de colégio, de firma e por aí vai. “Cada estampa que eu inventava, precisava enfiar em algum clube para poder vender também as camisas sem clube”, diz ele. Ou seja, o Bragantino tornou as formas geométricas famosas e você podia encontrar essa mesma estampa em várias cores diferentes.

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Camisa do Bragantino em 1991. Foto: Reprodução/ Mercado Livre

Isso sem contar que produção de réplicas de clubes gringos continuava a todo vapor: Ajax, La Coruna, PSG, Fiorentina, Borussia Dortmund e Barcelona foram alguns dos clubes “homenageados”.

Dessa maneira, a Dellerba chegou a vender 70 mil camisas por mês. O número é alto. Em 2016, por exemplo, o São Paulo foi o décimo clube das Américas que mais vendeu camisas, com 977 mil unidades comercializadas, segundo o Euromericas Sport Marketing. A média mensal de 81,4 mil unidades é só um pouco mais alta que a da Dellerba.

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Camisa do Guarani em 1994. Foto: Reprodução/ Mercado Livre

A partir da segunda metade da década, ficou óbvio que camisas de futebol eram um bom negócio. E, assim, grandes marcas gringas miraram no Brasa. O maior símbolo disso era a chegada da Nike à seleção em 1997. O mercado se inflacionou e a Dellerba foi perdendo a capacidade de brigar. O vice do Brasileirão com a Lusa em 1996 foi o último suspiro.

A mudança do mercado era só um dos elementos da tempestade perfeita que estava se formando no caminho da Dellerba. Na mesma época que foi perdendo espaço para as marcas gringas, a firma acabou se endividando para trocar de maquinário nas fábricas. Num cenário maior, a segunda metade da década reservou ao país seguidas crises econômicas globais — isso sem contar o começo da invasão de produtos chineses ultrabaratos ao mercado nacional.

A marca Dellerba perdeu poder de investimento, e a família voltou a focar apenas em confecção. Ela fabricava roupas para outras marcas, incluindo New Balance, Fila, Diadora, Reebok e Adidas Internacional — a fábrica chegou a produzir as camisas do River Plate que eram enviadas à Argentina. Ricardo diz que, ao chegar ao Brasil, a Nike consultou a fábrica para a produção de peças, mas o negócio não vingou. A Nike não confirma a informação.

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Já sem a alegria das estampas, a marca Dellerba ficou focada em meiões e calções, e parcerias rolavam apenas com clubes menores. O último a ter uma peita da marca foi o Noroeste de Bauru na metade da década passada.

Em 2010, a empresa fechou as portas e entrou em recuperação judicial, deixando um rastro de processos contra os herdeiros da marca.

Hoje Ricardo Dellerba tem duas lojas: uma especializada em personalizações de roupas esportivas chamada Sport Lock, na Vila Leopoldina, em São Paulo. E outra de artigos de praia em Ilha Bela, chamada Doox.

Ao falar da finada marca, o cara tem uma ponta de melancolia — a crítica maior ao fim da Dellerba era de que os filhos teriam dilapidado o patrimônio do seu Sérgio. E a prova de que ele tem razão ao dizer que a marca era “querida” são os valores das peitas antigas da Dellerba. No Mercado Livre, você encontra pouca coisa por menos de R$ 300 e é comum encontrar peças perto dos R$ 1.000.

Ricardo descarta voltar ao futebol, meio em que teve muitas decepções. Só no resta perguntar o que ele acha das peitas atuais. “Gosto mais das da Nike que são mais básicas e minimalistas”, diz. “As da Adidas são muito extravagantes. Outros tempos.”

De fato, são outros tempos.

Assista ao nosso vídeo "A ostentação das camisas de várzea nas quebradas de SP"

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